Feminismo Personalista (Parte 1)
Então eu faço um apelo às minhas companheiras de luta: que tal a gente parar de basear a construção do movimento feminista nessa batalha de egos que tem se tornado o feminismo? Que tal a gente baseá-lo no acolhimento, na diversidade de visões e no aprendizado conjunto a partir das nossas vivências? Sem deixar, é claro, de repensar SEMPRE nossos privilégios e brigar quando é necessário – o que é totalmente diferente de rachar mina só pelo racha.
Gabriela Beira
É de conhecimento geral que uma rede suporta maior força aplicada à ela que um ponto específico, ou que "andorinha só não faz verão". Essa visão rasa e míope da realidade, de forma alguma objetiva subestimar o (pre)suposto público ao qual me dirijo. Afinal, há um público ao qual me refiro, assim, tão universal, silencioso e condescendente? É um Eu versus Vocês? Não e esse sequer é um ponto ao qual desejo me deter. Eu poderia resumir a ideia desse texto da seguinte maneira: é uma crítica à certas práticas de Feminismos que tenho observado/vivenciado.
Comportamentos que sinto me afetarem, mas não individualmente. Noutras palavras: o texto não trata duma afetação pessoal, mas de uma crítica à sabotagem empreendida por quem tá do lado de cá, sabem? A disputa de egos, a queda de uma igual como um ingrediente absurdo desse mundo absurdo: a implosão do feminismo que tanto pregam e pelo qual competem a fim de assumirem a posição de ícone. Transformo essa experiência numa escrita pública pela seguinte razão: não se trata de afetação personalista, mas dum olhar sobre a sabotagem da rede. Não sou só, não ando só e meus passos vêm de longe (= não existe agora se não fossem os esforços das predecessoras).
Embora eu tenha estabelecido uma diferença vaga entre o individual e o personalista, convido a considerarem que o ponto é que há condutas pessoais que tratam de ambas como se fossem uma só coisa. Além disso, convido a perceberem que essa postura é uma das contradições básicas que contribuem para a impossibilidade de justiça social pela qual lutamos. Enfatizo que o problema da opressão não é de quem é oprimidx, mas que o lado de cá da força, como afirma a teórica Grada Kilomba, tem como função nos curar-se de toda violência e armadilhas eurocêntricas.
A competição entre iguais junto ao desejo de destacar-se pela aparência configuram armadilhas do mundo capitalista, duma lógica não nossa, mas que nos engole. Eu sei que situação ideal, gravidade e atrito igual a zero não existem na cultura "real" mesmo a nossa, de lado de cá, mas que tudo parte de uma experiência absurda de expropriação e violência a ponto de apagar muito do que "somos" culturalmente e é por essa razão que parto da ideia de que racismo e outras opressões constituem a subjetividade inclusive do lado de cá da força. O problema não é nosso, repito, não somos racistas nem nada, só que aprendemos a viver errado porque o mundo é errado.
Se feminismos são teorias e práticas que têm como objetivo comum o fim de todas as desigualdades, qual seria o sentido de práticas personalistas [1]? Perceba a diferença entre persona e indivíduo. Quando digo "indivíduo" penso na potência transformadora que cada ser tem, isto é, nas micropolíticas que cada pessoa resolve abraçar: alimentação orgânica, vegana ou freegan; o afeto, o uso do erótico, enfim, qualquer autonomia que empreendemos. Estas tornam-se mais reais quando pertencemos a Quilombos [2], quando resistimos juntxs. Objetivamente, acredito tratar-se de um processo de busca por coerencia entre o ideal de sociedade e o possível a cada pessoa. Subjetivamente, acredito que o compartilhamento de ideais que são necessários pra cada pessoa no mundo é uma dádiva à/ao outra/outro. Palavra mágica: compartilhar.
Quero dizer, então, que personificar é fetichizar movimentos sociais, lutas e herança cultural na figura de um/uma mestre ou ídolo, o culto à personalidade política. É o mesmo princípio que transforma os princípios religiosos ocidentais (de culpa, mediação à Verdade por umx iniciadx e maniqueísmo) em fazer político. Só que política de descolonização nada tem a ver com o bem versus o mal, ou com fazer o certo por culpa, mas sobre alternativas a qualquer binarismo.
Depois de ler os ensaios de Audre Lorde e, particularmente, depois de receber dois abraços de duas feministas muito especiais pra eu estar aqui e agora pensando esse post, não tem como não destacar a importância de distinguir a política individual da personalista. A cura está em sermos afetuosas conosco mesmas, em tomar a palavra, recuperar as nossas partes faltantes e de reconstruirmos nossa rede (Kilomba, idem).
