LE BUTCHERETTES E O GROTESCO FEMININO*





Sou sem cultura porque, como uma feminista, desafio as crenças culturais/religiosas coletivas de origem masculina dos indo-hispânicos e anglos; Entretanto, tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados ANZALDUA, 1987, p. 80-81 apud COSTA; ÁVILA, 2005, p.694).



I.  INTRODUÇÃO

A relação entre a feminilidade e o grotesco foi registrada na história europeia desde tragédias gregas da Antiguidade Clássica [1]. Por se tratarem de representações regidas pela alteridade, considero relevante pensar o grotesco a partir do século XIX produzido por mulheres: a literatura gótica (primeira articulação artística feminina visibilizada no Ocidente). Entendo o grotesco como recurso discursivo na canção  da banda mexicana Le Butcherettes - entre 2007-08, quando era um dueto - e relaciono seu discurso à crítica feminista.
Grotesco é um termo recuperado durante o Romantismo e, nessa época, foi descrito por Victor Hugo (2002, p.30-31) em seu  Do Grotesco e do Sublime como elemento Moderno de grande destaque, criando o disforme, o horrível, por um lado, e o bufo por outro. Sob uma ótica contemporânea e ambivalente (política e estética) Mary Russo, afirma que o Grotesco Feminino [2] é  uma  estratégia  feminista  de  representação  em  resposta  às deformações  identitárias  e  psicológicas  provocadas  por  normas  sociais  de comportamento  aplicadas  –  principalmente  –  às  mulheres  na  Pós-Modernidade.  Assim,  o  corpo  grotesco  é tanto  uma  metáfora  para  as  marcas  do/s desvio/s quanto a própria denúncia das forças deformadoras (QUIANGALA, 2012).

II. LE BUTCHERETTES


Le Butcherettes significa “açougueiras”. Uma mulher que luta contra toda a merda que encontra. Que agarra a [faz o gesto de aspas] carne e, como um batismo, ela começa a cortá-la em pedacinhos (Teri Bender tradução livre. Vídeo disponível em: <www.youtube.com/watch?v=uke6kcWLg1A&feature=autoplay&list=PL5A56718C5BA94C7E&playnext=3>)>.

O sangue significa a matança de mulheres e homens em guerras civis por toda a história [...] as cabeças de animais e de manequins cobertas representam a dominação (Auryn Jolene  tradução livre. Vídeo disponivel em: <www.youtube.com/watch?feature=endscreen&NR=1&v=yQ5T5XQsCt4>)>.

 A banda mexicana Le Butcherettes surgiu em 2007 como um duo de guitarra e bateria composto por Teri Bender Gender e Auryn Jolene. No ano seguinte, a dupla lançou o EP Kiss and Kill cujos singles Kiss and Kill e I'm Queen são o centro da minha análise.Chamarei de fase inicial a época que Jolene pertencia ao grupo e de segunda após a sua saída. Aquela fase é marcada pela crueza que permeia os vários aspectos explorados pela banda[3]. A sonoridade é minimalista e não há preocupação com a homogeneidade dos dois instrumentos usados nos arranjos; as letras apresentam recursos mnemônicos tais como o paralelismo e a repetição que reiteram o discurso, e é possível encontrar várias correspondências nas músicas de toda a discografia. Há nas letras a presença de certas palavras que caracterizo como campo semântico da banda, que são: morte (death), sangrar (bleed), acertar (bang), matar (kill), amedrotada (afraid), doente (sick), chutar (kick) e quebrar (break).
Ao contrário do que é possível supor, a simplicidade formal carrega um discurso denso e eficaz. As letras são breves e objetivas do ponto de vista vocabular, mas usando de ácida ironia, denunciam os mecanismos do poder patriarcal, evidenciam as relações entre as narrativas triviais de mulheres agredidas à um corpo social. Em vez de apontar diretamente o sexismo na sociedade, as letras levam quem as ouve a pensar sobre essas e outras questões sociais relacionadas à alteridade [4]. Dessa forma, som, letra e imagem assumem nessa fase da banda o aspecto mais cru(ento) da trajetória, como observamos na foto abaixo:



Junto ao  discurso verbal e sonoro, Jolene e Bender criaram,  naquela época, uma espécie de assinatura visual da banda. O figurino era composto por vestidos brancos, típicos de mulheres estadunidenses da classe média dos anos 1950, sob aventais tingidos de vermelho, que  sugerem sangue.O fato de serem trajes da década de cinquenta é uma referencia muito sutil à opressão contemporânea feminina, pois nessa época, conhecida como baby boom (literalmente a explosão de bebês), pós Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma explosão populacional nos E.U.A  e as mulheres que haviam ocupado espaços públicos a convite dos quadrinhos da Mulher Maravilha (personagem da DC Comics criada em 1941 por William Moulton Marston) e de outros fenômenos de massa, tiveram que retornar à mística (pra citar Friedam): aos ideais de feminilidade e ao correspondente lugar social burguês: mãe e esposa (OLIVEIRA, 2007, p. 45). Betty Friedam, se referindo a essa época afirmou que o subúrbio é um campo de concentração confortável[5].
 Além disso, ambas empunhavam cabeças de animais e durante a performance atiravam trigo e ovos pelo palco e na plateia. Muitas vezes tinham o rosto e os braços também tingidos com manchas vermelhas que sustentavam uma aparência cadavérica. Em julho de 2009, Auryn Jolene  anunciou irrevogavelmente sua saída da banda, alegando divergências musicais e ideológicas e chegando ao ponto de dizer que Teri não a tratava como igual (JOLENE, 2007 entrevista disponível em <panamerika.fm/blog/entrevista-auryn-jolene-ex-le-butcherettes/). Quanto à Teri, desmentiu Jolene e lamentou a perda da amizade, com a declaração de que a banda seguiria em frente (GENDER, 2009 entrevista disponível em <panamerika.fm/blog/entrevista-teri-gender-bender-de-le-butcherettes/>). Curioso pensar que Teri, por ser mulher, mas branca, cita o que Gloria Alzandua denomina "privilégio da mestiçagem" (COSTA; ÁVILA, 2006, p. 691-692), isso é, ter a consciência da identidade híbrida,  e, também, traços que amenizam o deslocamento social. Podemos partir dessas identidades fronteiriças, representadas pelas "mulheres-macho" ou  butcherettes como um nível simbólico do grotesco que, além disso, se expressará fora do nível corporal dessas personagens.
Com a saída de Jolene, Teri Bender convidou o baterista Normandi Heuxdaflo e, depois disso, uma série de musicistas passaram pela banda. A brusca mudança formal somada à posterior instabilidade, parece conferir notável distinção entre Kiss and Kill  e Sin Sin Sin (produzido pelo texano Omar Alfredo Rodríguez-López). É facilmente perceptível, tanto na camada sonora e discursiva quando visual que a banda está mais palatável ao público médio, pois todos os índices de crueza foram neutralizados. Teri Bender Gender performa de maneira mais efusiva e não vê problema em tirar a blusa ou fazer qualquer coisa que decida fazer no  momento. Essa mudança de postura sugere uma aderência possível ao liberalismo tão visibilizado nos movimentos contemporâneos, atingidos pelo pós-feminismo, e que se declaram feministas e são majoritariamente burgueses, brancos, heterossexuais como Femen e a Marcha das Vadias.
O segundo álbum tem maior potencial mercadológico, uma vez que a crueza foi neutralizada, assim como a verbalização e a performance. As letras trazem narrativas mais elaboradas, sem ausências, e dizem exatamente o que querem dizer à medida que citam as referências a George Bush, Henry Miller e Leibniz.


III. ANÁLISE

3.1. Canções

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
(Augusto dos Anjos - Versos íntimos)

You love me, you love me and now you wanna kill me
You love me, you love me and now you wanna kill me
Bang, bang, bang, bang, bang, bang, bang!
(Le Butcherettes - Bang!)


