"Você não concorda ou não está entendendo?" Reflexão sobre saberes, fronteiras, identidades e cultura pós-modernas

Senegaleses em busca de melhores condições de vida acabam mortos na travessia do Mediterrâneo. A brutalização dos corpos é uma questão híbrida? É multi-cultural? A morte é uma decisão? Lembremos do que disse a escritora senegalesa Fatou Diome: a morte não assusta simplesmente porque trata-se de abandonar uma vida que não vale nada em busca de sobrevivência”.

[...]
A fome está em toda parte
Mas a gente come
Levando a vida na arte
Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
[...]
A morte não causa mais espanto
[...]
As crianças brincam
Com a violência
Nesse cinema sem tela
Que passa na cidade
Que tempo mais vagabundo
Esse agora
Que escolheram pra gente viver?

(Milagres/Miséria - Adriana Calcanhotto)

INTRODUÇÃO
Simplificando de forma esquemática, existem dois tipos de motivações políticas praticadas por intelectuais (a saber: o rompimento com estruturas vigentes e a continuidade).

* a primeira é praticada por aquele tipo de pessoa que busca dialogar e está pronta para se por à prova, modificar-se radicalmente a ponto de voluir[1] e limar os preconceitos (todos) de forma definitiva; Geralmente esse perfil de sujeito procura evidenciar seus projetos, posicionado de forma mais comprometida com a sua Verdade quanto possível. É evidente o que deseja alcançar. Essa postura de questionar pode se dar tanto pelo pólo das minorias políticas em busca de direitos, quanto o da maioria que é parceira e estende as mãos para negociações.

* o segundo tipo é aquele perfil de indivíduos cuja motivação é proporcional à vontade de permanência do próprio conforto. Para que isso seja possível, essa pessoa se recusa a aprender, a tentar imaginar perspetivas diferentes das suas e - o pior de tudo - desqualificar o que desconhece. Outra forma, mais sofisticada inclusive, é a fagocitose ou apropriação cultural; englobam a arte, a cultura e a estética de determinada minoria para supor uma indiferenciação, uma mestiçagem, uma hibridização... que não muda sua condição confortável ante o Outro, apenas descarta oposições diretas. Um exemplo clássico: é socialmente interpretada/o como branca/o, mas se considera negro/a; adora estampas "étnicas" e relativiza a descriminação étnico-racial. Outro exemplo: interrompe a fala de alguém para discordar ofendendo duramente ou deslegitimando de leve.

No meu cotidiano, por mais que eu lime o segundo tipo, ao máximo, ele é uma espécie de Hidra[2]. Arranco e afasto suas cabeças de perto dos meus olhos, mas elas se multiplicam, e se aproximam - sobretudo por razões institucionais. A convivência com o segundo tipo de motivação é obrigatório, em certa medida, porque constituem cenários profissionais, acadêmicos e, na pior das hipóteses, linhas perdidas entre pessoas e lugares interessantes. Perceba que - por razões já citadas - nem os jogos na modalidade online me atraem.Vínculos destrutivos são dispensáveis.

***

SOBRE AS ANGÚSTIAS
As percepções descritas acima partem da análise das relações diárias em diferentes instituições. Essas relações, em certa medida, me angustiavam porque eram difíceis de descrever, e resistentes à crítica dadas as suas estratégias de defesa ativa bastante escorregadias. Parecia simplesmente uma conspiração invisível e muda, envolvida por material opaco que ocultava a raiz da sua maquinaria, seu projeto de funcionamento. Noutras palavras: o protagonismo e o objeto de investigação científica presumivelmente neutros constituem/são uma ideologia descritiva (e nada reativa) sobre a cultura dominante, que dissimula sua inspirada “arte pela arte” e sua etérea “fruição como meta maior” (espécie de demodê).

