E SE EU NÃO QUISER BEIJAR O THOR?
Novíssimos Vingadores #04 (Mar/2016) : Thor versus Thor Roteiro de Jason Aaron/ Ilustração de Russel Dauterman - pag.12 (detalhe /editado) |
[Alerta: spoiler das edições #1-#4]
{Levo em consideração os fatos ATÉ a #4, portanto, nesse texto você não sabe a identidade da Thor}
Fora da Máquina
Quando aprendi o conceito de Deus ex-machina (um acontecimento aleatório que muda ocurso da história já na conclusão) consegui lidar com o padrão de aleatoriedade que encontramos nas Histórias em Quadrinhos. Apesar do conceito explicar a mudança de placar com a "chegada da cavalaria" ela não explica o porquê de certos beijos preencherem as páginas sem introdução nem desfecho. Parece que, no desespero de resolver a assexualidade de heroínas e heróis (porque a norma é ser sexualizada), inserem beijos na boca inesperados - aliás, deslocados. Em se tratando de Marvel, também parece surtir efeito de alívio cômico após cenas de batalhas e de explosões mágicas.
Muitas vezes é engraçado quando roteiristas desenvolvem uma peripécia que culmina num beijo constrangedor. Tensões afetivas podem ou não ser desenvolvidas partir daí, plot comum em shojo. O problema é quando o beijo aleatório repete padrões hegemônicos e perpetuam preconceitos que legitimam violências. É por isso que o problema não é a Lady Thor tomar a iniciativa de beijar o filho de Odin (que não se chama Thor, mas Odinson) e sim, o contraste que pode ser feito com outras situações de beijos aleatórios no Universo Marvel.
Totalmente Nova Marvel (2015)
A nova proposta editorial da Marvel chamada de Totalmente Nova e diferente Marvel, no Brasil, tem atraído muitas leitoras e leitores para títulos que não vendiam bem há tempos. As revistas da Thor (girl) venderam 40% mais do que as do príncipe de Asgard eu sou a prova vida disso, já que nunca havia me interessado pelo herói. Fãs clássicos não aceitaram bem a mudança de Thor e, quando criticam, afirmam que é a Marvel quem não aceita críticas. Sam Wilson foi tão aprovado que recebeu seu próprio título como Capitão América, a Miss Marvel Kamala Khan, bem como o Homem Aranha Miles Morales, participa efetivamente do evento atual, a Guerra Civil II.
O contexto de Thor versus Thor
Como sabemos, após a saga Eixo, o Thor Odinson se tornou indigno de empunhar o martelo encantado Mjolnir. "(...) uma mulher misteriosa foi capaz de erguer o martelo encantado e se tornar a nova Deusa do Trovão" (GUERRINO, 2016).
A trama de Thor #4 (Novíssimos Vingadores #4 - março/2016) parte da ascensão da nova Thor (#1), seu processo de adaptação ao artefato e a tentativa de Thor Odinson retomar sua posição de Deus do trovão. Vale lembrar que o Elfo Malekith se associou aos gigantes de gelo e que, na edição #2 (fev/2016), presenciamos o congelamento de diversos heróis e heroínas. Sobrou pra quem?
Enquanto a Thor buscava um modo de derrotar sozinha os gigantes, Malekith e um minotauro, Odinson apareceu furioso exigindo que ela entregasse o martelo a ele. Já nas primeiras páginas de Thor versus Thor observamos a rudeza do filho de Odin devido à sensação de ter sua identidade esvaziada. Essa sensação é tão extrema que ele ignora as ameaças e começa a insultar a desconhecida e ameaçar tomar o martelo. Eles lutam pelas sete páginas seguintes até que ele percebe que o martelo a escolheu. Depois de se sentir traído pelo "velho amigo", cabisbaixo assume que a desconhecida é nobre. Se ela é digna, ele pensa que só pode ser a mãe dele!? O modo de provar que não é a mãe de Odinson é beijando-lhe a boca (?).