As canções de Le Butcherettes selecionadas para essa análise são Kiss and Kill e I’m Queen que são dois singles da Demo Kiss and Kill (2007).
Para analisar a canção Kiss and Kill, usarei o clipe oficial cujo registro corresponde ao do álbum disponível para download. Em I'm queen, uso o clipe oficial em que a canção está produzida de forma mais neutralizada (sem os sons ambientais), o que prefigura a atual fase: precariedade mais palatável, tanto visual quando sonoramente.


a.            KISS AND KILL

You Kiss and Kill
And You Hold her Still
You Bleed a Bit
And You tell Her Friends
It Was Just an Accident
Couldn't Do Anything to Prevent It?

Do Do Do Do Do Do...

He Can't Jus Kill Again!
He Can't Just Kill Again!

Do Do Do Do Do Do Do...

And You Tell Me You Love Her Honey!
But You're Gonna Kill Again!...

Yeah You Tell Me You Love Her Honey!
But You Gonna Kill Again!

Do Do Do Do Do Do Do Do...

He Can't just Kill Again!
He Can't Just Kill Again!

Do Do Do Do Do Do Do...

Ohhh
Ohhh...

Ohhh...
Ohhh...





A minimalista canção Kiss and Kill anuncia já no título o tema: agressão e (ênfase no elemento coordenativo aditivo elencando a prioridade) "amor". Ela tem uma camada material composta pela predominante repetição de fonemas consonantais como: guturais /g/, /k/ e /r/, sibilante /s/, fricativa /f/, bilabiais /b/ e /m/, linguodentais /t/, /d/ e /n/. O domínio de articulações consonantais confere à letra sensações opressivas pelo fato de haver sempre impedimento para a passagem de ar.
O som gutural, articulado pela parte posterior da língua contra o palato duro, dificulta a passagem de ar e promove uma associação com engasgue, o que se relaciona na letra com a dificuldade de verbalização da denúncia proposta na performance como um todo. Somada a isso, temos a sibilante /s/, cuja sutil passagem do ar traz a música uma relação de silenciamento. Os demais sons reforçam o caráter percussivo da melodia, perceptível na sucessão repetitiva dos dois power chords [5] que compõem o riff [6]. A guitarra e a bateria não formam um todo homogêneo e essa "falta de preocupação" evidencia que há vazios a serem preenchidos e que há silenciamento também, o que revela a "sutil" opressão a que as pessoas (em especial, as mulheres, marcadas pelo artigo, por extensão, ilegíveis devido às identidades minoritárias) são submetidas. Essa dificuldade de expressão também pode se referir a vítimas de abuso, especialmente em relações de proximidade (familiares e cônjuges) tem uma dificuldade de falar do assunto por sentirem-se envergonhadas, culpadas e desacreditadas.
Podemos dividir essa canção em três partes. A primeira são os dois primeiros versos, cantados num direcionamento à segunda pessoa que parece estar sendo acusada de assassinato. A voz de Teri diz pausadamente ao interlocutor[7] que ele beija e mata a companheira, pondo muita ênfase nessa relação ilógica. A passionalidade (verticalização da melodia) na entoação de "and" (primeiro verso), "hold"/"her" (segundo) , no artigo "a" (quarto), "tell"/"her" (quinto) trazem um elemento orgânico ao cenário, e aclimatam a insatisfação, já que são palavras ditas com aspiração, como que urradas pela cantora. Organicidade que pressupõe dor, como o próprio tema. Segundo o semiologista Luiz Tatit, essa ordenação entoativa é denominada perenidade estética, o que confere emoção a quem ouve e, também, diferencia a canção da fala corriqueira (TATIT, 1997 apud SARAIVA, p. 6).
Nos primeiros versos temos o acúmulo da tensão pelo ciclo de progressão e retorno dos acordes (em que esperamos a quebra) e pela repetição formal da letra. Porém, ao fim da segunda estrofe, a guitarra cessa e a bateria explode, enunciando a segunda parte, a réplica do acusado, mais lenta, como que uma fala (deitização). Ele diz então que foi um acidente inevitável e, então, temos outra cisão em forma de ironia dançante e contínua.
O riff, em seu aspecto cíclico e incisivo, é marcado pela sequencia dos dois acordes que ora são tocados com o abafamento das notas, gerando um não som, reforçado pelo refrão onomatopaico e dadaísta do ponto de vista sonoro e desafiador na perspectiva morfológica: "do-do-do-do-do" (faça!).
A estrofe seguinte é marcada pela variação dialetal chicana. Teri questiona: "he can just kill again?", enquanto o inglês padrão prescreve que, em frases interrogativas, o pronome deve vir após o verbo. Dizer daquela forma (lógica da língua materna) e não "can he just kill again?" articula duas críticas à violência hierárquica estrutural: tanto ao sexismo quanto ao imperialismo - ambos relacionados às questões de classe. Nessa frase, informa-se o local de fala da persona da vocalista. Teri representa a mulher imigrante que sofre pela intersecionalidade (mulher, latina, pobre) tradicionalmente exposta à precariedade e à  violência[8]. Por outro lado, o nome artístico de Tereza Soarez pode ser visto como um apelido de Terence - Terry -, nome masculino de trabalhador.  O sobrenome que faz parte do pseudônimo de Teri incorpora  Gender (gênero em inglês). A expressão Fender Gender , em inglês, significa uma batida em que os carros não ficam amassados nem há ferimentos; referência ao sexo lesbiano. Já Auryn somente faz os backing vocals, o eco, o que se relaciona ao nome proletário feminino. Essa estrutura dual da banda juntamente ao nome Butch (açougueiro) mais o sufixo -ettes, outro elemento de chicanismo. Um nome que evoca o sexo masculino junto ao feminino mimetiza o que o E-dicionário descreve como:

Expressão de origem francesa ("butch, alcunha de alguém do sexo feminino que tem maneirismos masculinos; femme, mulher) que serve para descrever um casal lésbico, correspondendo o primeiro termo ao papel do homem e o segundo ao da mulher, como numa relação heterossexual. Uma personagem butch pode assumir o comportamento, a forma de vestir, de falar ou de andar, por exemplo, de um homem; a personagem femme costuma exagerar o seu feminismo, para ser distinguida da lésbica vulgar. [...]o par butch/femme serviu para tachar as lésbicas e pela sugestão de manter, mesmo na relação homossexual feminina, uma correspondência patriarcal entre os parceiros (Disponível em: <www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=171&Itemid=2> Acesso em 19. jul. 13).

O nome e a performance deste dueto de indie-rock são índice de discussão queer  que problematiza as dicotomias mulher/homem, natureza/cultura, sensibilidade/fortaleza. Embora a proposta seja de apagamento das fronteiras de gênero, não há qualquer dúvida do gênero dessas artistas que se mostram em conforme a legibilidade social padrão para o  feminino (SCHWANTES, 1997, p.10). Esse figurino marcado pelo feminino, que pretende gerar tensão com o  nome da banda, não é eficaz, pois embora apareçam cortando carne, a legibilidade não gera dúvidas e reforça a perspectiva binarista descrita no dicionário. Encontramos já no feminismo de primeira onda (anos 1950) a diferenciação entre sexo biológico (até então, considerando-se dois apenas) e gênero (BEAUVOIR, 1970, p. 28). Mais contemporaneamente, Judith Butler expande a construção de gênero para a conjunção de identidade, sexo e sexualidade, o que possibilita um grande espectro entre os extremos Homem e Mulher. Assim, é possível compreender que a butch-femme não é uma "imitação de gênero", mas como uma das possibilidades de ser (BUTLER, 2006, p.10)
O figurino usado por Bender e Jolene faz referencia aos vestidos usados por mulheres estadunidenses de classe média nos anos 1950. Se por um lado o traje branco se relaciona ao "estilo de vida americano"  (american way of life) e todo o consumismo envolvido, os aventais manchados de vermelho denunciam a violência ocultada pelo sistema. Somada à maquiagem brilhante e aos cabelos soltos, além dos ruídos do ambiente, essa imagem hostil aponta para o fato do problema não ter sido resolvido. 
O clipe oficial parece um registro de cinegrafista amador. A resolução das imagens, bem como os recortes, são rudimentares e dialogam com o minimalismo da canção, propondo, no todo, uma estética da precariedade. A performance da dupla nesse vídeo "documentário" é o que Teri chama de catártica, cheia de explosões assim como a melodia, tanto quanto sugerem as viscerais manchas de "sangue". Vemos sempre o revezamento entre plano médio e close, numa alternância brusca, possivelmente analítica, de cada mulher. Já os recortes e vácuos visuais (também rítmicos e narrativos) do tremeluzente clipe conotam certa dificuldade de transcender a situação opressora descrita.
A  canção traz em si, numa narrativa inacabada, as vozes da vítima e do agressor, focando um tipo de relação supostamente permeada de afetividade, mas que permite a violência extrema historicamente ocultada, que no entanto, passou a ser questionada. E é exatamente a não justificativa e, ao mesmo tempo, a falta de resolução que permanecem como um traço que os liga. Nesse caso, a violência usada como meio de denúncia é um método retórico que leva a pessoa que ouve/vê a questionar-se: acaso esse fato dado como comum é, realmente, normal?