Dois textos desnudaram as questões acadêmicas que tanto angustiaram meus primeiros passos no mestrado. Um deles é De Ialodês a Feministas, de Jurema Wernek, que mostra o quanto algumas modalidades feministas podem tentar nos dissuadir da nossa importância, do nosso protagonismo histórico e - sobretudo - da nossa luta específica como sujeitos mulheres. Outro que mostra a camada oculta de despolitização da teoria e da construção dos saberes (epistemologia) é uma longa entrevista com Angela Davis em que ela centraliza problemas reais como objetos de análise tanto quando o olhar sobre eles e trata de questões contemporâneas tendo em vista o perigo e a perversidade do imperialismo, suas necessidades e práticas universalistas, humanistas e homogenizadoras.

Num mundo em que pretos podem ser membros da Ku Klux Khan, é fácil desenraizar uma ideologia e planta-la num solo “novo” que sempre esteve ali, mas na dimensão do invisivel. É fácil dizer que contradições básicas de conceitos podem se unir, ainda que grotescamente. Posta e brilhante está a chance de tornar-se algo que sempre foi perpetuamente impedido de ser, por razões de dissidência ideológica. É pressuposto que as ideias centrais (racismo, guarda patrimonial) foram abolidas e subentendido que as ideias centrais cairam por terra, porém, caso isso fosse verdade, essa tradição não precisaria existir. Considerando tal cenário, falta uma peça. A camada enterrada é: a oposição entre KKK e pessoas negras não é etérea, mas uma oposição materializada de vida e morte tributária do pressuposto de que há diferenças físicas/genéticas/espirituais hierarquizadas e, sobretudo, imutáveis. Em suma, o novo solo propiciará a reorganização da planta, contribuirá para uma ocultação da contradição primeira. A presença do marginalizado, em si, autorizará a permanência da instituição. Essa presença representa uma submissão coletiva, uma deslegitimação coletiva, pois nenhum corpo marginalizado é avulso; ele traz toda a comunidade.

Com isso, não culpabilizo o corpo estranho absorvido (porque sua atitude é uma complexa rede psicológica e histórica), mas busco, por um lado, evidenciar o problema e, por outro, propor respostas político-teóricas às questões do modo de saber e modo prático de identidade pós-moderna.

DESIGUAL ENTRE IGUAIS
Estar numa comunidade de iguais quando não se é igual (refiro-me aqui às percepções sociais, não à biológica) tem um custo alto à subjetividade, pois a Verdade das intenções, das oposições e dos fatos, ao mesmo tempo que opõe, é uma espécie de areia movediça que engloba e absorve. Há uma voz audível e a segunda, uma voz inquestionável. O preço pode ser o crescimento de uma voz vinda de fora dentro de mim. Ou de ser interpretada como nódoa, excêntrica, radical, exótica, e, não raro, interpelada sobre questões de mulheridade Negra num sutil gesto de forçar-me a depor contra mim/nós sob o pretexto dos filtros de boa convivência. Nessas interpelações é aberto um espaço de fala frágil, no sentido de que as noções de mundo hegemônicas estão naturalizadas e tudo de repente parecerá limitante, afinal, tudo é tão complexo para centralizar assim em questões narcísicas, como falar de mulher, pobreza e de negritude...

Sem Grada Kilomba, Frantz Fanon e Audre Lorde não existiria escapar do destino inexplicável/inexprimível decorrente desse tratamento desigual, de inserção caridosa. Caridosa porque o medo de perder o que se tem é norteador das relações ao mesmo tempo que a divisão é incentivada. Nesses dois movimentos que parecem opostos, temos um terceiro ponto: a doação do excedente, não por dó, culpa ou compaixão, mas da materialização repetida das desigualdades. Caridade não é Compaixão assim como o “preço alto” de dar esmola não significa “conexão de corações” e "sentir junto".

A FUNÇÃO DE INTELECTUAIS SOBRE A REALIDADE FABRICADA
A maior parte dos textos acadêmicos que tenho lido e tratam das políticas de identidade costumam abordá-las num âmbito das complexidades (circulares) ad infinitum. Descorporificam a questão do pertencimento de uma forma que, não raro, discordo e desconfio. No mesmo instante, eu ouço a voz invisível questionar:

- Você está realmente entendendo?

