LE BUTCHERETTES E O GROTESCO FEMININO*
Sou sem cultura
porque, como uma feminista, desafio as crenças culturais/religiosas coletivas
de origem masculina dos indo-hispânicos e anglos; Entretanto, tenho cultura
porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história
para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores
com imagens e que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un
amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura
tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as
definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados ANZALDUA, 1987, p.
80-81 apud COSTA; ÁVILA, 2005,
p.694).
I. INTRODUÇÃO
A relação entre a feminilidade e o
grotesco foi registrada na história europeia desde tragédias gregas da
Antiguidade Clássica [1]. Por se tratarem de representações regidas pela alteridade, considero relevante pensar o grotesco a partir
do século XIX produzido por mulheres: a literatura gótica (primeira articulação artística feminina visibilizada no Ocidente). Entendo o grotesco como
recurso discursivo na canção da banda mexicana Le Butcherettes - entre 2007-08, quando era um dueto - e relaciono seu discurso à crítica feminista.
Grotesco é
um termo recuperado durante o Romantismo e, nessa época, foi descrito por Victor
Hugo (2002, p.30-31) em seu Do Grotesco e do Sublime como elemento Moderno de grande destaque,
criando o disforme, o horrível, por um lado, e o bufo por outro. Sob uma ótica contemporânea e ambivalente (política e estética) Mary
Russo, afirma que o Grotesco Feminino [2] é uma
estratégia feminista de
representação em resposta
às deformações identitárias e
psicológicas provocadas por
normas sociais de comportamento aplicadas
– principalmente – às mulheres
na Pós-Modernidade. Assim,
o corpo grotesco
é tanto uma metáfora
para as marcas
do/s desvio/s quanto a própria denúncia das forças deformadoras
(QUIANGALA, 2012).
II. LE BUTCHERETTES
Le Butcherettes significa “açougueiras”.
Uma mulher que luta contra toda a merda que encontra. Que agarra a [faz o gesto
de aspas] carne e, como um batismo, ela começa a cortá-la em pedacinhos (Teri Bender tradução
livre. Vídeo disponível em: <www.youtube.com/watch?v=uke6kcWLg1A&feature=autoplay&list=PL5A56718C5BA94C7E&playnext=3>)>.
O sangue significa a matança de
mulheres e homens em guerras civis por toda a história [...] as cabeças de
animais e de manequins cobertas representam a dominação (Auryn Jolene
tradução livre. Vídeo disponivel em: <www.youtube.com/watch?feature=endscreen&NR=1&v=yQ5T5XQsCt4>)>.
A banda mexicana Le Butcherettes surgiu
em 2007 como um duo de guitarra e bateria composto por Teri Bender Gender e
Auryn Jolene. No ano seguinte, a dupla lançou o EP Kiss and Kill cujos singles Kiss and Kill e I'm Queen são o
centro da minha análise.Chamarei de fase inicial a época que
Jolene pertencia ao grupo e de segunda após a sua saída. Aquela fase é marcada
pela crueza que permeia os vários aspectos explorados pela banda[3]. A sonoridade é minimalista
e não há preocupação com a homogeneidade dos dois instrumentos usados nos
arranjos; as letras apresentam recursos mnemônicos tais como o paralelismo e a
repetição que reiteram o discurso, e é possível encontrar várias
correspondências nas músicas de toda a discografia. Há nas letras a presença de
certas palavras que caracterizo como campo semântico da banda, que são: morte (death), sangrar (bleed), acertar (bang),
matar (kill), amedrotada (afraid), doente (sick), chutar (kick) e quebrar
(break).
