TRADUÇÃO: Idade, Raça, Classe e Sexo: Mulheres redefinindo a diferença (Audre Lorde)

Audre Lorde
Audre Lorde: "Não são as nossas diferenças que nos dividem. É a nossa inabilidade em reconhecer, aceitar e celebrar tais diferenças".

CONSIDERAÇÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DO ENSAIO DE AUDRE LORDE ATUALMENTE
#marchadasmulheresnegras
#mulherpretaquerviver
#consciencianegra

Se você nunca ouviu falar de Audre Lorde (1984) pode ser que me pergunte a importância de ler um texto que fala sobre categorias neste momento em que vive-se em busca de desconstruir ideas, palavras e as categorias em si. Talvez você até pense interiormente que categorias reafirmam diferenças no sentido de manter a desigualdade.

Acredito que alguns modos de compreender a desconstrução parecem comprometidos em destruir antes o essencialismo político com a desculpa de que não existe homogeneidade. Ora, é óbvio que somos diversas em termos de subjetividade, visão de mundo, compreensão das coisas. O ponto a ser demarcado não é reafirmar ficções, ideologias, que são atribuídas aos corpos. O ponto é que há pessoas que, visivelmente, são brutalizadas, privadas de direitos, impedidas de acessar espaços a fim de falarem por si mesmas. Essas pessoas - nós - temos total legitimidade para nos agruparmos em busca de direitos que a sociedade se recusa a reconhecer/compreender.

Tenho percebido, principalmente em âmbito acadêmico, um contínuo esforço em desconstruir categorias "negro/a", "mulher" e "não heterossexual" (pessoas que têm direitos negados diariamente) com uma força desproporcional ao esforço de desconstrução de "branquitude", "eurocentrismo", "academicismo" e "masculinidade-cis". Trazer indivíduos para o "outro lado", permitir "aburguesar-se" é antes fagocitose (lembra do capitão do mato?) que desconstrução. Isso não muda a condição de ninguém. Preta e preto famosos continuam sendo pessoas pretas. É um problema estrutural, como disse Beatriz Nacimento (1989):

A questão econômica não é o nosso grande drama. Apesar de ser um grande drama. O grande drama é justamente o reconhecimento da pessoa do homem negro que nunca foi reconhecido no Brasil."

(Beatriz Nacimento in Ori - Direção: Raquel Gerber -1989. 131 min País: BRA Gênero: Documentário)

Quando Nacimento (1989) diz que os negros não foram reconhecidos no Brasil, ela enfatiza o descaso, a invisibilidade sofrida no cotidiano das relações interpessoais e nas políticas. A afirmação da categoria mulher e Negra, por exemplo, vai contra a indiferença que mantém as injustiças. Mantém porque é impossível lutar contra o invisível, o inexistente. Reafirmar que somos mulheres evidencia que a misoginia existe, que o patriarcado-capitalista existe, que isso estrutura todas as relações. Precisamos afirmar politicamente tendo em vista que são consequências históricas, não essências biológicas.

Reafirmarmo-nos mulheres Negras é um movimento ambivalente: nós temos trajetórias históricas que nos aproxima, dificuldades contemporâneas decorrentes da história de violência, saque e exploração; somos diversas? Somos. Diferentes modos de estar no mundo. Mas ainda não é o mundo que queremos viver. Embora o mundo caminhe rumo à igualdade, ainda não é justo e, enquanto não houver equidade de oportunidades, fala e acessos haverá resistência. Enquanto for necessário resistir, esse texto será uma semente, um presente, um convite à reflexão sobre as estratégias de política pessoal...o que é diferente de personalista.

Deixo vocês com a nossa tradução clandestina.

IDADE, RAÇA, CLASSE E SEXO: MULHERES REDEFININDO A DIFERENÇA*
(Audre Lorde**)

Boa parte da história europeia/ocidental nos condiciona para que vejamos as diferenças humanas como oposições simplistas: dominante/dominado, bom/mau, cima/baixo, superior/inferior. Em uma sociedade em que o bom se define em função dos benefícios e não das necessidades humanas, sempre deve existir grupos de pessoas que, mediante a opressão sistemática, são produzidas[2] para sentir que excedem, pra ocuparem o lugar de inferiorização e desumanização. Em meio a essa sociedade, aquele grupo é composto por negros[3] e pessoas de países subdesenvolvidos[4], pessoas da classe operária, pessoas idosas e mulheres.