Essa frase me persegue nas leituras, e, não por inabilidade, considerando minha formação acadêmica e trajetória como leitora, mas porque é a estratégia de deslegitimação primária investida contra a minha presença em solo onde não sou bem vinda. Trata-se de um desencontro entre experiência do/a autor/a e a minha, desencontro esse, motivado pela diferença de prioridades, interesses (políticos) e desejos (de revolução). Também se trada da noção de ciência e da crítica limitada ao elemento de mediação: a crítica aos clássicos. Você leu os clássicos? E por que deveria? Não apenas os clássicos repletos de aura pouco me interessam e intimidam aquelxs individuxs não familiarizadxs com a tradição acadêmica, mas, até mesmo a demanda por ler os clássicos como requisito para construir a crítica emudece. Esse modo colonizado de formular saberes dificulta a autonomia como intelectual oriunda das margens à medida que desarma e debilita nossa ação reivindicatória. O direito de criticar é um cercadinho no alto simbólico da Via Láctea (que eu chamo de The Sims).

Por outro lado, há quem diga que acessar espaços de privilégios retira o caráter de subalternização. Embora essa transição possa nublar, mudar ou intensificar a lealdade inicial, a fagulha da revolta será evocada sempre que as causas da raiva (injustiça e não direito de fala) reassumirem a superfície dos discursos científicos. Nesse sentido, o comprometimento desta e deste intelectual é em difundir suas metas, seus objetivos, seu modo de operar/construir a realidade, propostas tanto na vida, como na escrita. Muitas questões atravessam, mas é imprescindível pensar que elas não são tiros isolados. Se aparentarem ser, é necessário o momento de pausa para refletir e desmascarar questões e possibilidades.

A questão das fronteiras, por exemplo, raramente é observada a partir de locais de fala marcadamente interessados; Em geral, temos negros e pessoas não brancas desenvolvendo pesquisas sobre o ser/estar no mundo, mas ainda que a voz narrativa se posicione quanto à raça/cor, perceberemos nuances de objetividade científica, escolha lexical e escolha das nódoas históricas pouco relacionadas aos interesses da cor como corpo social vitimizado. A crítica ao sujeito desnuda a sujeição, mas continua centralizada na individuação, na observação de binóculo, no deixa estar. No mundo real, dos campos em disputa, essa postura a-crítica, e comprometida politicamente com um esvaziamento dá continuidade (agora “consentindo”) aos shows de curiosidades dos tempos modernos. Um preto KKK, um preto híbrido pode se constituir como excessão, como pretos científicos, mas o campo não alivia sacrifícios humanos. Os navios negreiros, o tronco, a casa grande se atualizam minuto a minuto.

A leitura do mundo descrita por Frantz Fanon, Angela Davis, Sueli Carneiro, Jurema Wernek e Grada Kilomba evidencia seus objetivos e interesses de forma nítida, bem de perto [*] e, por isso mesmo, radicalmente comprometidos com o fim das desigualdades. Essas teóricas erguem das profundezas do esquecimento os fragmentos históricos imprescindíveis para nós - pessoas Negras interessadas em nossa história e na justiça social - e promovem novos olhares aos fragmentos que estão na superfície, porque foram desvinculados de uma contextualização nossa. Mas o novo mundo não é fundado pelo olhar do ocidente? É possível emancipação real se estamos presas à língua e à cultura?

Matrizes brancas dos saberes afirmam que a experienciação de tecnologias da informação (CANCLINI, 2008) impossibilita que as culturas permaneçam puras, mas a questão de pureza e da ideologia supremacista não tem origem nos segmentos marginalizados, afinal:

  1. a questão da identidade racial - para nós - nada tem a ver com a reivindicação de pureza;
  2. o que teóricos chamam de hibridismo, na real, é uma paisagem de fragmentos a partir de violência epistemológica e simbólica extremas, que usurparam, expropriaram, espoliaram conhecimentos, almas, bens materiais e ocultaram as diferenças étnicas dos povos negros que foram escravizados (e jamais foram escravos).
  3. A ideia de “colapso”, “crise” e “caos” envolvendo as identidades descreve uma ideia que pretende se instaurar. O alarde do fim do mundo deixou de ter anjos e demônios e passou a tratar-se duma oposição opinativa, distante, pretensamente científica e baseada nos apagamentos daquelas árvores em solos novos.