Ao contrário do que é possível supor, a
simplicidade formal carrega um discurso denso e eficaz. As letras são breves e
objetivas do ponto de vista vocabular, mas usando de ácida ironia, denunciam os
mecanismos do poder patriarcal, evidenciam as relações entre as narrativas
triviais de mulheres agredidas à um corpo social. Em vez de apontar diretamente
o sexismo na sociedade, as letras levam quem as ouve a pensar sobre essas e
outras questões sociais relacionadas à alteridade [4]. Dessa forma, som, letra e
imagem assumem nessa fase da banda o aspecto mais cru(ento) da trajetória, como
observamos na foto abaixo:
Junto ao discurso verbal e sonoro, Jolene e Bender
criaram, naquela época, uma espécie de
assinatura visual da banda. O figurino era composto por vestidos brancos,
típicos de mulheres estadunidenses da classe média dos anos 1950, sob aventais
tingidos de vermelho, que sugerem sangue.O fato de serem trajes da
década de cinquenta é uma referencia muito sutil à opressão contemporânea
feminina, pois nessa época, conhecida como baby
boom (literalmente a explosão de bebês), pós Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma explosão populacional
nos E.U.A e as mulheres que haviam ocupado espaços
públicos a convite dos quadrinhos da Mulher Maravilha (personagem da DC Comics criada em 1941 por William
Moulton Marston) e de outros fenômenos de massa, tiveram que retornar à mística
(pra citar Friedam): aos ideais de feminilidade e ao
correspondente lugar social burguês: mãe e esposa
(OLIVEIRA, 2007, p. 45). Betty Friedam, se referindo
a essa época afirmou que o subúrbio é um
campo de concentração confortável[5].
Além disso, ambas empunhavam cabeças de
animais e durante a performance atiravam trigo e ovos pelo palco e na plateia.
Muitas vezes tinham o rosto e os braços também tingidos com manchas vermelhas que
sustentavam uma aparência cadavérica. Em julho de 2009, Auryn Jolene anunciou irrevogavelmente sua saída da banda,
alegando divergências musicais e ideológicas e chegando ao ponto de dizer que
Teri não a tratava como igual (JOLENE, 2007 entrevista disponível em <panamerika.fm/blog/entrevista-auryn-jolene-ex-le-butcherettes/).
Quanto à Teri, desmentiu Jolene e lamentou a perda da amizade, com a declaração
de que a banda seguiria em frente (GENDER, 2009 entrevista disponível em
<panamerika.fm/blog/entrevista-teri-gender-bender-de-le-butcherettes/>).
Curioso pensar que Teri, por ser mulher, mas branca, cita o que Gloria Alzandua
denomina "privilégio da mestiçagem" (COSTA; ÁVILA, 2006, p. 691-692),
isso é, ter a consciência da identidade híbrida, e, também, traços que amenizam o deslocamento
social. Podemos partir dessas identidades fronteiriças, representadas pelas
"mulheres-macho" ou
butcherettes como um nível simbólico do grotesco que, além disso, se
expressará fora do nível corporal dessas personagens.
Com a saída de Jolene, Teri Bender
convidou o baterista Normandi Heuxdaflo e, depois disso, uma série de
musicistas passaram pela banda. A brusca
mudança formal somada à posterior instabilidade, parece conferir notável
distinção entre Kiss and Kill e Sin Sin Sin (produzido pelo texano Omar
Alfredo Rodríguez-López). É facilmente perceptível, tanto na camada sonora e
discursiva quando visual que a banda está mais palatável ao público médio, pois
todos os índices de crueza foram neutralizados. Teri Bender Gender performa de
maneira mais efusiva e não vê problema em tirar a blusa ou fazer qualquer coisa
que decida fazer no momento. Essa
mudança de postura sugere uma aderência possível ao liberalismo tão
visibilizado nos movimentos contemporâneos, atingidos pelo pós-feminismo, e que
se declaram feministas e são majoritariamente burgueses, brancos,
heterossexuais como Femen e a Marcha das Vadias.
O segundo
álbum tem maior potencial mercadológico, uma vez que a crueza foi neutralizada,
assim como a verbalização e a performance. As letras trazem narrativas mais
elaboradas, sem ausências, e dizem exatamente o que querem dizer à medida que
citam as referências a George Bush, Henry Miller e Leibniz.