b.           I'M QUEEN


Little Boy how you want me high
Little Boy how you want me dead I said:

I'm Queen, I'm gonna fuck

Little Boy how you want me done, aha
Little Boy how you want me dead again

I'm Queen, I'm gonna fuck
[ Lyrics from: http://www.lyricsmode.com/lyrics/l/le_butcherettes/im_queen.html ]
I feel you breaking inside of me
I feel you breaking inside of me, man

I'm Queen, I'm gonna rock

You say you want me
You say you got me

You say you want me
You say you got me

But I don't see your name on me
So fuck you!

Disponível em: :<www.lyricsmode.com/lyrics/l/le_butcherettes/im_queen.html>




Há no clipe de I'm Queen uma intencionalidade diferente de Kiss and kill. A estética precária permanece antes como tema (metalinguístico), já que temos alta resolução e fica visível que a precariedade é agora uma escolha: os efeitos são arranjados por recursos tecnológicos. As secções aqui, remetem às edições manuais nas películas, o que traz um sentido histórico à reivindicação.
Porém, se na canção anterior a voz narrativa abordava a violência contra a mulher, em I'm Queen, a única voz é a da mulher. Esta passa da constatação da assimetria para uma tentativa emancipatória. Anteriormente a vítima era imobilizada e silenciada, e a sua mudança de estado leva a uma inversão: a vítima vira o monstro que temia. Esse sentido visual e verbal é relativizado pelo tom irônico em que se dá o canto.
Inicialmente vemos a cena do lugar de quem comanda a câmera, portanto, a imagem da lente é quase ininteligível. Então o campo se abre e vemos um homem sentado numa cadeira, as mãos amarradas pra trás, no primeiro plano. Teri está  na porta de um local de armazenamento de carne, de frente pra nós e pra ele, quando começa a cantar. Auryn e sua bateria estão no interior da sala azulejada envolta por grandes lascas de carne (Fig.2).
 Uma série de imagens são lançadas, entremeadas de efeitos e não correspondência de som e imagem, que simulam as falhas de filmes em película.
A narrativa contida na letra é incerta, como na música anterior, o que - assim como a melodia minimalista - chama a atenção ao discurso verbal. Esse foco prosódico é enfatizado pela passionalização de vocábulos que se repetem como "boy", "high", "fuck" e "rock" que são a essência da letra. A voz narrativa tomou o poder, e agora, se faz ouvir.
No ciclo de diálogos intitulado "Filosofia do rock" sob curadoria da filósofa Márcia Tiburi[12], Walter, o DJ do evento, disse: "O rock é fálico, poder e viril", talvez em contraponto ao mote de Tiburi "A fala é o falo". Essa frase evidencia a transgressão das Butcherettes expressa no âmbito das personas das integrantes e da voz lírica: metonimicamente, as mulheres tomam o microfone e podem romper o silenciamento falando de si mesmas. Quanto a I'm Queen, esse espaço de falo propicia a inversão da injustiça. Mostra uma voz que busca solucionar a anterior situação de vítima se não tornando-se agressora, retaliando no refrão "I'm queen, I'm gonna fuck". Essa parece ser uma referencia a outra canção delas, como vemos abaixo:

The king is dead, aha
He lays in front of you, in front of you
The king is dead, aha
He lays in front of you
In front of you
(Le Butcherettes -   I'm Getting Sick Of You).

Se o rei -  o patriarca e todo o tipo de domesticação que ele representa -  está deitado e morto, há agora espaço de afirmação da rainha. Ela deixa de ser mera acompanhante (embaixatriz) e torna-se a dirigente (embaixadora), pronta para revidar toda a violência sofrida. Se em I'm getting sick of you uma voz narrativa consciente se dirige à mulher, em I'm Queen é a mulher quem se emancipa e ameaça: "Agora sou a rainha e vou te foder". A passionalização em "Queen" em oposição a "Fuck", deitizada, enfatiza essa ligação num tom irônico que revela uma verdade monstruosa (RIBEIRO,2008, p.49). Isso também se nota na repetição das frases ameaçadoras passionalizadas, com o "aha" final e no chiste que reduz o grande homem a uma criança "litle boy". O vocábulo "fuck" cria uma angústia por prever alguma ação de violência extrema que não dá pistas do que é, agravando a ansiedade pelo porvir. É justamente a desterritorialização efeito do grotesco e, na canção, surge como mistura de terror e sorriso; segundo Kayser, esse efeito é fundamentado no mundo confiável e aparentemente arrimado que vivemos, mas onde irrompem poderes abismais que desarticulam as arestas e as formas e, assim, dissolve as ordenações (KAYSER, 1957, p.40 apud RIBEIRO, 2008, p.50). É dessa instancia subterrânea e temível que surge a revanche da Rainha desterritorializada [13] que Teri dá voz.
O vocábulo "foder" traz o sentido sexual de penetração e social de força. Noutras palavras, fode quem tem o poder, que corresponde ao falo. Assim, significa também agredir, infligir qualquer mal.
Historicamente, as mulheres tem sido objetificadas através da função gerativa e da violação sexual, portanto, foder, para uma mulher, significa ter relação sexual (cópula), se dar mal, desgraçar-se, mas também, causar mal. É uma referencia à relação heterossexual, que pressupõe a penetração como ação de opostos (ativo/passiva) que é prazeroso ao homem e gera consequências para a mulher (gravidez). Na canção, podemos ver a referencia ao feminismo radical de Valerie Solanas. No Manifesto S.C.U.M ela afirma que, na verdade, os homens são fêmeas incompletas, ou seja o que as mulheres ainda são forçadas socialmente ser:


Absolutamente egocêntrico, incapaz de relacionar-se, de ter empatia ou de identificar-se, e dominado por uma sexualidade vasta, difusa e penetrante, o macho é psiquicamente passivo. Ele odeia sua própria passividade, a projeta nas mulheres, define o macho como ativo, e se propõe a demonstrar que é (“provar que é um Homem”). Seu principal meio de tentar demonstrá-lo é foder (o Grande Homem com uma Grande Pica rasgando uma Grande Xoxota). Como está tentando provar um erro, deve repeti-lo várias e várias vezes. Foder é, portanto, uma tentativa desesperada e compulsiva dele provar que não é passivo, que não é uma mulher; mas ele é passivo e deseja ser uma mulher (SOLANAS, .

A canção, então, ao prever a retaliação, na verdade, cita o que seria voltar a "normalidade" prefigurada por Solanas em que o homem é a contraparte passiva. Dentro da proposta da banda, podemos pensar nessa "mudança de papel" a quebra de fronteira macho/fêmea binária e rígida.
A mudança de situação, de quem sentia o estupro, a penetração violenta no seu interior continua e repetidamente até agora ( o verbo está sentir está no presente "I feel") para quem tem poder de reivindicar a violência culmina em:

You say you want me
You say you got me

You say you want me
You say you got me

But I don't see your name on me
So fuck you!