É impressão (só) minha ou a ductibilidade e hibridização das culturas como categorias analíticas tendem a invisibilizar o terrorismo, a dominação cultural, a imposição e a apropriação real?

FEMINISMOS, HISTÓRIA DAS MULHERES, GÊNERO, RAÇA E SABER CIENTÍFICO
A história dos Feminismos e das Mulheres tem sido narrada em três grandes ondas protagonizadas pelos Estados Unidos e pela França, impérios Modernos que são avessos ao essencialismo e ao fundamentalismo como se fossem diametralmente opostos à igualdade e à politização. Avessas às essências, mas universalizaram à sua maneira até saltarem as especificidades (?) na década de 70: raça, cor, etnia, classe, sexualidade… a nossa história começa aqui… não fosse a certeza de que antes da exploração colonial, Segundo Werneck (2008), na África Subsaariana (não a idílica, a histórica) havia organizações políticas de mulheres que celebravam o poder de agenciamento, força de vontade e a própria sensualidade (nos múltiplos usos do erótico).

Nossa integridade foi mantida, segundo Davis, pelo pertinente poder de imaginação (vislumbre do futuro) e por um sentimento de comunidade empoderador, comprometido em desafiar e intervir na realidade social, sem o pernicioso culto à excepcionalidade. No ser em si jaz a explicação do critério da história das mulheres. Pluralizar os Feminismos significa nada (ou mea culpa), se não derem lugar à pluralização, à escavação e à recuperação de memórias roubadas.

A tradição tecida pelos vencedores - e pelas pessoas que têm tempo de ler/escrever - está acessível porque é incorporada ao nascermos. Repetí-la é o óbvio, difícil é perceber-se fora dos círculos de cidadania nos quais busca inscrição. Por esse motivo, sob o risco de soar como o que não quer ser, encontraremos negros fazendo piadas autodepreciativas, descrevendo situações distantes da pele, bem como feministas acadêmicas que, na ânsia de pertencer a algo digno, a se equipararem aos homens, pedem desculpas pelo carma de histórico e, com isso, deixam assassinos (simbólicos) saírem impunes. Não aponto culpados, mas a inexistência de ponto zero e de muros para permanecer. Com culpa ou sem culpa, um corpo assassinado continua assassinado. Aliás, que bela (outra) história seria aquela na qual Orfeu, pedindo desculpas, resolvesse o deslize com Hades.

Pensar no potencial sedutor de ser absorvida pelos poderosos (estocolmo), que o terror vem de quem tem poder (terrorismo), diferenciar culpabilização da vítima de incriminação ou escravização/subalternidade e escravidão/subalterno dizem muito sobre experiências pessoais levadas a sério. É fundamental, portanto, saber quem você é, ao enveredar no campo minado das Universidades e, principalmente, ao ver, ouvir e ler.. Nesse grão de mundo, a exclusão não é maior nem menor que no “mundo exterior”, é apenas a mesma. Apesar disso, como mecanismo de defesa, propõe o enfoque de ceder espaço à diferença. Então - sendo otimista - ser pretx, LGBTTTIQ e pobre pode ser enaltecido em alguma medida, pode ser o diferencial que ilustra a temática, a excessão que confirma a regra. A fratura estabelecida pela contradição “enaltecer” e “ilustrar” diz tudo sobre a inserção das categorias (devido às lutas próprias) e negação da diferença. A fratura traz à tona o que há de pior na democracia: o ato de dominar é um fato livre de intenção má, a homogeneização é o bem comum. A homogeneidade passa a ser central (fins) no intuito de ser relativizada entre a intenção ou a não intenção (razão) e, o mais perverso: esquecer mais ainda os corpos que não pesam, os corpos que não falam (meios).