III. ANÁLISE
3.1. Canções
3.1. Canções
O beijo, amigo, é a véspera do
escarro,
A mão que afaga é a mesma que
apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua
chaga,
Apedreja essa mão vil que te
afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
(Augusto dos Anjos - Versos íntimos)
You love
me, you love me and now you wanna kill me
You love
me, you love me and now you wanna kill me
Bang,
bang, bang, bang, bang, bang, bang!
(Le Butcherettes - Bang!)
As canções de Le Butcherettes
selecionadas para essa análise são Kiss and Kill e I’m Queen que são dois singles da Demo Kiss
and Kill (2007).
Para analisar a canção Kiss and Kill, usarei o clipe oficial
cujo registro corresponde ao do álbum disponível para download. Em I'm queen,
uso o clipe oficial em que a canção está produzida de forma mais neutralizada
(sem os sons ambientais), o que prefigura a atual fase: precariedade mais
palatável, tanto visual quando sonoramente.
a.
KISS AND KILL
You Kiss and
Kill
And You Hold her Still
You Bleed a Bit
And You tell Her Friends
It Was Just an Accident
Couldn't Do Anything to Prevent It?
Do Do Do Do Do Do...
He Can't Jus Kill Again!
He Can't Just Kill Again!
Do Do Do Do Do Do Do...
And You Tell Me You Love Her Honey!
But You're Gonna Kill Again!...
Yeah You Tell Me You Love Her Honey!
But You Gonna Kill Again!
Do Do Do Do Do Do Do Do...
He Can't just Kill Again!
He Can't Just Kill Again!
Do Do Do Do Do Do Do...
Ohhh
Ohhh...
Ohhh...
Ohhh...
And You Hold her Still
You Bleed a Bit
And You tell Her Friends
It Was Just an Accident
Couldn't Do Anything to Prevent It?
Do Do Do Do Do Do...
He Can't Jus Kill Again!
He Can't Just Kill Again!
Do Do Do Do Do Do Do...
And You Tell Me You Love Her Honey!
But You're Gonna Kill Again!...
Yeah You Tell Me You Love Her Honey!
But You Gonna Kill Again!
Do Do Do Do Do Do Do Do...
He Can't just Kill Again!
He Can't Just Kill Again!
Do Do Do Do Do Do Do...
Ohhh
Ohhh...
Ohhh...
Ohhh...
A minimalista canção
Kiss and Kill anuncia já no título o tema: agressão e (ênfase no elemento
coordenativo aditivo elencando a prioridade) "amor". Ela tem uma camada
material composta pela predominante repetição de fonemas consonantais como:
guturais /g/, /k/ e /r/, sibilante /s/, fricativa /f/, bilabiais /b/ e /m/,
linguodentais /t/, /d/ e /n/. O domínio de articulações consonantais confere à
letra sensações opressivas pelo fato de haver sempre impedimento para a
passagem de ar.
O som gutural, articulado pela parte
posterior da língua contra o palato duro, dificulta a passagem de ar e promove
uma associação com engasgue, o que se relaciona na letra com a dificuldade de
verbalização da denúncia proposta na performance como um todo. Somada a isso,
temos a sibilante /s/, cuja sutil passagem do ar traz a música uma relação de
silenciamento. Os demais sons reforçam o caráter percussivo da melodia,
perceptível na sucessão repetitiva dos dois power
chords [5]
que compõem o riff [6].
A guitarra e a bateria não formam um todo homogêneo e essa "falta de
preocupação" evidencia que há vazios a serem preenchidos e que há
silenciamento também, o que revela a "sutil" opressão a que as
pessoas (em especial, as mulheres, marcadas pelo artigo, por extensão,
ilegíveis devido às identidades minoritárias) são submetidas. Essa dificuldade
de expressão também pode se referir a vítimas de abuso, especialmente em
relações de proximidade (familiares e cônjuges) tem uma dificuldade de falar do
assunto por sentirem-se envergonhadas, culpadas e desacreditadas.
