Sobre o(s) feminismo(s) politicamente corretos

Márcia Tiburi
Em certo dia de 2012, minha amiga H* me apresentou J* e C* e, do lugar em que estávamos, seguimos na carona de J* que desejava - bem como H* - dar uma passada numa balada - sim, numa balada. Eu e C* nos entreolhamos e fomos porque "carona é carona". Quando lá chegamos, sentamos no meio-fio (enquanto H* e J* sensualizavam na night) e ficamos trocando ideia sobre um gosto em comum: textos da Márcia Tiburi desde a época da Vida Simples!. Ora, e o que essa "síndrome de Rory Gilmore" tem a ver com o post de hoje? Tem a ver que, bem, compartilhar gostos literários é essencial nesta vida (na minha mesmo) e, assim sendo, ser amiga de C* alimentou bastante meu interesse pela filosofia da Tiburi.

Formamos caravanas para cada quarta mensal do Filosofia do Rock (CCBB-DF), compramos e autografamos "livros bem lidos" (cheio de post it) como a Tiburi disse pra mim, formamos amizades metafísicas (como Tiburi disse à C*). Saímos depois a todas as quartas para termos discussões apaixonadas discordando ou concordando com o que a filósofa (esta palavra tem um sublinhado vermelho na tela de edição ¬¬') e quem ela convidava pensavam, achavam, diziam. Àquela altura, algumas provocações me atravessavam plenamente.

Tudo isso pra justificar o porquê de eu não ter resistido à capa da revista Cult [1] do presente mês. Esse texto foi inspirado pela leitura da entrevista da Tiburi (p 16-27). e do ensaio "Os Novos feminismos e os desafios para o século 21" (p.52-55), da cientista social Carla Cristina Garcia.

Três elementos trouxeram-me aqui:

1) A resposta incisiva da filósofa sobre a necessidade de lutas plurais e pra além da esquerda tradicional;2) A titubeação noutra resposta sobre ter tido ajuda na educação da filha (sendo uma mulher inserida no espaço público); 3) A imagem de Carolina Maria de Jesus em meio à reflexão de Garcia.

obs: generalizações para fim específico.
obs2: não é resenha da revista

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Talvez um dos grandes efeitos da "Marcha das Vadias" tenha sido a generalização do receio e resiliência de feministas não-Negras em parecerem racistas. Erros de percalço (que não discutirei aqui) levaram à relativa centralidade a questão das opressões que pessoas oprimidas exercem (ex: mulher Branca que é racista), pois "de privilégio, ninguém quer abrir mão". Certo. E o que chamo aqui de "feminismo politicamente correto" é aquele que abarca tudo e todxs, partindo das intersecções APENAS à nível de discurso, teoria, academia e imaterialidade. O velho terror da "casa grande tão democrática" se volta, até mesmo, às mulheres. Percebam a ironia: esses dias, uma amiga branca me perguntou "Uai, mas X falou contigo? te cumprimentou?" e respondi: "Ora, mas é óbvio... Eu sou Negra!".

Notando o desconforto da interlocutora, continuei: "E ela vai dar brecha à possibilidade de parecer racista?". Foi obviamente retórico, e a resposta é "não", ninguém quer ser a feminista imperfeita. Minha proposição aqui não é nenhuma apologia torta, o que eu quero destacar é que feminismo também é prática, é cotidiano, é carne. Noutras palavras: feminismo não é APENAS caneta, retórica e citar Audre Lorde. Aliás, adoro a citação de outra amiga: "deixem a Audre Lorde em paz! Ela tá morta!". Apoderando-me de uma apropriação de Judith Butler [2], digo: E rir de qualquer estrutura opressiva de poder, ainda que ela seja mutável, é essencial pra sobreviver.

Cartaz de convocação da Marcha das Vadias

SENSOR DE CERTO E ERRADO [2]
A disjunção entre teoria e prática, ou mesmo, do "feministês da boa retórica" (colchas de citação sem nomear) e práticas discriminatórias, é uma estratégia indireta de manutenção do status quo. Isso porque os avanços dependem de enfrentamentos práticos, de materialização das utopias. Há certo tempo, tenho observado certa "mea culpa" da esquerda tradicional e de tendências feministas em relação ao racismo, o "cuidado", o pedido de licença, a reiteração de elementos da cultura negra e outras práticas que, na realidade, são vazias.