PÓS-PÓS IDENTIDADE/ PÓS-PÓS MODERNIDADE
Num primeiro momento, minha dúvida foi: por que professoras/professores universitárias/os recheiam suas ementas de curso com Feminismo Negro e teóricos Pós-Coloniais? Por que, ora as discussões, ora os próprios textos me causavam tanta angústia e as vozes nublavam o que mais me parecia importante? Por que o emudecimento de questões reais? Quais dos desafios apontados por Audre Lorde (1984) e bell hooks são neutralizados para compor um discurso translúcido apropriado ao lugar de fala acadêmico, branco, classe média e não heterossexual? Quais os desafios são silenciados cotidianamente e endossados pelas escritas descritivas e apropriadas leituras perversas de um Stuart Hall?

Interpelada pela revista “Caros Amigos” a filósofa Sueli Carneiro afirmou: “Entre direita e esquerda, continuo preta”. Embora o afastamento possa distorcer o efeito esperado naquela ocasião, retomo essa máxima no intuito de problematizar outro ponto da consciência intelectual esquerdista. Nascer numa família de esquerda é um privilégio que eu só descobri na fase adulta. O que se apresentou como “o certo” constitui um repertório de crítica, de exaltação à liberdade e de fruição artística. Comunicar-se com a SUBJETIVIDADE das pessoas que usam uniforme, cultuar os clássicos subversivos, odiar gralhas culturais e futilidades, valorizar o que sabe, não o que tem, educação financeira, o culto à elevação da arte (acima de tudo) engajada e o esforço individual em mudanças plurais modularam a minha vida com uma naturalidade tamanha que me assustou percebê-la.

Assustou porque eu a percebi pelos seus limites e pela percepção que minhas amigas Negras mostraram ter de mim. Descontinuidade entre “o bom gosto” aprendido e as verdades do RAP, da fome, das prioridades. Assustou porque a postura “naturalizada” tem uma ancoragem temporal evidente, então, quem é da velha esquerda não concebe questões da mulher como centrais, black power colorido, veganismo, transsexualidade e transgênero.

É privilégio ter crescido num ambiente que propiciou a autoconfiança, a imaginação, o questionamento e a noção de que é preciso saber reivindicar. Mas esse privilégio é redimensionado a partir do estranhamento que a consciência da incorporação dele em mim provocou. Algo como o mundo maniqueísta em que nasci no lado certo entrou em choque ruidoso com as verdades emergentes pela política de identidades. Por um lado o posicionamento à esquerda, materialista, dialético e, por outro, a percepção do quão burguês isso era trouxe pra perto a vontade de entender a operacionalidade do conceito de identidades híbridas...

Porém, embora eu possa narrar uma complexa trajetória de formação racial, intelectual e artística em movimento desordenado, o fato é que a união de contrários permite optar por alguma identidade. Isso é a binária imagem do chicote: ou você opta pela ponta que bate ou pela que apanha. Não vejo essa aplicabilidade nos textos. Eles costumam descrever a falsa consciência, aquele perfil do "assimulado" pra dizer que a escravização foi terrível, MAS os negros vendiam negroa; mas o sonho do oprimido é ser o opressor.

A aplicabilidade reside na escolha dos elos mais fracos, da ponta em desvantagem, desde que a percepção de si pelo Um se revele de alguma forma. Não sou colorista, acredito que reivindicação de negritude tem a ver com experiência de descriminação, afinal, não foram pardos que inventaram a discriminação racial. Elas transitarem mais do que, não é o meu ponto. Sofrimento não se mede e não se relativiza. Isso significa que eu ignoro a diferença nas relações sociais? Não. Isso significa que elas precisam reconhecer os privilégios, obvio, mas que não são O problema. Como nós, elas precisam fortalecer a consciência e almejar a autonomia.

Essa consciência de que é preciso reivindicar em oposição ao desconforto sem forma, revela o que chamo de “perversidade”. Esta consiste na violência perpetuada na surdina, em movimentos de “esperteza não declarados” e “golpes baixos”. A perversidade começa na escolha de obras a serem traduzidas que refletem o recortado posicionamento político do intelectual e do seu campo de atuação. Se não fosse interessante para acadêmicos interessados, engajados e comprometidos (no fim das contas todo mundo é), essas pessoas simplesmente apagariam negros, latinos e brasileiras Negras assim como apagam Angela Davis e outras intelectuais radicais.