Como uma mulher de quarenta e nove anos de idade, Negra, Lésbica, Feminista, Socialista, mãe de duas crianças, incluindo um garoto, e membro de um casal inter-racial, eu usualmente encontro partes de mim em algum grupo definido como Outro, desviante, inferior, ou apenas algo que deu errado. Tradicionalmente, na sociedade estadunidense, é solicitado a membros de grupos oprimidos e objetificados que se esforcem por salvar o abismo que separa a realidade da nossa vida da consciência do nosso opressor. Com o objetivo de sobreviver, aqueles para quem a opressão é tão genuinamente norte-americana como a torta de maçã, sempre temos sido obrigados a ser bons/boas observadores/as e familiarizados com a linguagem e as maneiras do opressor, muitas vezes inclusive adotar esses modos por uma ilusão de proteção. Sempre que se planta a necessidade de uma pretensa comunicação, quem se beneficia de nossa opressão nos pede para compartilhemos com eles o nosso conhecimento.

Em outras palavras, isso significa que é do oprimido a responsabilidade de ensinar aos opressores seus erros. Eu sou responsável por educar os professores que depreciam a cultura dos meus filhos no colégio. Das pessoas negras e das que habitam países em desenvolvimento, espera-se que sejam responsáveis por educar a população branca afim de que reconheçam a nossa humanidade. Das mulheres, espera-se que eduquem os homens. Das lesbianas e dos gays que eduquem o mundo heterossexual. Os opressores conservam sua posição e ignoram a responsabilidade de seus próprios atos. Isso é uma drenagem de energia constante que, provavelmente, seria melhor usada na redefinição de nosso próprio ser e na construção realista dos meios para modificar o presente e construir o futuro.

A rejeição institucionalizada da diferença é uma necessidade básica para a economia do lucro que necessita da existência de um excedente de pessoas marginalizadas. Essa economia em que vivemos tem programado a todxs nós para que reajamos com medo e ódio ante as diferenças que existem entre nós e as manejemos dessas três maneiras: 1) ignorando isso e, 2) se não for possível, copiar isso se nós pensamos ser dominante, ou 3)destruir se as consideramos subordinadas. Porém, não possuímos modelos de relação igualitários para nos relacionarmos através das diferenças. Como resultado, tais diferenças tem sido invisibilizadas[5] e postas a serviço da segregação e da confusão.

Entre nós existem diferenças bem reais de raça, idade e sexo. Mas não são essas diferenças que nos separam. O que nos separa é, ao contrário, nossa recusa a reconhecer as diferenças e a analisar as distorções que derivam da falsa nomeação tanto a essas diferenças quanto aos seus efeitos na conduta e nas expectativas humanas:

Racismo, a crença em uma superioridade inerente de uma raça em relação às demais e, portanto, em seu direito de dominação. Sexismo, crença na superioridade inerente de um sexo e, por tanto, em seu direito de dominar. Etarismo. Heterossexismo. Elitismo. Classismo.

Deve haver objetivo permanente de cada uma de nós eliminarmos essas distorções de nossa vida e, ao mesmo tempo, reconhecer, reclamar e definir as diferenças que constituem a base sobre a qual essas ditas distorções se impõem. Porque todas nós temos sido educadas numa sociedade onde aquelas distorções são endêmicas e atravessam as maneiras como vivemos nossas vidas. Com excessiva frequência canalizamos as energias necessárias para reconhecer e analisar as diferenças fingindo que as diferenças sejam barreiras inegociáveis ou simplesmente inexistentes. E ela resulta em isolamento voluntário ou mesmo, em conexões danosas e falsas. Em ambos os casos nós não desenvolvemos os meios de usar as diferenças humanas como trampolim que nos empurre através da criativa mudança em nossas vidas. Em lugar de falar de diferenças, falamos de desvios humanos.

Em algum lugar, num canto da consciência, lá há o chamado da norma mítica, cada um de nós em nossos corações, sabe que "isso eu não sou". Nos E.U.A, essa norma é normalmente definida como branca, magra, macho, jovem, heterossexual, cristão e financeiramente seguro. É nessa norma mítica onde residem as armadilhas de poder da nossa sociedade. Para aquelxs de nós que estamos fora do referido poder, muitas vezes identificadxs de uma maneira que nos faz diferentes e pressupomos que tal identificação é a causa básica de toda opressão, porém, esquecemos-nos de outras distorções relativas à referencia, algumas das quais, talvez pratiquemos. No atual movimento de mulheres é comum que as mulheres brancas se centrem em sua opressão enquanto mulheres e ignorem as diferenças de raça, orientação sexual, classe e idade. A palavra sororidade leva a uma suposta homogeneidade de experiências que não existe realmente.