Podemos dividir essa canção em três
partes. A primeira são os dois primeiros versos, cantados num direcionamento à
segunda pessoa que parece estar sendo acusada de assassinato. A voz de Teri diz
pausadamente ao interlocutor[7] que ele beija e mata a
companheira, pondo muita ênfase nessa relação ilógica. A passionalidade
(verticalização da melodia) na entoação de "and" (primeiro verso),
"hold"/"her" (segundo) , no artigo "a" (quarto),
"tell"/"her" (quinto) trazem um elemento orgânico ao
cenário, e aclimatam a insatisfação, já que são palavras ditas com aspiração,
como que urradas pela cantora. Organicidade que pressupõe dor, como o próprio
tema. Segundo o semiologista Luiz Tatit, essa ordenação entoativa é denominada perenidade estética, o que confere
emoção a quem ouve e, também, diferencia a canção da fala corriqueira (TATIT,
1997 apud SARAIVA, p. 6).
Nos primeiros versos temos o acúmulo da
tensão pelo ciclo de progressão e retorno dos acordes (em que esperamos a
quebra) e pela repetição formal da letra. Porém, ao fim da segunda estrofe, a
guitarra cessa e a bateria explode, enunciando a segunda parte, a réplica do
acusado, mais lenta, como que uma fala (deitização). Ele diz então que foi um
acidente inevitável e, então, temos outra cisão em forma de ironia dançante e
contínua.
O riff,
em seu aspecto cíclico e incisivo, é marcado pela sequencia dos dois acordes
que ora são tocados com o abafamento das notas, gerando um não som, reforçado
pelo refrão onomatopaico e dadaísta do ponto de vista sonoro e desafiador na
perspectiva morfológica: "do-do-do-do-do" (faça!).
A estrofe seguinte é marcada pela
variação dialetal chicana. Teri questiona: "he can just kill again?", enquanto o inglês padrão prescreve
que, em frases interrogativas, o pronome deve vir após o verbo. Dizer daquela
forma (lógica da língua materna) e não "can he just kill again?"
articula duas críticas à violência hierárquica estrutural: tanto ao sexismo
quanto ao imperialismo - ambos relacionados às questões de classe. Nessa frase,
informa-se o local de fala da persona da vocalista. Teri representa a mulher
imigrante que sofre pela intersecionalidade (mulher, latina, pobre)
tradicionalmente exposta à precariedade e à
violência[8].
Por outro lado, o nome artístico de Tereza Soarez pode ser visto como um
apelido de Terence - Terry -, nome masculino de trabalhador. O sobrenome que faz parte do pseudônimo de
Teri incorpora Gender (gênero em inglês). A expressão Fender Gender , em inglês, significa uma
batida em que os carros não ficam amassados nem há ferimentos; referência ao
sexo lesbiano. Já Auryn somente faz
os backing vocals, o eco, o que se
relaciona ao nome proletário feminino. Essa estrutura dual da banda juntamente
ao nome Butch (açougueiro) mais o
sufixo -ettes, outro elemento de
chicanismo. Um nome que evoca o sexo masculino junto ao feminino mimetiza o que
o E-dicionário descreve como:
Expressão de origem
francesa ("butch, alcunha de alguém do sexo feminino que tem maneirismos
masculinos; femme, mulher) que serve para descrever um casal lésbico,
correspondendo o primeiro termo ao papel do homem e o segundo ao da mulher,
como numa relação heterossexual. Uma personagem butch pode assumir o
comportamento, a forma de vestir, de falar ou de andar, por exemplo, de um
homem; a personagem femme costuma exagerar o seu feminismo, para ser
distinguida da lésbica vulgar. [...]o par butch/femme serviu para tachar as
lésbicas e pela sugestão de manter, mesmo na relação homossexual feminina, uma
correspondência patriarcal entre os parceiros (Disponível em: <www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=171&Itemid=2>
Acesso em 19. jul. 13).