O critério básico de destaque intelectual - além de network - é a disposição para negociar o que se entende como “função social do intelectual”. Em tempos “rígidos”, o “inimigo” era sólido e, atualmente, ele (oportunamente) liquefaz critérios numa sopa de letrinhas. Esse é um descompasso entre a teoria e o seu uso político, a sua prática interesseira. Está em jogo aqui a concretude, não a legitimação dos conceitos em si. É ótimo pensar em gênero como categoria de análise, porém, é perniciosa a concretude que faz uso de “gênero” para justificar a opinião de homens em relação ao aborto. Num mundo ideal isso será possível? Provavelmente sim, mas e no agora? E quanto ao abandono de filhos, à negação de sua presença? E ao descarte silenciosamente permitido pelo privilégio? Esse tipo de questionamentos que eu faço aos conceitos de hibridismo e multiculturalismo desnudam a angústia. Tal revelação mostra que os conceitos têm a função subversiva minadas: apenas ilustram os diversos textos sobre Identidades Pós Modernas que tanto compõem ementas de disciplinas que venho cursado.

Ao meu ver, as estratégias multicuturais fagocitam questões de justiça social à medida que neutralizam as diferenças e voltam para o estado de neutralidade/objetividade científica apesar de enfeitada por “nasci em x, cresci em y, minha mãe é de z, meu pai é de w, mas eu não sou nada disso porque gosto de A”. Assim como uma árvore de natal é aceitável, permitida e incentivada durante algum tempo nos cantos de salas laicas, o intelectual multicutural é geralmente uma excepcionalidade confortável pra quem cultua, pois não ameaça em nada os privilégios e nem inspira a conexão revolucionária entre subalternizadxs. Onde tudo é tudo e nada é nada, me parece bem fácil esquecer que o mundo não é folclore, carnaval e condições ideais. Mais fácil ainda esquecer das carnes que nada valem, como aquelas no topo da página. Segundo a escritora senegalesa Fatou Miome são corpos que não valem nada onde estavam e, exatamente por isso, arriscam-se rumo às possibilidades de sobrevivência. Embora seja possível pensar nos discursos e nos pontos apresentados pelas “pós”, não há como advogar a favor de seu uso dominante/indevido.

Toda vez que leio sobre hibridismo e identidade como algo (apenas) transitório e autodeclarado, não consigo encontrar (e não é entender) a relação entre o modo como sou percebida e a escolha do outro de dizer que é igual a mim na dor decorrente das violências institucionais e cotidianas, nas práticas interpessoais e no cotidiano profissional. A comunidade (dita) imaginada se eleva dum trauma histórico não superado, não reparado, experiência em que se confunde causa e consequência, porque ambas são a mesma coisa, segundo Fanon. Usualmente, as assimetrias são citadas com efeito de axioma, isto é, um fato evidente, mas nem central, nem coexistindo com a violência. Fala-se com intensa propriedade sobre economia, expansão das culturas,história social e identidade como uma narrativa imaginária; Mas a mutilação de corpos ou é literalmente legada às intempéries e ao mar, ou usada para ilustrar as Verdades escritas nos papéis que lemos.

Estão reduzindo as questões de violência, diante dos nossos olhos, às questões de patrimônio imaterial, no cultural, no que é, mas pode não ser. Para essa abordagem, o orgulho negro, o orgulho lésbico, o orgulho operário e de todas as categorias que tradicionalmente são negadas a centralidade e o protagonismo nada têm a ver com opressão, exceto em sua caricatural finalidade de fetiche.

Temos em "Raça[3]" de Kwame Appiah (1995) um silogismo quase convincente. Ele descreve o conceito de racialismo durante a Antiguidade, na sociedade Grega a partir de fontes textuais. Notamos em sua leitura, grande erudição, pois cita filósofos como Hipócrates e presenças históricas pouco usuais no conhecimento comum sobre aquela sociedade. Notamos também uma descrição exaustiva distante e sem interesses e desejos realmente declarados. Segundo Appiah (1995) , 1) Os gregos sentiam-se superiores a quaisquer povos (pretos ou loiros), pois desenvolveram habilidades devido ao solo infértil; 2) A inferioridade não era incorrigível; 3)Logo, os gregos não eram racistas.

