GUEST POST: "Caça-Fantasmas (2016): notas pessoais sobre diversidade e representação"




por Anna Bárbara Araújo*

Quinta-feira passada eu fiz uma coisa que não fazia há muito tempo: ir ao cinema ver a estreia de um filme... um blockbuster... em 3D. Veja bem, não é que eu seja o que se chama pejorativamente de “diferentona”, uma dessas pessoas que só sai de casa pra ver festival de filme iraniano. Não é isso. Mas eu tenho que confessar que tenho sérios problemas com filmes blockbusters, porque, retomando o argumento de Wim Wenders no maravilhoso “Janela da Alma”, me incomoda o fato de que alguns filmes da grande indústria cultural (se é que a gente ainda pode falar assim) não deixem espaço pra interpretação. Quer dizer, é como se eles jogassem todos os sentidos na tela e fizessem esse trabalho de interpretação pelo expectador. A identificação é mais imediata, mais direta, menos plural. E a pluralidade, quando existe, muitas vezes se transforma em “mindfuck”. Aí esses filmes viram uma fórmula, altamente reproduzível de comédia + drama + ação e mostram um conjunto de cenas milimetricamente encadeadas de modo a criar reações específicas, emoções específicas, risadas específicas. Enfim, sou chata. Há quem diga que quando a gente pensa em ficção científica é justamente o contrário: o mundo dos vários possíveis, da criação de ciborgues (no sentido pós-estruturalista do termo), mas não vou estender essa discussão aqui.

Também me incomoda como parte desses filmes assume a perspectiva da masculinidade branca, rica ou classe média como produtora, interlocutora e consumidora dessas narrativas. Algo que certamente não me representa. E aí, a possibilidade de criar empatia, de criar essa identificação imediata tão cara aos grandes filmes, não se realiza. Felizmente, podemos identificar pequenas (pequenas mesmo, no passinho da tartaruga) mudanças nesse sentido. Seja porque as demandas por representatividade das minorias estejam finalmente sendo ouvidas, seja porque a indústria do entretenimento percebeu a existência de um nicho consumidor relativamente poderoso, agora a gente tem mais diversidade, em termos étnico-raciais, de gênero e sexualidade nas megaproduções de cinema. A seguir vou discutir melhor essa diversidade e seus limites.

Mas antes disso, volto ao relato do início do texto: foram justamente as ideias de representação e de diversidade que me levaram ao cinema na quinta-feira passada. Foi a promessa de ver uma narrativa menos centrada na masculinidade hegemônica e menos estandardizada que me fizeram colocar os óculos 3D.


Antes mesmo do filme estrear o mundo dos haters estava em polvorosa. “Vão destruir minhas memórias de infância”, “qual o sentido dessas mulheres aí”, “tragam os atores originais de volta”, “lixo”, foram algumas das frases mencionadas. É bizarro ver a comoção causada pela escolha de 4 protagonistas mulheres em um filme. Acho sintomático do quanto essas pequenas mudanças em termos de representatividade são necessárias e do quanto são poderosas, por menores que sejam, pelo menos para gerar debate e causar mal-estar nos machistas de plantão.

Também é sintomático o fato de que a nota dada ao filme foi expressivamente menor por críticos e audiências masculinas[1]. Imagina quão dramático deve ser pra um homem ver um filme onde o único personagem masculino de destaque está lá pra ser admirado por sua beleza e pra gerar risadas em torno de sua burrice descomunal. E de ver mulheres como protagonistas, com agência, como pessoas fortes, inteligentes e engenhosas. Parece que o jogo virou, não é, queridinhos¿



O filme é bom, me entreteve durante suas quase duas horas, me fez rir bastante e principalmente, me fez ficar com um sorriso bobo quase constante por simplesmente ter a possibilidade de assistir mulheres fazendo coisas, por quase 2 horas, não para agradar homens ou para serem sexy. Em um filme blockbuster. Em uma quinta à noite.  Em uma sessão 3D relativamente cheia.

Representatividade importa. Um dos mecanismos mais fortes de dominação é negar legitimidade às experiências e à própria subjetividade dos grupos dominados. Negar que se vejam nos espaços de poder, na mídia, nos trabalhos prestigiosos, fortalecendo a ideia de que se tratam, de fato, de lugares inacessíveis e de que não foram feitos para estas pessoas.

Uma das protagonistas do filme, interpretada pela maravilhosa Leslie Jones, é negra. Recentemente a atriz disse a Whoopi Goldberg que percebeu que poderia ser atriz e comediante ao assisti-la na TV, quando criança[2]. Whoopi Goldberg, por sua vez, comenta sobre sua alegria ao assistir Nichelle Nichols em Star Trek: uma mulher negra, num seriado de TV, que não estava interpretando o papel de empregada.





Representatividade importa. Mas eu sempre fico me lembrando de um texto da Audre Lorde em Sister Outsider[3], onde entre várias outras coisas geniais, ela diz que se ressente com o fato de que os espaços das feministas negras e lésbicas na academia e mais propriamente nos debates acadêmicos do feminismo serem bastante restritos. Elas estão lá, nos painéis que discutem raça e sexualidade. Apenas. Como se não tivessem nada a dizer sobre os outros temas do feminismo. E pior, como se os outros temas do feminismo fossem alheios – ou pudessem ser alheios – a discussões de raça e de sexualidade.

Mas o que isso tem a ver com ghostbusters¿ Me explico. Parece que a crítica da Lorde é a de que as feministas negras e lésbicas estavam (estão¿) sendo convidadas para ocupar lugares bastante específicos e marginais dentro das discussões do feminismo. Mais do que isso, muitas vezes elas estariam sendo convidadas apenas para garantir a falsa sensação de diversidade nesses espaços.
É importante considerar que negros (e outras minorias) podem ser instrumentalizados como tolkens, i.e., como símbolos e prova de que determinado programa, filme, espaço acadêmico, partido político, etc. é de fato diverso. A diversidade – de gênero, de raça e de sexualidade – se torna então um valor cultural e se incorpora à produção capitalista, inclusive dos filmes. O que não garante que a subjetividade e as experiências das minorias sejam representadas, ou que sejam representadas de forma não estereotipada.

É um tema difícil e polêmico e me incomodou o fato de que a única mulher negra do filme é retratada como bonachona, supersticiosa, não cientista (diferentemente das outras). Acho que isso é uma falha do filme, eu gostaria muito mais de ver Leslie Jones como uma cientista talentosa e com PhD. Veja bem, não é que eu ache errado ver uma mulher negra como bonachona, supersticiosa e não cientista. O que incomoda é vê-la apenas nesse papel. E, na minha opinião isso seria facilmente resolvido se houvesse outros personagens negros na história. Porque aí poderiam ser exploradas diferentes identidades, diferentes subjetividades e poderia haver de fato, e no melhor sentido do termo, diversidade.






*Anna Bárbara Araujo: Doutoranda em sociologia e feminista. Brasiliense moradora do Rio de Janeiro. Entusiasta do filmow e da netflix.




[1] www.slate.com/blogs/browbeat/2016/07/12/is_there_a_gender_divide_between_critics_who_love_the_new_ghostbusters_and.html
[2] http://www.brasilpost.com.br/2016/07/15/leslie-jones-representatividade-whoopi-goldberg_n_11022150.html
[3] Lorde, Audre 1984. The Master’s Tools Will never Dismantle the Master’s House (110-113). In Sister Outsider. California: The Crossing Press Feminist Series.

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