As diferenças de classe não reconhecidas privam as mulheres da energia e da visão criativa que poderiam proporcionar entre nós mutuamente. Há pouco tempo, o coletivo de uma revista de mulheres adotou a decisão de publicar um número que incluía apenas prosa, alegando que a poesia era uma manifestação literária menos "rigorosa" e menos "séria". Pois bem, a maneira em que se materializa a nossa criatividade vem, muitas vezes, determinada por nossa classe social. A poesia é a mais econômica das manifestações artísticas. É a mais oculta, que requer menos esforço físico e menos materiais, e a que pode ser realizada entre turnos de trabalho, em uma despensa de cozinha de hospital ou no metrô, usando qualquer pedaço de papel. Esses últimos anos, em meio à escrita de um romance e com pouco dinheiro, cheguei a compreensão de que há uma enorme diferença entre as exigências materiais de entre poesia e prosa.

Já que reivindicamos uma literatura própria, temos observado que a poesia tem sido a principal voz de pessoas pobres, da classe operária e das mulheres de Cor[6]. Pode ser que, para escrever prosa, seja necessário dispor de um teto todo seu ***, porém, também faz falta: as resmas de papel, a máquina de escrever, além de tempo o suficiente. Requisitos de produção de artes visuais também contribuem para determinar em termos de classe a quem pertence cada forma artística. Nesses tempos em que os materiais têm preços abusivos, quem são nossos escultores, pintores e fotógrafos?Quando falamos de uma cultura de mulheres de ampla base, temos que nos conscientizar dos efeitos que tem as diferenças econômicas e de classe na aquisição dos meios necessários para produzir arte.

Tratamos de criar uma sociedade em que todos podemos avançar, porém, a discriminação baseada na idade é outra distorção das relações que interfere em nossa visão. Ao fazer pouco caso do passado, favorecemos a repetição dos erros. O "abismo geracional" é uma arma social importante para qualquer sociedade repressora. Se as pessoas jovens de uma comunidade consideram que pessoas idosas são desprezíveis, supersticiosos ou supérfluos, nunca serão capazes de somar forças com elas para analisar a Memória viva da comunidade, nem tampouco de perguntar "por quê?". Dessa relação deriva uma amnésia histórica que nos mantém ocupadxs com a necessidade de inventar a roda a cada vez que saímos pra comprar pão.

Nós vemos na necessidade de repetir e de voltar a aprender as lições que já sabiam nossas mães porque não transmitimos o que aprendemos ou porque somos incapazes de escutar. Quanta vez foi dito "o que estou dizendo agora?". Por outro lado, "Quem poderia ter imaginado que nossas filhas voltariam a atormentar seus corpos modelando com faixas, cintas e salto alto".

Ignorar as diferenças de raça entre mulheres e as implicações dessas diferenças resulta numa ameaça séria para a mobilização conjunta de mulheres.

Se as mulheres brancas esquecem os privilégios inerentes à sua raça e definem a categoria mulher baseando-se exclusivamente em sua experiência, as mulheres Negras se convertem nas "outras", as estranhas cuja experiência e tradição são tão compreensíveis quanto alienígenas. Um sinal disso é o sinal de ausência da experiência de mulheres de Cor nos cursos de Estudos da Mulher. A literatura de mulheres de Cor raramente é incluída nos cursos de literatura de mulheres e, praticamente nunca em outros cursos de literatura ou nos estudos gerais sobre mulheres. A recusa é muitas vezes justificada pelo fato de que "apenas mulheres de Cor" podem ensinar essa literatura, ou que é muito difícil de compreender, ou que não se pode acessar uma experiência "tão diferente". Tenho ouvido esta argumentação de mulheres brancas que, por mais precária que seja a inteligência, não tem problema algum em lecionar e analisar o trabalho oriundo de experiências vastas de Shakeaspere, Molière, Dostoyevky e Aristófanes. É óbvio que há outra explicação.