No Brasil, é feio ser racista, então existe racismo, mas não racistas. Pra mim, a base de todo engajamento político é praticar o que você prega. Uso intencionalmente a palavra que tem o sentido religioso pra evidenciar um caráter de culpa e simplesmente centrada na moralidade. Não estou interessada em dívidas morais que não têm corpo, mas estrelas de ouro. Não é uma forma de incentivar a exclusão da teoria-em-si-mesma, mas de propor ampliação pro mundo real, aplicação. Pra mim, ser feminista não é ser mainstream, tampouco ganhar estrela dourada (sequer existe essa possibilidade).

Minha experiência de vida e as leituras levam-me a pontuar a prática feminista como estratégia diária de sobrevivência; então, o meu sensor de "certo" (ser fosse o caso) está em consonância com a resposta de Tiburi [3]:

[...]Penso que o feminismo não é apenas um movimento,
mas uma ética e uma política. O feminismo é uma
visão de mundo que parte da crítica da dominação e da opressão
masculina que é a mesma opressão capitalista.
Mas o feminismo é, mais ainda, outra forma de trabalhar
o poder na direção do que hoje em dia denominamos de 'potências'.
A meu ver, democracia hoje é sinônimo de feminismo [...]

Em suma: pra mim, certa é a luta real contra as desigualdades. Essa luta também se trava no dialogo entre as diferentes perspectivas/lugares no mundo, mas compartilhando a convicção de que 1) não são as pessoas subalternizadas que devem estar disponíveis a ensinar e ter paciência eterna e 2) a tentativa das categorias hegemônicas despejarem pena, benevolência e conselhos são dispensáveis. Solidariedade unicamente discursiva não adianta. Dizer que é Negrx se você não é, também não.

Eu sei, Olivia Pope também sabe, que é ótimo consertar problemas alheios, mas se você está socialmente numa categoria privilegiada, em vez de propor que eu faça o certo, você deve compreender o funcionamento do SEU privilégio antes de (continuar) ordenando. O mundo ainda é desigual sim e chamar a empregada doméstica, que você trata ou como mucama ou como quase-da-família, de secretária não muda nem o destino dela nem dos filhos que ela tem ou poderá ter. Ter até umx amigx ou se re relacionar com negro/a não muda o destino dessa pessoa, sobretudo porque esse discurso invisibiliza o conflito de interesses. Esse senso de "certo" corresponde a um giro de 360°.

"UM POUCO MAIS DE RESPEITO" [4]
Uma feminista radical branca logocêntrica veio questionar, certa vez, quais as feministas que eu lia já que eu não tratava a bell hooks com toda a centralidade que ela e suas amigas de "adoração ao logos" tratavam. Audácia real dessa "tirada antropológica" lançou minha atenção ao senso de certo dessa galera. Se por um lado as futuras teóricas destilavam críticas ferozes às feministas brancas na estrutura mais acadêmica possível, por outro, ignoravam questões na única feminista Negra que conhecem além de Lorde.

Era quase um "baby talk", um "café com leite", um debate "à brinca", ou o cumprimento. Aquela pessoa deixou transparecer a hierarquia, seu profundo desrespeito, e como não leva pessoas negras a sério. O melhor é que ela" é super antirracista", nos dizeres dela mesma. Como vocês entenderam o tom, não é preciso narrar como ela defendeu - sem qualquer problematização - o uso de turbantes por pessoas brancas, até porque ela usa indiscriminadamente. Ela pode.

Respeito tem a ver com a compreensão histórica das trajetórias de grupos sociais tendo em vista a reconstrução da consciência e do empoderamento. Quem cultiva o certo e para por aí, não está interessada em estimular mudanças profundas na estrutura social. Entenda: a contribuição daquela pessoa não seria no processo de nos empoderar, mas de desconstruir a hierarquia nela mesma! Repensar o que leva à audácia de tentar reproduzir um discurso opressor ao mesmo tempo afagando e empalando. Fazer uso de discursos de mulheres Negras também é mainstream, mas não existe homenagem alguma em desgastar imagens, trechos e ideias para fins interesseiros. Trata-se apenas de demarcar um lugar de fala, um posicionamento que reforça violências.