É evidente que há uma violência epistemológica atravessando esses pontos. Primeiro porque não há enfoque nem na presença de outros povos, nem na compreensão de cidadania dos gregos, que excluía a maior parte da população (pobres, mulheres, escravizados) e valorizava o trabalho intelectual e hierarquizava funções de forma muito próxima à contemporânea. Isso não significa que eram racistas por uma questão simples: essa palavra-conceito é posterior. Também não podemos chamar Danaides de feministas, e por aí vai. Em segundo lugar, que abordagem a partir da matéria e das percepções não é necessariamente revolucionária. O que não podemos perder de vista é que a importância que o autor dá ao seu posicionamento no mundo é retórica, é engajamento e política. E quando me refiro à política, destaco principalmente a concepção de Joan Scott (1992): estratégias de manutenção ou rompimento de estruturas de poder e as práticas que reproduzem ou desafiam a ideologia dominante.

Em que lugar desse silogismo está posto, pressuposto ou subentendido que o negro da KKK configura uma falsa consciência?

Ao analisar a escolha desse mesmo individuo sob os termos da hibridez e da multicultura, qual a brecha possível leva a perceber onde a violência está mergulhada? O fato em si não busca pressupostos, métodos, olhares e abordagens menos tradicionais? Como pode o objeto, no século XXI não abalar em nada o sujeito? Como aqueles termos podem içar os corpos mergulhados no Atlântico? Que espaço eles criam para que o individuo filiado à KKK narre sua versão da história? A falsa consciência, o consumo, a colonização parecem ser elementos faltantes… Num último esforço, acaso podemos justapor a teoria aos relatos das viagens de Alice Walker como pacifista pelo mundo todo?

Talvez você pense que os conceitos não se prestam a isso; que eu li errado; que não é pertinente uma pessoa sem títulos e sem o background ideal questionar esses pontos. Ou não: talvez você entenda que o mal estar é sintoma do meu entendimento em construção, localizado e interessado na democracia da abolição (Angela Davis) simultânea à Cura/ descolonização (Grada Kilomba) e, possivelmente, se identifique.

CONCLUSÃO PROVISÓRIA
Afetação evidencia o caráter de denúncia do racismo diário num sofisticado conta-gotas. Ter consciência num mundo como esse é viver em constante estado de raiva e desobediência. É querer a revolta e interpelar o universo de dentro e de fora com uma frequência maior do que o ordenamento de respostas. A angústia nada mais é que o descompasso entre o que preciso situar nas coordenadas ocultadas e a formulação das hipóteses, perguntas e contestações, em suma, o nascer duma motivação crítica prenhe de interesse, desejo e politização.



REFERENCIAS

[*] indiferenciando objeto, sujeito e modo de aprender e dizer sobre ambos. Segundo Kilomba, em While I write, quando ela (nós) escrevemos, deixamos de ser objeto de pesquisa nos tornamos sujeitos.
CANCLINI, Nestor Garcia. Comunicades e cidadãos: conflits multiculturais da globalização. Trad. Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. 7 ed.
[1] Voluir:Tradicionalmente as pessoas escolhem a palavra "evoluir", ainda que desejem ignorar o caráter evolucionista. Minha opção está direcionada à imagem de mudança para qualquer lado admitindo que não há tendência à ordem e, principalmente, ao progresso.
[2] Hidra: "animal fantástico da mitologia grega, filho dos monstros Tifão e Equidna, que habitava um pântano junto ao lago de Lerna, na Argólida, hoje o que equivaleria à costa leste da região do Peloponeso. A Hidra tinha corpo de dragão e sete cabeças de serpente (algumas versões falam em sete cabeças e outras em números muito maiores)[carece de fontes] cujo hálito era venenosoe que podiam se regenerar." Ver: Wikipedia.
[3] APPIAH, Kwame Anthony. Race. In LENTRICCHIA, Frank; MCLAUGHLIN, Thomas. Critical Terms for Literary Stidy. Chicago: The University of Chicago. 2.ed. 1995.
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