Essa é uma questão complexa, mas eu creio que uma das razões para a qual mulheres brancas encontram dificuldade em ler autoras Negras é a relutância em enxergar Negras como mulheres e diferentes delas. A análise da literatura das mulheres Negras requer, de fato, que nos veja como um grupo com todas as nossas complexidades - como indivíduos, como mulheres, como seres humanos em lugar de substituir a verdadeira imagem das mulheres Negras por estereótipos problemáticos, porém familiares que a sociedade proporciona. Na minha opinião, o mesmo pode se dizer a respeito da literatura de outras mulheres de Cor.

A literatura de todas as mulheres de cor recria a textura de nossas vidas e, muitas mulheres brancas estão empenhadas em passar por cima das diferenças autenticas. Pois sim, se elas consideram que a inferioridade de uma das partes é consubstancial à diferença, o reconhecimento disso pode acarretar sentimentos de culpa. Permitir que as mulheres de Cor saiam dos limites dos estereótipos provoca um sentimento de culpa à medida que ameaça a situação cômoda das mulheres que vem a opressão como uma opressão relacionada exclusivamente ao sexo.

Negar a reconhecer as diferenças impede de ver os diversos problemas e perigos os quais enfrentamos todas nós como mulheres. Na estrutura de poder patriarcal, um dos privilégios pontuais é ter a pele branca, uma vez que o enredo usado para neutralizar Negras e brancas não é o mesmo. Por exemplo: é fácil para a mulher Negra ser usada pelo poder estrutural através do homem negro, não porque eles são homens, mas porque eles são negros. Por outro lado, para mulheres Negras, é necessário o tempo todo separar as necessidades do opressor dos seus próprios conflitos legítimos no interior de suas comunidades. Esse problema não existe para mulheres brancas. Mulheres Negras e homens negros têm compartilhado opressão racista e ainda compartilham isso, porém, de diferentes formas. A opressão compartilhada nos tem feito desenvolver defensas e vulnerabilidades conjuntas que não são duplicadas na comunidade brancas, exceto em relações entre judeus e judias.

Por outro lado, mulheres brancas encaram a armadilha de serem seduzidas a se ligar ao opressor sob pretenso compartilhamento de poder. Essa possibilidade não existe dessa mesma forma para mulheres de Cor. As cotas mínimas de participação que, às vezes, nos oferecem não são um convite a ascendermos; nossa outridade racial é uma realidade visível que torna a armadilha visível. Para mulheres brancas, a disposição delas, há uma série de supostas alternativas e recompensas por identificarem-se com o poder patriarcal e suas armas.

Nestes tempos em que Era**** vem a baixo a economia é abalada e aumenta o conservadorismo, as mulheres brancas são mais propensas que as mulheres Negras a caírem na perigosa arapuca de crer que se elas forem suficientemente boas, belas e doces, se ensinarem aos filhos boas maneiras, a quem deve detestar e que deverá se casar com um bom partido, isso permitirá coexistirem em relativa paz com o patriarcado, ao menos até que um homem necessite de posto de trabalho ou até que cruze com o violador do bairro. É certo que, a não ser que se viva em trincheiras, é difícil recordar que a guerra contra a desumanização jamais cessa.

Nós mulheres Negras e nossas filhas sabemos que a violência e o ódio formam parte inextrincável da trama de nossas vidas e que não há descanso possível. Não apenas enfrentamos a eles nas barricadas ou nos becos escuros, mas também nos lugares onde nos atrevemos a verbalizar nossa resistência. Para nós, a violência está cada vez mais entrelaçada ao nosso cotidiano; a encontramos no supermercado, na sala de aula, no elevador, na clínica, no pátio da escola, do encanador, do padeiro, da vendedora, do motorista de ônibus, do caixa-de-banco, da garçonete que não nos atende.

Alguns problemas nós compartilhamos como mulheres, outros não. Seu medo de seu filho crescer e adentrar o patriarcado e testemunhar contra você, nosso medo de nossas crianças sejam arrastadas por carros e jogadas na rua, e você retomará mais uma vez as razões de morte deles.