O nome e a performance deste dueto de indie-rock são índice de discussão queer que problematiza as dicotomias mulher/homem,
natureza/cultura, sensibilidade/fortaleza. Embora a proposta seja de apagamento
das fronteiras de gênero, não há qualquer dúvida do gênero dessas artistas que
se mostram em conforme a legibilidade social padrão para o feminino
(SCHWANTES, 1997, p.10). Esse
figurino marcado pelo feminino, que pretende gerar tensão com o nome da banda, não é eficaz, pois embora
apareçam cortando carne, a legibilidade não gera dúvidas e reforça a
perspectiva binarista descrita no dicionário. Encontramos já no feminismo de
primeira onda (anos 1950) a diferenciação entre sexo biológico (até então,
considerando-se dois apenas) e gênero (BEAUVOIR, 1970, p. 28). Mais contemporaneamente,
Judith Butler expande a construção de gênero para a conjunção de identidade,
sexo e sexualidade, o que possibilita um grande espectro entre os extremos
Homem e Mulher. Assim, é possível compreender que a butch-femme não é uma "imitação de gênero", mas como uma
das possibilidades de ser (BUTLER,
2006, p.10).
O figurino usado por Bender e Jolene
faz referencia aos vestidos usados por mulheres estadunidenses de classe média
nos anos 1950. Se por um lado o traje branco se relaciona ao "estilo de
vida americano" (american way of life) e todo o
consumismo envolvido, os aventais manchados de vermelho denunciam a violência
ocultada pelo sistema. Somada à maquiagem brilhante e aos cabelos soltos, além
dos ruídos do ambiente, essa imagem hostil aponta para o fato do problema não
ter sido resolvido.
O clipe oficial parece um registro de
cinegrafista amador. A resolução das imagens, bem como os recortes, são
rudimentares e dialogam com o minimalismo da canção, propondo, no todo, uma
estética da precariedade. A performance da dupla nesse vídeo
"documentário" é o que Teri chama de catártica, cheia de explosões
assim como a melodia, tanto quanto sugerem as viscerais manchas de
"sangue". Vemos sempre o revezamento entre plano médio e close, numa
alternância brusca, possivelmente analítica, de cada mulher. Já os recortes e
vácuos visuais (também rítmicos e narrativos) do tremeluzente clipe conotam
certa dificuldade de transcender a situação opressora descrita.
A
canção traz em si, numa narrativa inacabada, as vozes da vítima e do
agressor, focando um tipo de relação supostamente permeada de afetividade, mas
que permite a violência extrema historicamente ocultada, que no entanto, passou
a ser questionada. E é exatamente a não justificativa e, ao mesmo tempo, a
falta de resolução que permanecem como um traço que os liga. Nesse caso, a
violência usada como meio de denúncia é um método retórico que leva a pessoa
que ouve/vê a questionar-se: acaso esse fato dado como comum é, realmente,
normal?
b.
I'M QUEEN
Little Boy how you want me high
Little Boy how you want me dead I said:
I'm Queen, I'm gonna fuck
Little Boy how you want me done, aha
Little Boy how you want me dead again
I'm Queen, I'm gonna fuck
[ Lyrics from: http://www.lyricsmode.com/lyrics/l/le_butcherettes/im_queen.html ]
I feel you breaking inside of me
I feel you breaking inside of me, man
I'm Queen, I'm gonna rock
You say you want me
You say you got me
You say you want me
You say you got me
But I don't see your name on me
So fuck you!
Disponível em: :<www.lyricsmode.com/lyrics/l/le_butcherettes/im_queen.html>
Porém, se na canção anterior a voz
narrativa abordava a violência contra a mulher, em I'm Queen, a única voz é a da mulher. Esta passa da constatação da
assimetria para uma tentativa emancipatória. Anteriormente a vítima era
imobilizada e silenciada, e a sua mudança de estado leva a uma inversão: a
vítima vira o monstro que temia. Esse sentido visual e verbal é relativizado
pelo tom irônico em que se dá o canto.