Beijo fora da máquina
A "nova Thor" não tem a identidade revelada, não ainda, mas sua trajetória desde a primeira edição mostra sua força e também incertezas sobre essa nova condição. Vilões riem do fato de ser uma mulher com Mjolnir e não sabem como chamá-la (algo parecido com os nerds clássicos) e sua convicção nos convence de que ela é capaz de tomar decisões certas e lutar para salvar a si mesma. Após lutar com Odinson e mostrar que o martelo a escolheu, a aleatória cena de beijo parece desmontar essa convicção. Embora possa parecer que ela está apenas sendo humana, lembremos que ela é uma garota e protagoniza um título próprio como uma versão feminina o que tem sido vendido como característica central. A complexidade da Thor ficou em suspensão quando ela tomou a iniciativa de beijar o Thor aleatoriamente porque parece um delírio de garota adolescente de alcançar o prêmio.
Prêmio...? Muitas pessoas se sentem atraídas pela beleza de Odinson porque, basicamente, ele é um ícone do que a cultura ocidental entende por padrão de beleza: másculo, loiro, olhos azuis. Mesmo sem dignidade, ele continua sendo um príncipe; Por mais digna e poderosa que ela seja acabou reduzida a busca por homem, no fim das contas. Outro exemplo é a cientista Jane (Natalie Portman no filme Thor).
Beijo entre Thor e Jane
Estados Unidos - 2011 • cor • 114 min - Direção: Kenneth Branagh
A insistência na ideia de uma mulher beijar o Thor sem contexto ou discussão aberta sobre, transmite a ideia de que não adianta o quão forte você seja: sua vitalidade e desejo devem ser canalizadas para o prêmio. Trata-se tanto duma desmistificação da orientação sexual da heroína quanto um reforço sobre o lugar da mulher. A identificação com a heroína é atacada de súbito pela sua decisão de beija-lo porque a história não é sobre isso, não é sobre ele ser desejável ou aceitar um beijo como "prêmio consolação". É a jornada de uma heroína!
Outros acasos
Curioso que a cena de Thor versus Thor me lembrou de outros beijos fora da máquina como o de Valkíria e a Dra. Annabelle Riggs em Defensoras sem medo #1. Enquanto Misty Knight e Valkíria enfrentavam zumbis vikings, Annabelle é protegida e beijada pela campeã, como vemos abaixo.
Defensoras sem medo #1 (2013) p.21 (detalhe) Roteiro: Cullen Bunn - Arte: Will Sliney - Cores: Veronica Gandini |
Assim como Thor beijando Thor não faz sentido, essa cena é totalmente deslocada. Mesmo que ambos os beijos adiantem enredos posteriores, eles são apenas aleatórios. Se no caso de Thor/Thor temos um casal heterossexual branco e isso é propaganda do amor na mídia, por outro lado, o beijo entre Annabelle/Valkíria oferece uma perspectiva mais ampla por ser uma cena inusitada no mundo dos quadrinhos. Assim como a franquia Thor, Defensoras reitera o amor entre personagens brancas e o padrão binário que reforça atributos e características entendidas como femininas a uma pessoa e masculinas à outra. Geralmente, a figura mais "forte" e masculinizada (dentro dos estereótipos) está à direita. Certamente é uma imagem importante e empoderadora porque é rara, mas ainda parece em função de miradas masculinas (the male gaze). Cabe lembrar que Annabelle beija/é beijada por pessoas sem muito contexto e parece mais um modo de banalizar sua orientação sexual que de mostrar dignidade. Longe de criticar a liberdade afetivo-sexual, é mais resultado de um contraste com heróis e heroínas heterossexuais. No geral, "ninguém" sai beijando pessoas na rua, sem contexto.
Valéria Richards, filha do "casal fantástico", mandando a real para Verity Willis |
Em Y: o último homem (2002-2008) temos uma outra situação de beijo controversa. A personagem Negra chamada 355 é mostrada desde a primeira edição com características "masculinas" e tem um modo sarcástico de comentar a situação do mundo sem homens. Por si só, a discussão de gênero e raça (interseccionalidade) é tratada com essa construção de "masculinidade" de agente 355 e "feminilidade" da Dra. Mann (amarela) e a certeza de que uma delas é lésbica. Cria-se uma expectativa sobre agente que é quebrada à medida que 355 se apaixona pelo protagonista Yorick e se feminiliza [1]. Num momento de calmaria, as duas se beijam (quem está à esquerda?) e a discussão sobre sexualidade é atravessada pela aleatoriedade da relação entre elas. A construção desse affair como solução de tensões transmite a ênfase do beijo entre Dra. Mann/355 para um "desvio pontual" em vez de trazer a discussão sobre a bissexualidade da heroína. É lamentável que, no fim das contas, 355 não tem espaço para o amor porque seu desejo no enredo (qual a nova Thor) denota premiação.