Por outro lado, há sensores de certo quebrados ou em consonância com equívocos (pra não dizer fascismo). Na época daquele inflamado debate sobre a Marcha, decidi definitivamente deixar de ler o blog da Lola, pois o post dela de apoio, ignorava/deslegitimava o epicentro do repúdio (a junção "sutil" de sexismo e racismo no interior da manifestação feminista contemporânea). A aderência dela foi tão explicitamente descompromissada conosco, quanto a do pronunciamento no evento da Faculdade de Direito da UnB, chamado "Gênero e direito" - mas o artigo foi decisivo. Óbvio que abstrair qualidades é, muitas vezes, um exercício vital, mas a disjunção escancarada merece rechaçamento pleno.

Com isso, meu senso crítico aponta para a importância da luta por justiça social ser mais interessada que interesseira. Mais preocupada em resoluções e respeito reais que em aparências, retóricas e afins. Pensamento, voz, subjetividade, tudo isso é corpo, mas não pode encerrar-se aí, é necessário sinergia enquanto prática política. É certo ser de esquerda, é certo gostar de livros, é certo se manifestar... mas qual o sentido pra você? É preciso ter alianças, solidariedades, mas reais. Não precisamos das migalhas da sua ética, mas do pensamento e da vida entrelaçados com políticas de equivalência.

A IMPORTÂNCIA DO NÃO DIZER
Embora eu tenha observado engajamento consciente de lugar e interesses, senti que era importante escrever esse post quando li o trecho em que ela foi questionada da seguinte maneira: "E como você conciliou o trabalho e as viagens com a criação de sua filha?". A resposta a isso, bem como a outras vivências são capciosas e ela não desenvolve muito. Acredito que, no trecho "Tive ajuda de todo mundo", há grande chance de ter uma mulher Negra suprimida do discurso. Compreendi essa supressão como uma posição intrigante.

Penso em feminismo
como política de colaboração,
de transformação,
de defesa e garantia
de direitos básicos

Márcia Tiburi

Primeiro pensei que, uma leitura rápida me levaria a pensar na força extrema duma negação debilitante, do tipo que catapulta pra depois da fronteira. Seria conveniente para alguém como ela não se pronunciar sobre essa experiência pessoal. Ocultar o que é político no social pode ser realmente reconfortante pra pessoas privilegiadas, traz benesses mil. Lembrando, no entanto, do estilo provocativo, procurei desmontar melhor a estratégia.

Ora, a construção da ideia de função e prática feminista dela nas páginas anteriores leva em conta a inclusão plena, não pela falaciosa ode à diferença, mas na radicalidade concreta, na utopia de destruição da estrutura opressora que desliza em várias direções. Depois do raciocínio sobre "senso de correto", seria muita ingenuidade crer que esse belo discurso escrito, proferido por alguém privilegiada assim pode ser corpo no sentido de prática. Seria, mas 1) se ela se posiciona sobre as especificidades de mulheres Negras, 2) nessa resposta não encontramos deslegitimação nem falar pelo Outro e 3) não há mea culpa, nem performance de não querer parecer racista. Talvez.

Talvez esse não dizer configure uma alternativa para ela. Mas acredito que esse não dizer (que se estende ao não usar turbante) como práticas de não apropriação da fala e protagonismo.
Talvez seja logro, também.

Fique esperta, galera feminista, pois estamos de olho!

REFERÊNCIAS
[1] Cult - Revista Brasileira de cultura, São Paulo, nº 199, março 2015.
[2] BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[3] OMER, Ardo. The Killing Joke and criticism
[4] “The book argues convincingly that black feminists be given, in the words immortalized by Aretha Franklin, a little more R-E-S-P-E-C-T....Those with an appetite for
scholarese will find the book delicious.”—Black Enterprise. (in COLLINS, 2000).
COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought : knowledge, consciousness, and the politics of empowerment, New York: Routledge, 2000. 2. ed.


PS1: Não é um post sobre querer ser dona de feminismo nenhum ;)
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