Aquele tipo de diferença tem sido menos obliterado para POC. Aquelxs de nós que são Pretas poderiam ver que a realidade de nossas vidas e nossos esforços não nos torna imunes aos erros da invisibilização e não-nomeação da diferença. Na comunidade negra onde o racismo é uma realidade vivida por todxs, diferenças entre nós muitas vezes parecem perigosas e suspeitas. A necessidade de unificação é, muitas vezes, nomeada erroneamente como uma necessidade de homogeneidade, e o Feminismo Negro comete o grande erro de trair sua visão em prol dos interesses gerais. Devido à batalha contínua contra o apagamento racial que pessoas Negras compartilham, algumas mulheres Negras ainda se recusam a elaborar que nós somos também oprimidas porque somos mulheres, e a hostilidade sexual contra mulheres Negras é praticada não apenas pela sociedade branca e racista, mas implementada através de nossas comunidades negras com sucesso. Isso é uma doença que golpeia o coração da nação negra e o silencio não fará com que o problema desapareça. Exasperados pelo racismo e as pressões da falta de poder, violentar a atacar Negras e crianças muitas vezes se torna nossa comunidade um estandarte, uma das quais medidas de virilidade. Em suma, é raro aludir a esses aspectos de ódio contra a mulher quando se fala de crimes cometidos contra as Negras.

O grupo de mulheres de Cor é o pior remunerado nos EUA. Primeiro nós somos submetidas primeiro a abusivas violências como aborto e esterilização aqui e no exterior. Em certas partes da África, garotas pequenas continuam sendo circuncisadas para "manter a docilidade para o prazer dos homens". Esse fato não é um affair cultural (sexualidade agressiva) como inistiu Jomo Kenyatta, isso é um crime contra a mulher Negra.

A literatura de mulheres Negras é permeada de dor de frequentes ataques, não apenas pelo patriarcado racista, mas também por homens negros. Já a necessidade de uma história de compartilhamento que nos constituiu, mulheres Negras, particularmente vulneráveis à acusação falsa de que o anti-sexismo é anti-negro. Tal como assinala o escritor negro Kalamu ya Salaam: enquanto houver dominação masculina haverá violação. Apenas a revolta das mulheres e a tomada de consciência de suas responsabilidades na luta contra o sexismo por parte dos homens poderá acabar com essas violências sexuais.

As diferenças existentes entre as mulheres Negras também recebem nomes falsos e se empenham na separação uma das outras. Sendo como eu sou, feminista lesbiana e Negra, que se sente cômoda com os diversos e numerosos ingredientes de sua identidade, assim como uma mulher comprometida com a liberação racial e sexual, me encontro uma vez mais na situação de que se me pede que abandone algum dos aspectos de mim e o apresente como se fosse o todo, eclipsando e negando as demais partes que me compõem. Porém, viver assim é destrutivo e fragmentário. Para concentrar minhas energias necessito integrar todas as partes do que eu sou, sem ocultar nada, permitindo que o poder que emana de minhas distintas fontes de minha existência flua livremente entre meus distintos seres, sem o impedimento de uma definição imposta desde fora. Somente assim posso me por, com todas as minhas energias, a serviço das lutas às quais me entrego e formam parte de minha vida.

O medo das lesbianas, o de ser tachada como tal, tem levado muitas mulheres Negras a testemunhar contra si mesmas. Há algumas de nós que têm se lançado à alianças destrutivas e outras que tem sido levadas à desesperação e ao isolamento. Nas comunidades de mulheres brancas, o heterossexismo, às vezes, o resultado de uma identificação com o patriarcado branco e constitui uma recusa a essa independência das mulheres identificadas com as mulheres que permite que sejam elas mesmas em vez de estar a serviço dos homens. Outras vezes reflete a mortal crença na colaboração protetiva de relacionamentos heterossexuais, as vezes o auto-ódio que toda mulher deve lutar contra.

Estas atitudes estão presentes em alguma medida em todas as mulheres, mas em mulheres Negras onde se encontram maiores ressonâncias do heterossexismo e da homofobia. O vínculo entre mulheres tem uma larga e honorável história nas comunidades africanas e afro-americanas e, apesar dos enganos e conhecimentos demonstrados por muitas mulheres Negras identificadas com mulheres, fortes e criativas, que têm destacado nas esferas política, social e cultural, as mulheres Negras heterossexuais tendem a desdenhar ou a serem omissas da existência e a obra de lesbianas Negras. Esta atitude deriva em parte de um compreensível terror contra as represálias masculinas e o estreito ambíguo da sociedade Negra, onde o castigo contra qualquer intento de autoafirmação por parte da mulher segue sendo que te acusem de lesbiana e, em consequência, de não merecer as atenções nem o apoio dos homens Negros que são um bem escasso. Mas a necessidade de estigmatizar ou relegar ao esquecimento as lésbicas Negras também deriva de um medo muito real de que as mulheres negras identificadas com as mulheres, que tem deixado de depender dos homens para definir a si mesmas, possam chegar a reorganizar nosso conceito de reações sociais.