Enquanto perdura a alta do feminismo e ser feminista é "in", muita gente vai identificar nessa luta o degrau perfeito para a sua própria fama. E, o pior: só lembrará da coletividade na hora de pedir voto, ajuda gratuita, pra curtir a sua página e tapar algum buraco. Você só será lembrada como ponte de acesso. É bom quando compram seu livro? Será que você faz o mesmo? Longe de ser "olho por olho, dente por dente", ou mesmo uma relação de troca, meu exemplo tem em vista criticar a total falta de comprometimento com a coletividade da causa política que diz representar. Espero que, à medida que leem essas ideias, compreendam que estou analisando tanto a forma como me relaciono, quanto o que tenho observado em relações de jovens e não-jovens feministas. Não é um julgamento unilateral e específico. Aliás, de mim, nunca esperem isso, por favor.
Voltando aos abraços: o que eu senti de ambas foi uma generosidade transcendente, que nem está aí no mundo e nem nos livros. A Audre Lorde eu conheci pela zine de traduções feitas por essa amiga e eles diziam que o afeto entre mulheres e pessoas negras em geral é uma estratégia de sobrevivência regozijante, necessária e subversiva. Quando sobrevivemos à rudeza diária e à hostilidade do mundo, resistimos bravamente. Quando amamos nossas irmãs e aprendemos a sermos amadas, deixamos de ser o ponto frágil e nos tornamos a rede de resistência: o Quilombo. Compreendo que o esforço excessivo para pertencer a um grupo pode ser problemático, que há porções dentro de nós e de nossas irmãs que são inegociáveis e que sementes eurocêntricas plantadas em nós podem brotar.
Apesar disso, na maioria das vezes, é possível que a desavença venha daquele ensinamento que temos de matar quando se fala em sororidade: a disputa entre mulheres. Além disso, o que é pior: minorias que incorporam as visões discriminatórias dx opressorx. Tudo é área de disputa nessa configuração social, econômica e política, isto é inegável; mas ser feminista e Negra é um pacto coletivo de crer no futuro construindo-o agora. Cada prática multiplica os pontos de mudança; os afetos os ligam e a desconstrução do que envenena explode cada vez mais os "postos inabaláveis" do status quo. Não fomos nós nem nossos antepassados que organizaram o mundo desse jeito, que mecanizaram tudo e sugaram a complexidade do termo "confiança". Não fomos nós que criamos o racismo.
Por outro lado, precisamos nos fortalecer mutuamente se quisermos mesmo destruir a casa grande. Duma coisa tenho certeza: quem está com/na hegemonia não vai destruir sua própria casa por bem; muito menos nos amar. Cabe a nós negros e Negras largarmos o personalismo e, como a intelectual Negra bell hooks, focarmos no conteúdo, no afeto e na generosidade como políticas essenciais.
Com isso não quero deslegitimar as produções e esforços de pessoas negras, apenas mostrar que fazer grupos de amigos com benefícios voltados a si próprios ou carregar a bandeira de "pretx excepcional" são formas de personalismo político. Independente de combater racismo ou sexismo, essa atitude desagregadora é desserviço. E, se é personalista, gera descontinuidade com a rede, com o engajamento na mudança total, pois só funciona se formos todxs juntxs.
Qual o sentido de subir sozinha? É alguma recompensa mesquinha, a solidão de subir só? Desculpa, mas quando o feminismo se restringe ao personalismo, o tal culto à personalidade (que não é necessariamente subjetivo) implode pedaços das premissas gerais, envenena as nossas bases com descrédito e, como um necromante, faz reviver o cadáver de cada opressoro morto.
Não estou dizendo pra amar a todxs como a si mesmx, óbvio que não. A ideia é dar vazão à generosidade como prática feminista que destrói a lógica competitiva, pois o empoderamento de uma pessoa sozinha nega a rede que possibilitou estar empoderada. Tentar galgar só não apenas te destrói como dificulta pra quem fica. Noutras palavras: sozinho você sempre será a próxima vítima e descobrirá que mudar de "altura" não muda o peso, valor e importância social do seu corpo em relação à rede lá embaixo.
Eu só quero dizer que feminismo é o comprometimento com o futuro desde uma postura prática no agora [3]. Apenas as mudanças empreendidas em redes de micropolíticas, sororidade e afetos reais sinalizam que o amanhã está a caminho.
Referências:
[1] CASTANNYER, Laura Borrás. “Introducción a la critica literária feminista”. In: SEGARRA, Marta e CARABÍ, Àngels (org). Feminismo y crítica literaria. Barcelona: Icaria, 2000.[2] Uma coisa que a história convencional - a da escola - esquece de contar é que os Quilombos eram locais de refúgio fundados por grupos de pessoas que foram escravizadas, mas não eram compostos apenas por pessoas negras. Nessas comunidades a Cosmovisão Africana era valorizada de modo que, toda a população inadequada ao modelo de sociedade eurocêntrica tinha espaço. Indígenas, Homossexuais, brancos pobres, idosos.
[3] Ybeyi: "Better in tune in infinite" (Cover)
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