A voz de Teri parafraseia o "rei" que diz desejá-la, tê-la repetida e continuamente, mas ela é categórica ao responder: "Mas não tem o seu nome escrito em mim, então, foda-se". Assim, ela conclui partindo o conceito de propriedade, que fundamenta a opressão feminina e norteia todas as opressões desde a histórica transição do período Neolítico, em que prevaleciam as sociedades comunitárias, matriarcais, fundamentadas na crença numa deusa geradora, para as sociedades coletoras e caçadoras em que já havia estratificação social que se desenvolve até a Antiguidade e seu capitalismo primitivo (MURARO, 2009, p.8).

4. Conclusão

O grotesco é um fenômento estético cuja abordagem está associada ao hiperbólico, ao exagero e à ironia. Usando-se dessas ferramentas, ele propõe subversões dos padrões normatizantes do feminino, forçando brechas e espectros entre feminino e masculino (FLICK, 2011, p.1). Dessa maneira, é usual, desde as primeiras manifestações artísticas femininas a presença dessa estética na literatura da primeira metade do século dezenove, e seu desdobramento na arte contemporânea. Cabe salientar que havia manifestações artísticas de autoria feminina antes do Gótico como a poesia de Sapho e as pinturas de Artemísia, porém, tratava-se de exceção e é uma genealogia que busca-se recuperar atualmente. Assim, o grande marco do Gótico se refere à produção maciça. É nesta herança que percebo a produção das Butcherettes que se valem do grotesco, do terrível, da violência para sinalizar a opressão sofrida por mulheres, mas não apenas nós, como todo ser humano que destoe do padrão firmado durante a Modernidade. Assim, as canções de Teri e Jolene reivindicam o "ensejo ao acaso", isso é, a heterogeneidade dos corpos, das identidades, gêneros e sexualidades forçando uma abertura dentro do espaço ainda limitador (FLICK, 2011, p.3).
Notamos portanto, que essa manifestação artística contemporânea, ao fazer uso da estética grotesca, evidencia uma linhagem feminina de questionamento e subversão, atualizando-a, e propõe uma ressignificação do feminino enquanto corpo e gênero numa perspectiva estética e moral, utópica, assim como o feminismo.

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*O texto é uma adaptação do artigo O Grotesco Feminino como estratégia feminista, de minha autoria, resultado da pesquisa de Iniciação Científica orientado pela profa. Cíntia Schwantes (2013-2014).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: Lendas e fatos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980. 3.ed.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.
Rio de Janeiro: Editora Civilização. Brasileira, 2003.
COSTA, Claudia de Lima; ÁVILA, Eliana. Gloria Anzaldúa, a consciencia mestiça e o "feminismo da diferença" in Estudos Feministas, Florianópolis, (p.691-703) setembro-dezembro, quadrimestral, 2006.
FRIEDAM, Betty. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.
FLICK, Milena. O feminino Grotesco: propostas subversivas em Doroteia de Nelson Rodrigues. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2011.
DISENFELD, Raquel. Antipatriarcado, autonomia y ecologia social.  Campaña Autogestiva Contra el Abuso Sexual Infantil, Mujeres Libres.(folheto).
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva. 2. Ed. 2007.
MURARO, Rose Marie. Introdução Histórica ao Malleus Malleficarum. in KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Malleficarum: O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2009, 20. ed.
QUIANGALA, Anne Caroline. O grotesco feminino no romance gráfico Y: último homem. (Monografia), UnB, 2012.
RIBEIRO, Alessandra Monachesi. Cindy Sherman: sobre o feminino. Disponível em: <webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:SU3xli_-DyUJ:www.redalyc.org/pdf/307/30711292004.pdf+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em 15 ago. 2013.
RUSSO, Mary. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade. Rio de
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SARAIVA, José Américo Bezerra. Como Analisar uma canção popular? Disponível em: <webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:vpzh9eXzyy8J:files.semio-ce.webnode.pt/200000017-3deea3efac/Como%2520analisar%2520a%2520can%25C3%25A7%25C3%25A3o%2520popular.Am%25C3%25A9rico%2520Saraiva.pdf+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em 15 ago. 2013. as 11h06min.
 SCHWANTES, Cíntia. Interferindo no cânone: a questão do Bildungsroman feminino com elementos Góticos (Tese), UFRGS, 1997.
SOLANAS, Valerie. Manifesto S.C.U.M.  Disponível em: <scummanifesto.wordpress.com/>. Acesso em: 15 ago. 13. as 13h12min.
TATIT, Luíz. Musicando a semiótica: ensaios. São Paulo: Annablume, 2008, 2. ed.

