Quem é bela com raiva?
Interpretação é fonte de poder, não de verdades".
Black Swan theory
Não é uma questão de querela, mas quem pode contar histórias? É comum encontrar nos movimentos sociais a ideia de que primeiro vão uns (privilegiados) para que os demais também atravessem a fronteira, seja da humanidade ou dos direitos à própria vida. Anteriormente, essa máxima se mostrou real, porque a história é narrada assim: quem é ouvida fala por todas e quem é minoritária sequer é citada. Uma estratégia comum para aliviar essa tensão é citar feministas Negras através de falas ou de fotos, o que significa - noutras palavras - "estar dentro, embora fora".
Uma feminista Negra em meio a outras mulheres cria um cenário de diversidade, mas continua emudecida, devorada pela generalização. Efetivo é ter espaço para falar por si mesma, embora alianças sejam importantíssimas.Nesse sentido, a interseccionalidade (um dos pressupostos do Feminismo Negro) enriquece a relação entre feministas e enriquece a crítica, porque leva em conta a especificidade de uma mulher que sofre múltiplas violências: sexismo, etarismo, racismo, gordofobia, homofobia, classismo.
Interseccionalidade é um conceito utilizado mais como cenário que prática diária. Deste modo, mostrar a presença das mulheres Negras nas militâncias é um remendo na história convencional dos movimentos negros e feministas, assim como "A história das mulheres" é remendo na grande narrativa histórica (a história dos homens brancos). Remendo significa que é uma história citada, mas que permanece heterogênea no "todo" tal como o ditado "para inglês ver". Agora que até a Universidade permite que nos posicionemos como feministas (em vez de estudantes de gênero), percebemos quem continua a atravessar primeiro a barreira. Dito isso, proponho uma análise do documentário She's beatiful when she's angry (dirigido pelas cineastas Mary Doe e Nancy Kennedy, E.U.A, 2014) que leve em conta o lugar de fala, interseccionalidade e crítica à branquitude.
Primeiro: sendo Negra, a palavra "raivosa" já remete ao estereótipo da "mulher negra raivosa" (angry Black woman) que a maioria das Feministas Negras já foi associada. Segundo, o que se chama de movimento feminista é, na verdade, uma série de teorias e epistemologias que buscam o fim das opressões, mas, que, na prática, concorrem pela simples dificuldade de negociação. O problema, muitas vezes, se resume ao protagonismo e à dificuldade de pensar sobre privilégios.
"A luta pelos direitos civis forma o Movimento de mulheres" (trad. livre) |
Tudo isso para dizer que o documentário She's beatiful when she's angry é mais uma aula de feminismo veiculando o discurso branco e a branquitude em sua forma mais modesta, que reconhece a ausência de Negras, LGBTTTIQ [1] e que até luta junto. Existe uma diferença grande entre lutar junto e posar de inclusiva. No caso do filme, nos primeiros dez minutos, podemos perceber qual o lugar de fala predominante no longa: mulheres brancas, classe média que leram A Mística Feminina. Nas décadas de 60 e 70 as lutas por emprego não inauguram a entrada das mulheres Negras no mercado de trabalho, basta pensar um pouco sobre a história da população negra nas Américas, o que Angela Davis historizou na obra Mulheres, Raça e Classe.
Jurema Werneck também questionou a história remendada que insere o Feminismo Negro como concessão na segunda onda em seu ensaio De Ialodês a Feministas e mostrou possibilidades interpretativas como a anterioridade. Mulheres indígenas não são focadas no filme, ainda que façam parte da história das mulheres nos Estados Unidos. Será que não há lideranças indígenas? E mulheres com deficiência? Essa ânsia de abarcar as "diferenças" não pode ser seletiva, sob o risco de evidenciar certo medo de soar racista.
Pense bem, se narrativas fílmicas resultam de uma intenção de quem dirige, podemos levar em conta que focar algo significa lançar luz neste e gerar sombras. Ao citar o feminismo negro sem definição na voz de ícones vivos como Ângela Davis e incorporar o que as não-negras (em especial brancas) entendem como negritude e mulheridade Negra temos uma postura ineficaz de parecer inclusiva. Quando minha amiga veio animada contar sobre essa atualização da Netflix, afirmou que era lindo, pois havia vários feminismos.
Quando perguntei se havia Angela Davis, Audre Lorde, Alice Walker ou bell hooks ela pensou bem e disse: "Bom, a Angela foi citada pela Trina Robbins". Sem dúvidas, A Trina foi uma aliada indiscutível, mas a ausência de Angela-ela-mesma é uma grave lacuna. Ausência da voz de Angela Davis, bem como lembrar de sua importância através de sujeitos brancos, atualiza a ideia de protagonismo branco nas lutas antirracistas, algo como reforçar o mito da Princesa Isabel e apagar a existência de Dandara.