É bastante raro ver cenas de amor entre pessoas não-brancas, portanto, apesar dos equívocos e da aleatoriedade, essa cena traz para o mundo dos quadrinhos aspectos da realidade que tem sido ignorados, a saber: 1) heroínas não são objeto sexual 2)heroínas não são necessariamente heterossexuais e 3)pessoas não-brancas amam/são amadas.
Y: o último homem #6 - Menina com Menina (Girl on Girl) (Vertigo/DC) (detalhe) Roteiro: Brian K. Vaughan - Arte: Pia Guerra - Cores: Pamela Rambo |
Outra possibilidade aleatória é:
January 2016 - All-New, All-Different #Avengers #4: Earth's Mightiest Kiss pic.twitter.com/mrek3fS7wV— Marvel Entertainment (@Marvel) 16 de outubro de 2015
Confesso que achei a sequencia da Thor beijando Sam Wilson bastante aleatória. Querendo ou não, o impacto é interessante porque quebra o padrão de donzelo/donzela e de donzela/donzela porque ambos salvam o dia e Sam Wilson é um herói negro! Por outro lado, logo lembramos do casal Luke Cage/Jessica Jones e já desanimamos: clichê. Parece simplesmente impossível quebrar o padrão de amor branco/heterossexual. Parece impossível ver pessoas negras, latinas, asiáticas se amarem. Lembremos que todos os títulos descritos até aqui são escritos por homens brancos. Em nosso contexto, Sam apenas repete o padrão de rapazes negros que preferem se relacionar com garotas brancas. Válido que a Thor beije ele e não o Thor, mas esse contexto continua construindo ranking de premiações.
E como contextualiza beijo?
Vale lembrar que ainda são poucas as heroínas Negras nos quadrinhos Mainstream, sobretudo aquelas que protagonizam um título próprio. Na maioria das vezes, vemos heroínas brancas se relacionando com pessoas brancas, mas, se há uma pessoa não-branca, ela beija/ama/namora uma branca. Se pensarmos no contexto estadunidense, as relações inter-raciais foram proibidas até menos de cinquenta anos atrás, diferente do Brasil, onde se incentiva as relações sexuais, desde a colonização, como estratégia de submeter povos não-brancos e ocultamento do racismo.
Gosto bastante da descrição do afeto entre Kate Kane (Batwoman) e Renee Montoya, porque há naturalidade nas cenas, são duas pessoas se relacionando, há contexto sem objetificação (quem é forte? qual a raça/cor? qual a posição no requadro?). Apesar de Kate Kane ser rica e branca [2] e Renee Montoya latina e policial, a relação entre elas é mostrada de forma não-hierárquica e bem menos estereotipada que as demais [3]. Acima de tudo: Kate não é um prêmio.
Batwoman - Kate Kane, Batwoman, Renee Montoya (DC) Arte e roteiro: JH Williams III - roteiro: Greg Rucka |
Em suma, a ideia é que pessoas não são prêmio, portanto, ninguém é obrigada a ser conduzida a esse tipo de ideia que mantém a hegemonia branca e heterossexista. Inserir um Thor numa história que não é dele pode até gerar bem-estar nas pessoas que o admiram ou sentem atração. O problema é que ele não é o que há de melhor, não é uma dádiva, apenas uma representação que convencionaram dizer que é belo - logo, todo mundo acha belo. Então, está tudo bem se você quiser beija-lo, desde que reflita sobre ele não ser a única possibilidade e sim um padrão. Também é tudo bem se você não o quiser beijar ou se não quiser beijar ninguém.
NOTAS
[1] "Amor Vincit Foeminam" ou "O amor feminiliza". (RUSS, Joanna. To write like a woman.: essays in feminism and science fiction.: Indiana: Indiana Press, 1995.)
[2] No contexto dos E.U.A Kate Kane como judia faz parte do que eles chamam "Pessoas de cor" ou "People of color", mas, no Brasil, entendemos os critérios de racialidade, sobretudo pelos dados, epidérmicos.
[3] Também é lamentável que Montoya seja sempre representada em relacionamentos com garotas brancas E ricas. Na série Gotham há um triângulo amoroso badvibes: Gordon (branco), Montoya (latina) e Barbara (branca).
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