Inicialmente vemos a cena do lugar de
quem comanda a câmera, portanto, a imagem da lente é quase ininteligível. Então
o campo se abre e vemos um homem sentado numa cadeira, as mãos amarradas pra
trás, no primeiro plano. Teri está na
porta de um local de armazenamento de carne, de frente pra nós e pra ele, quando
começa a cantar. Auryn e sua bateria estão no interior da sala azulejada
envolta por grandes lascas de carne (Fig.2).
Uma série de imagens são lançadas, entremeadas
de efeitos e não correspondência de som e imagem, que simulam as falhas de
filmes em película.
A narrativa contida na letra é incerta,
como na música anterior, o que - assim como a melodia minimalista - chama a
atenção ao discurso verbal. Esse foco prosódico é enfatizado pela
passionalização de vocábulos que se repetem como "boy",
"high", "fuck" e "rock" que são a essência da letra.
A voz narrativa tomou o poder, e agora, se faz ouvir.
No ciclo de diálogos intitulado
"Filosofia do rock" sob curadoria da filósofa Márcia Tiburi[12], Walter, o DJ do evento,
disse: "O rock é fálico, poder e viril", talvez em contraponto ao
mote de Tiburi "A fala é o falo".
Essa frase evidencia a transgressão das Butcherettes expressa no âmbito das
personas das integrantes e da voz lírica: metonimicamente, as mulheres tomam o
microfone e podem romper o silenciamento falando de si mesmas. Quanto a I'm Queen, esse espaço de falo propicia
a inversão da injustiça. Mostra uma voz que busca solucionar a anterior
situação de vítima se não tornando-se agressora, retaliando no refrão "I'm
queen, I'm gonna fuck". Essa parece ser uma referencia a outra canção
delas, como vemos abaixo:
The king is dead, aha
He lays in front of you, in front of you
The king is dead, aha
He lays in front of you
In front of you
(Le Butcherettes - I'm Getting Sick Of You).
Se o rei - o patriarca e todo o tipo de domesticação que
ele representa - está deitado e morto,
há agora espaço de afirmação da rainha. Ela deixa de ser mera acompanhante
(embaixatriz) e torna-se a dirigente (embaixadora), pronta para revidar toda a
violência sofrida. Se em I'm getting sick
of you uma voz narrativa consciente se dirige à mulher, em I'm Queen é a mulher quem se emancipa e
ameaça: "Agora sou a rainha e vou te foder". A passionalização em
"Queen" em oposição a "Fuck", deitizada, enfatiza essa
ligação num tom irônico que revela uma verdade monstruosa (RIBEIRO,2008, p.49).
Isso também se nota na repetição das frases ameaçadoras passionalizadas, com o
"aha" final e no chiste que reduz o grande homem a uma criança
"litle boy". O vocábulo "fuck" cria uma angústia por prever
alguma ação de violência extrema que não dá pistas do que é, agravando a
ansiedade pelo porvir. É justamente a desterritorialização efeito do grotesco e,
na canção, surge como mistura de terror e sorriso; segundo Kayser, esse efeito
é fundamentado no mundo confiável e aparentemente arrimado que vivemos, mas
onde irrompem poderes abismais que desarticulam as arestas e as formas e,
assim, dissolve as ordenações (KAYSER, 1957, p.40 apud RIBEIRO, 2008, p.50). É dessa instancia subterrânea e temível
que surge a revanche da Rainha desterritorializada [13] que Teri dá voz.
O vocábulo "foder" traz o
sentido sexual de penetração e social de força. Noutras palavras, fode quem tem
o poder, que corresponde ao falo. Assim, significa também agredir, infligir
qualquer mal.