As Mulheres Negras, que insistiam na ideia de que a lesbiandade era um problema de mulheres brancas, se empenharam em propor que as lesbianas Negras são uma ameaça para a nação Negra, uma vez que são aliadas do inimigo e uma negação do que é ser negro. Essas acusações, lançadas por mulheres são as que precisamos buscar uma compreensão real e profunda, tem induzido a muitas lesbianas Negras a manterem-se ocultas, atravessadas entre dois fogos: o do racismo das mulheres brancas e a homofobia de suas irmãs. Muitas vezes, o trabalho delas tem sido ignorado, trivializado ou não-nomeado, tanto trabalhos de Angelina Grimke, Alice Dunbar-Nelson, Lorraine Hansberry. Em sem problemas, as mulheres vinculadas a outras mulheres, já foram nossas tias solteiras ou as amazonas de Daomé, sempre tem contribuído para conformar o poder das comunidades negras.

E, certamente, não são as lesbianas que agridem as mulheres e violam meninas e as avós nas ruas de nossas comunidades.
Em todo o país, as lesbianas Negras estão na vanguarda dos movimentos contra a violência sofrida pelas mulheres Negras; estiveram, por exemplo, nos protestos que se desencadearam em Boston na primavera de 1979 doze assassinados de mulheres Negras.

Quais aspectos concretos de nossas vidas devemos analisar e modificar com objetivo de contribuir de modo a se produzir mudanças? Como redefinirmos as diferenças? Não são as nossas diferenças as que nos separam e sim a renúncia de reconhecer as diferenças e a desmontar as distorções derivadas de omissões das diferenças ou denominá-las de forma que não apropriada.

Um dos mecanismos de controle social consiste em induzir as mulheres a outorgar legitimidade a uma só área das diferenças humanas, a que existem entre as mulheres e os homens. E todas temos aprendido a enfrentarmos essas diferenças contra com a primeira que caracteriza a atitude de qualquer subalternizado. Todas temos tido que aprender a trabalhar e a coexistir com os homens desde os nossos pais. Temos reconhecido as diferenças e nos temos adaptado a elas, inclusive quando reconhecê-la suporia perpetuar o velho modelo de relações humanas dominante/dominado, segundo o qual o oprimido deve aceitar a diferença do amo se quiser sobreviver.

Porém a nossa sobrevivência futura depende da nossa capacidade para relacionarmos um plano de igualdade. Se as mulheres desejamos enganar a mudança social que não seja sob aspectos meramente superficiais, temos que arrancar a raiz dos modelos de opressão que temos interiorizado. Devemos reconhecer as diferenças que nos distinguem de outras mulheres que são nossas iguais, nem inferiores, nem superiores e desenhar os meios que nos permitam utilizar as diferenças para enriquecer nossa visão e nossas lutas comuns.

O futuro da Terra pode depender da capacidade das mulheres para identificar e desenvolver novas definições do poder e novos modelos de relação entre as diferenças. As velhas definições não tem sido benéficos para nós e nem para a terra que nos sustenta. Os velhos modelos são habilmente retocados para imitar o processo, seguem condensando-nos a incorrer na repetição camuflada das relações de sempre, do sentimento de culpa de sempre, do ódio, a recriminação, os lamentos e a desconfiança.
Pois levamos incorporadas as velhas pautas que nos marcam umas expectativas e umas formas de resposta, as velhas estruturas de opressão e tudo isso tendemos que modifica-lo assim que modificarmos as condições de vida que são consequência de ditas estruturas. Pois as ferramentas do senhor nunca desmontam a casa do amo. Tal como explica brilhantemente Paulo Freire**** em Pedagogia o Oprimido, o verdadeiro objetivo da troca revolucionária não é apenas a situação de opressão da qual pretendemos nos libertar, mas também é a parte do opressor que foi implantada em nosso interior e que somente conhece tais táticas dos opressores e as relações dos opressores.