Assim que comecei a pesquisar a história do feminismo e a "descobrir" a diversidade de feminismoS, eu li os mais diferentes pontos de vista (desde zines RadFem até Simone de Beauvoir), e isso foi muito enriquecedor. Quando passei aos textos acadêmicos, cheia de questionamentos, notei a insistência numa grande narrativa sobre Feminismos e suas ondas. Segundo essa visão, o início é a luta sufragista na Europa, depois a intersecção de Negras e Lésbicas para chegarmos à problemática da terceira onda "Quem é o sujeito do feminismo?". Há séculos as alianças tem se construído com base na ideia de liberação geral, mas:
1. mulheres brancas protagonizam e levam créditos ao afirmarem que criaram oportunidade para o feminismo negro e por tudo mais que, ora fazem, ora deixam de fazer.
2. afirmam que estão muitíssimo interessadas na luta antirracista, mas preferem falar dum racismo abstrato ignorando a crítica à própria branquitude.
“Irmã, você é bem-vinda nesta casa” (cartaz de Trina Robbins) |
História é a narrativa criada a partir duma voz autorizada. Sendo assim, o clichê "fio condutor" mantém o sentido próprio da hegemonia em She's beatiful... . O documentário reforça o senso comum de que UM feminismo "evoluiu" cumulativamente em "ondas" nas quais as pautas das mulheres Negras foram absorvidas, o que não faz sentido.
Para Djamila Ribeiro "nenhuma mulher Negra foi convidada à militância, mas pela necessidade de sobrevivência". Audre Lorde, aliás, disse que nessa sociedade que extermina a população negra, sobreviver é um ato político. Essas perspectivas estão fora do enquadramento de She's beautiful porque o filme foca a visão de mundo de mulheres que escolheram esse caminho, inclusive devido às condições materiais. De forma alguma reduzo a luta dessas feministas "históricas", apenas aponto para uma compreensão realmente interseccional. O ponto aqui, não é discutir quem é pioneira, mas enfatizar as lutas de mulheres não-brancas desde o período Colonial. Se privilegiam mulheres que optaram por lutar, ocultaram a experiência de mulheres que não tiveram escolha.
Denise Oliver-Velez "Abaixe o machismo e o chauvinismo dos homens" (trad, livre) |
Dentre as 31 organizações e sujeitos que conduzem a narrativa documental, 4 são pessoas Negras dentre as quais, 3 são Pretas (porque nos E.U.A os critérios de racialização são diferentes do Brasil). Apesar da iconicidade e da importância das quatro, é curioso que uma delas - Fran Beal - seja possivelmente lida com branca e, portanto, quando fala sobre racismo tenha mais espaço para falar. Como dito anteriormente, não há espaço para as mulheres Negras se identificarem com o discurso do filme, porque nossas teóricas centrais, aquelas que mudaram nossas vidas como Betty Friedam mudou as delas são - quando muito - citadas.
Congressista Eleanor Holmes Norton |
O encerramento do documentário foca a "Marcha das vadias" e tanto reforça a nossa interpretação da condução do filme desde a branquitude, quanto se mostra omisso à interseccionalidade. Será que a marcha mostra a compreensão de que há corpos marcados pela palavra "vadia" atravessado por séculos de estupros autorizados pelo racismo e classismo? Talvez possa parecer que eu esteja exigindo que o documentário abarque muitas frentes ao mesmo tempo, mas veja bem, é o que ele se propõe a fazer só que transformando antirracismo e empoderamento de lésbicas/identificadas em assuntos em vez de temas de discussão.
Linda Burnham |
Interseccionalidade não é admitir que as pautas especificas ou que o Feminismo Negro existem. Menos ainda autoriza-lo (feminismo nenhum precisa de autorização). Ilustrar um mosaico branco pensando desde a branquitude (ou seja, alheia à autocritica) bem como citar algumas denúncias e reivindicações é um tanto paternalista, transparece certa condescendência e a necessidade de protagonizar.
Fran Beal |
A centralidade da perspectiva de She's beautiful foge milimetricamente do que chamaríamos de primeira onda reforçando que primeiro atravessam a cerca as pessoas brancas, depois homens. No mais, o filme é construído de forma encantadora se pensamos nos recursos técnicos. Uma pena que seja mais um material que veicula a narrativa convencional. Faltou discutir em vez de personalizar as experiências, e - pior - faltou aliar estética e ética a fim de narrar o que permanece ocultado.
Referências
[1] LGBTTTIQ -(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgênero, Intersexuais e Queer).DAVIS, Angela Y. Mulheres, raça e classe. Disponível em: Rede HumanizaTrina Robbins. Disponível em: <ladyscomics.com.br/trina-robbins>..Acesso em: 21 jun. 16.
______. Encontro com Trina Robbins. Disponível em: <ladyscomics.com.br/encontro-com-trina-robbins>. Acesso em: 21 jun. 16.
SIMOES, Isabelle. [CINEMA] “She’s Beautiful When She’s Angry”: Os movimentos da libertação feminina na década de 60 e 70. Acesso em: 21 jun. 16.
WERNECK, Jurema. De Ialodês e Feministas. Acesso em: 21 jun. 16.
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