Historicamente, as mulheres tem sido
objetificadas através da função gerativa e da violação sexual, portanto, foder,
para uma mulher, significa ter relação sexual (cópula), se dar mal,
desgraçar-se, mas também, causar mal. É uma referencia à relação heterossexual,
que pressupõe a penetração como ação de opostos (ativo/passiva) que é prazeroso
ao homem e gera consequências para a mulher (gravidez). Na canção, podemos ver a
referencia ao feminismo radical de Valerie Solanas. No Manifesto S.C.U.M ela
afirma que, na verdade, os homens são fêmeas incompletas, ou seja o que as
mulheres ainda são forçadas socialmente ser:
Absolutamente
egocêntrico, incapaz de relacionar-se, de ter empatia ou de identificar-se, e
dominado por uma sexualidade vasta, difusa e penetrante, o macho é
psiquicamente passivo. Ele odeia sua própria passividade, a projeta nas
mulheres, define o macho como ativo, e se propõe a demonstrar que é (“provar
que é um Homem”). Seu principal meio de tentar demonstrá-lo é foder (o Grande
Homem com uma Grande Pica rasgando uma Grande Xoxota). Como está tentando
provar um erro, deve repeti-lo várias e várias vezes. Foder é, portanto, uma
tentativa desesperada e compulsiva dele provar que não é passivo, que não é uma
mulher; mas ele é passivo e deseja ser uma mulher (SOLANAS, .
A canção, então, ao prever a
retaliação, na verdade, cita o que seria voltar a "normalidade"
prefigurada por Solanas em que o homem é a contraparte passiva. Dentro da
proposta da banda, podemos pensar nessa "mudança de papel" a quebra
de fronteira macho/fêmea binária e rígida.
A mudança de situação, de quem sentia o
estupro, a penetração violenta no seu interior continua e repetidamente até
agora ( o verbo está sentir está no presente "I feel") para quem tem
poder de reivindicar a violência culmina em:
You say you
want me
You say you got me
You say you want me
You say you got me
But I don't see your name on me
So fuck you!
You say you got me
You say you want me
You say you got me
But I don't see your name on me
So fuck you!
A voz de Teri parafraseia o
"rei" que diz desejá-la, tê-la repetida e continuamente, mas ela é
categórica ao responder: "Mas não tem o seu nome escrito em mim, então,
foda-se". Assim, ela conclui partindo o conceito de propriedade, que
fundamenta a opressão feminina e norteia todas as opressões desde a histórica
transição do período Neolítico, em que prevaleciam as sociedades comunitárias,
matriarcais, fundamentadas na crença numa deusa geradora, para as sociedades
coletoras e caçadoras em que já havia estratificação social que se desenvolve
até a Antiguidade e seu capitalismo primitivo (MURARO, 2009, p.8).
4. Conclusão
O grotesco é um fenômento estético cuja
abordagem está associada ao hiperbólico, ao exagero e à ironia. Usando-se
dessas ferramentas, ele propõe subversões dos padrões normatizantes do
feminino, forçando brechas e espectros entre feminino e masculino (FLICK, 2011,
p.1). Dessa maneira, é usual, desde as primeiras manifestações artísticas
femininas a presença dessa estética na literatura da primeira metade do século
dezenove, e seu desdobramento na arte contemporânea. Cabe salientar que havia
manifestações artísticas de autoria feminina antes do Gótico como a poesia de
Sapho e as pinturas de Artemísia, porém, tratava-se de exceção e é uma
genealogia que busca-se recuperar atualmente. Assim, o grande marco do Gótico
se refere à produção maciça. É nesta herança que percebo a produção das
Butcherettes que se valem do grotesco, do terrível, da violência para sinalizar
a opressão sofrida por mulheres, mas não apenas nós, como todo ser humano que
destoe do padrão firmado durante a Modernidade. Assim, as canções de Teri e
Jolene reivindicam o "ensejo ao acaso", isso é, a heterogeneidade dos
corpos, das identidades, gêneros e sexualidades forçando uma abertura dentro do
espaço ainda limitador (FLICK, 2011, p.3).
Notamos portanto, que essa manifestação
artística contemporânea, ao fazer uso da estética grotesca, evidencia uma
linhagem feminina de questionamento e subversão, atualizando-a, e propõe uma
ressignificação do feminino enquanto corpo e gênero numa perspectiva estética e
moral, utópica, assim como o feminismo.