Toda mudança comporta um crescimento e o crescimento pode ser doloroso. Mas ao mostrar nosso ser mediante a luta e o trabalho compartilhado com aquelas a quem definimos como diferentes e as que nem tanto, nos unem por objetivos comuns, vamos conseguindo perfilar melhor a definição de nós mesmas. Esta pode ser a via de sobrevivência para todas as mulheres, Negras, brancas, maiores ou jovens, lesbianas ou heterossexuais.

Temos-nos escolhido uma a outra como companheiras
Para compartilhar cada porção de nossas batalhas em comum
A guerra é a mesma
Se nós perdermos
Algum dia o sangue das mulheres
Cobrirá uma vez o planeta morto
Se vencermos
Não há o que contar
Buscaremos atrás da história
For uma melhor e mais possível relação.


Thanks:
Professora Virgínia V. Leal
Pelo primeiro olhar, questionamentos e sugestões




NOTAS
* O título original do texto é Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference. Paper delivered at the Copeland Colloquium, Amerst College, April 1980. Reproduced in: Sister Outsider Crossing Press, California 1984. Acesso em 5 out. 15. Traduzido para a disciplina de Pós Graduação em Literatura e Práticas Sociais da Universidade de Brasília (UnB) ministrada pela professora Virgínia Vasconscelos Leal.
** "Audrey Geraldine Lorde foi uma escritora caribenha-americana, feminista radical, mulherista, lésbica e ativista dos direitos civis. Um dos seus esforços mais notáveis foi o seu trabalho militante com as mulheres afro-alemães na década de 1980" - O artigo completo está aqui na Wikipedia.
*** Referência ao ensaio da escritora inglesa Virginia Woolf, Um teto todo seu publicado em 1929. Apesar do texto clássico de Woolf tenha sido importante por revelar questões sobre escrita de mulheres, a história das mulheres o lugar de fala da autora tem limites que Lorde pontua com propriedade. Tem um pouco do ensaio da Viginia Woolf aqui no google books (em inglês).
**** Paulo Freire: Paulo Reglus Neves Freire foi um educador, pedagogista e filósofo brasileiro. É considerado um dos pensadores mais notáveis na história da Pedagogia mundial, tendo influenciado o movimento chamado pedagogia crítica (Artigo da Wikipedia completo: aqui)



[1]Tradução livre do texto "WHILE I WRITE" de Grada Kilomba. Acesso em 18 mai. 15.

[2]Embora o texto original use "make" no sentido de "fazer" traduzi por "produzir" tomando ideias pós-coloniais de Grada Kilomba de uma vivência contemporânea de diversas experiências da "plantation" mediada pelo idioma e por símbolos que semeiam profundamente a subjetividade de indivíduos negrxs (KILOMBA, 2010).

[3]Assim como observado na coletânea "The Black Woman: na anthology" (CADE, 1970), um marco para a escrita de mulheres Negras nos Estados Unidos, optei por grafar Negra (ao referir-se à interseção mulher e Negra) para diferenciar de pessoa negra.

[4]Lorde usa Terceiro Mundistas que é um termo usual naquela época, mas que, atualmente, caiu em desuso (ao menos) formalmente.

[5]Partindo da ideia de que o "que não tem nome", o não nomeado não existe, notamos as limitações da língua imposta nos processos de colonização como comprometidamente insuficientes para a expressão de experiências subalternizadas.

[6]Traduzi People of color (POC) como "pessoas de cor" e não como "pessoas negras" pra evidenciar que o colorismo não é uma questão particularmente brasileira e, também, para deixar a marca temporal do texto original. Afinal de contas: branco é uma cor socialmente codificada como não cor, uma visão localizada no privilégio branco. Quanto ao Estados Unidos, a definição "pessoas de cor" inclui todos os povos (não apenas os indivíduos) não-brancos, não-cristãos (negros, judeus, indianos, chineses, árabes), enquanto, no Brasil, a discriminação contra o indivíduo se dá  pela cor da pele e traços fenotípicos negros e/ou indígenas (raça/cor segundo o IBGE).

REFERÊNCIAS
CADE, Toni (org.). The black woman: an anthology. Canada: A Mentor Book, 1970.KILOMBA, Grada. While I write. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=UKUaOwfmA9w>. Acesso em 18 mai. 15.
______. Plantation Memories: episodes of everyday racism. Budapeste: Unrast, 2010.
LORDE, Audre. Sister outsider: essays and speeches. California: The Crossing Press, 1984.
Tecnologia do Blogger.