Sítios

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Bang! <letras.mus.br/le-butcherettes/bang/>. Acesso em 03 ago. 13 as 10h24.
I'm Getting Sick Of You. <letras.mus.br/le-butcherettes/im-getting-sick-of-you/>. Acesso em 03 ago. 13. as 10h21.
E-Dicionário de termos literários. <www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=171&Itemid=2> Acesso em 19. jul. 13).
<www.teialivre.com.br/colaborativo/publish/Renata-C-Arruda/Le-Butcherettes-adere-os-sangue-e-feminismo.shtml>. Acesso em 19 jul. 13.
<www.lastfm.com.br/music/Le+Butcherettes/+images/56693195>. Acesso em  15 ago. 13. as 13h45min.
Vídeos
<www.youtube.com/watch?feature=endscreen&NR=1&v=yQ5T5XQsCt4>)>. Acesso em 03 ago. 13 as 12h20.






[1] Tragédias como Antígona e As Suplicantes, respectivamente de Sófocles e Ésquilo.
[2] Embora ela centre sua análise no feminino, não se trata unicamente de "Mulher" como gênero e conjuga os espectros de tudo que destoa da Normatização vigente desde a Modernidade.
[3] Longe de ser simplesmente um discurso musical, a banda tinha/tem um comprometimento igualmente importante com a performance, o figurino, o cenário, enfim, discurso visual.
[4]  As letras de Le Butcherettes se referem especificamente a questões de gênero (como tratarei adiante), muito embora, em entrevistas, Teri Bender tenha explicitado uma lógica política de que o feminismo deve articular as diferentes causas políticas.
[5] O décimo segundo capítulo de sua "Mística Feminina" intitula-se: Crescente desumanização: um confortável campo de concentração, que diz respeito a vida da mulher de classe média.
[6] Acordes na guitarra que são construídos pela nota tônica e a quinta a partir dela. Esse tipo de acorde, produzido na corda  mais grave, é amplamente usados em ritmos derivados rock como o punk¸indie e heavy metal.
[7] Riff ou Ostinato é a progressão de acordes, intervalos ou notas musicais que são repetidos ciclicamente numa canção.
[8] Partindo do pressuposto que a banda tinha como objetivo falar da hierarquia entre mulheres e homens, observo nos pronomes uma forma direta de elucidar a temática da "violência contra as mulheres praticada pelos homens".
[9]  Uma das premissas do grupo anarco-feminista espanhol Mujeres libres é existencia duma relação entre terrorismo de Estado e terrorismo sexual que se apoia na negação da violencia e na culpabilzação da vítima (DISENFELD, s/a, s/p).
[10]  Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília em 27 de junho de 2012. Tema: Paul Simon, música e a incomunicabilidade. Convidado: Leoni.
[11] A mulher ou mulheres que tem voz nas canções das Butcherettes são chicanas, por si só, mulheres de cultura híbrida não assimilacionista, que não são nem mexicanas nem estadunidenses stricto senso, e, por tal, revindicam seu próprio lar aberto ao ilegal, párea, Queer (STEPHENSON, 2003, p.371 apud COSTA; ÁVILA, 2005, p.694)
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