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*O texto é uma adaptação do artigo O Grotesco Feminino como estratégia feminista, de minha autoria, resultado da pesquisa de Iniciação Científica orientado pela profa. Cíntia Schwantes (2013-2014).
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REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: Lendas e fatos. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980. 3.ed.
BUTLER,
Judith. Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade.
Rio
de Janeiro: Editora Civilização. Brasileira, 2003.
COSTA,
Claudia de Lima; ÁVILA, Eliana. Gloria
Anzaldúa, a consciencia mestiça e o "feminismo da diferença" in Estudos Feministas, Florianópolis, (p.691-703)
setembro-dezembro, quadrimestral, 2006.
FRIEDAM,
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Vozes, 1971.
FLICK,
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subversivas em Doroteia de Nelson Rodrigues. Salvador: Universidade Federal da
Bahia, 2011.
DISENFELD,
Raquel. Antipatriarcado, autonomia y
ecologia social. Campaña Autogestiva
Contra el Abuso Sexual Infantil, Mujeres Libres.(folheto).
HUGO,
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São Paulo: Perspectiva. 2. Ed. 2007.
MURARO,
Rose Marie. Introdução Histórica ao
Malleus Malleficarum. in KRAMER,
Heinrich; SPRENGER, James. Malleus
Malleficarum: O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos,
2009, 20. ed.
QUIANGALA,
Anne Caroline. O grotesco feminino no
romance gráfico Y: último homem. (Monografia),
UnB, 2012.
RIBEIRO,
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[1] Tragédias
como Antígona e As Suplicantes, respectivamente de Sófocles e Ésquilo.
[2]
Embora ela centre sua análise no feminino, não se trata unicamente de
"Mulher" como gênero e conjuga os espectros de tudo que destoa da Normatização vigente desde a
Modernidade.
[3] Longe de
ser simplesmente um discurso musical, a banda tinha/tem um comprometimento
igualmente importante com a performance, o figurino, o cenário, enfim, discurso
visual.
[4] As letras de Le Butcherettes se referem
especificamente a questões de gênero (como tratarei adiante), muito embora, em
entrevistas, Teri Bender tenha explicitado uma lógica política de que o
feminismo deve articular as diferentes causas políticas.
[5]
O décimo segundo capítulo de sua "Mística Feminina" intitula-se: Crescente
desumanização: um confortável campo de concentração, que diz respeito a vida da
mulher de classe média.
[6]
Acordes na guitarra que são construídos pela nota tônica e a quinta a partir
dela. Esse tipo de acorde, produzido na corda
mais grave, é amplamente usados em ritmos derivados rock como o punk¸indie e heavy metal.
[7]
Riff ou Ostinato é a progressão de acordes, intervalos ou notas musicais
que são repetidos ciclicamente numa canção.
[8]
Partindo do pressuposto que a banda tinha como objetivo falar da hierarquia
entre mulheres e homens, observo nos pronomes uma forma direta de elucidar a
temática da "violência contra as mulheres praticada pelos homens".
[9] Uma das premissas do grupo anarco-feminista
espanhol Mujeres libres é existencia
duma relação entre terrorismo de Estado e terrorismo sexual que se apoia na
negação da violencia e na culpabilzação da vítima (DISENFELD, s/a, s/p).
[10] Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília em
27 de junho de 2012. Tema: Paul Simon, música e a incomunicabilidade.
Convidado: Leoni.
[11] A
mulher ou mulheres que tem voz nas canções das Butcherettes são chicanas, por
si só, mulheres de cultura híbrida não assimilacionista, que não são nem
mexicanas nem estadunidenses stricto
senso, e, por tal, revindicam seu próprio lar aberto ao ilegal, párea,
Queer (STEPHENSON, 2003, p.371 apud COSTA;
ÁVILA, 2005, p.694)
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