(GUEST POST) SERÁ QUE ESTAMOS EM GAME OF THRONES?




por Larissa Ribeiro* 


Há um ano, eu evitava a série. Nunca havia assistido nenhum episódio, porque tenho uma maniazinha de criar resistência quando falam muito sobre alguma coisa. E vamos combinar que em dia de episódio de GoT TODO MUNDO fala sobre isso, só ficando fora da internet ou bloqueando tudo pra escapar. 

Mas na quinta temporada resolvi dar uma chance a esse tal jogo dos tronos. E tive uma surpresa boa. Não só por gostar de fantasia fantástica ou pelos motivos que rendem tantas indicações ao Emmy. Isso até quem não assiste sabe. É pelo desenvolvimento dos personagens e como nos apagamos às suas histórias. Principalmente os femininos. 

A série se passa em Westeros, análoga à Idade Média. Então você já sabe que não verá autonomia para as mulheres. Desprezo, violência, estupros, casamentos forçados são vistos como rotina. O que não significa que elas não contrariem a sociedade, e lutem por seus ideais, objetivos e famílias. 

Vemos meninas e mulheres lutando por poder, reconhecimento, vingança, tudo em um mundo dominado pelos homens. E as conquistas femininas são tão boas de ver! 

Tudo isso é muito bom. Existem outras séries nessa mesma temática com outras mulheres poderosas, mas tantas assim? Há uma diferença na faixa etária e nas motivações (Cersei é uma mulher adulta, e tramou para se tornar a rainha regente, Arya é uma adolescente querendo vingança pela sua família, Brienne é uma “cavaleira” que fez tudo para cumprir sua promessas). 





É maravilhoso ver as mulheres não sendo retratadas como donzelas em perigo, lutando e tomando as decisões de suas vidas sozinhas, mas... só tem uma personagem negra. Que mesmo evoluindo e crescendo na trama, ainda é esquecida por muitos fãs. 



“Tô ligada que vocês não se lembraram de mim na imagem ali “ 


E eu abro essa questão com os tipos de comentários que vejo sobre a série. 

“Só tem escravos negros em Game of Thrones” 


Não. A escravidão é comum nas cidades livres, e há brancos lá também. Os lysenos são escravizados, mesmo sendo fisicamente semelhantes aos Targaryens. No livro (LEIAM GENTE PODEM LER) essa questão é bem óbvia, pra ser escravizado basta morar em uma cidade vulnerável e não ter uma família influente. A série é que peca nisso, não mostrando que os escravos são de várias raças, além de sumir com alguns dos poucos personagens negros, como Chataya e Alaya (substituídas pela Ross e as prostitutas monossilábicas no bordel do Mindinho). 

E tem as Serpentes de Areia. Esqueça aquela coisa mal escrita, com personagens unidimensionais das quais só sabemos a vontade de vingar a morte de Oberyn e MUITO MAL aproveitadas. Além de se tornarem quase uma coisa só, destruíram a diversidade das personagens, só o cabelo muda entre as três. 

Tyene seria loira, Sarella e Obara seriam negras. Como o povo de Dorne é quem conta com a maior diversidade do reino, essa foi outra perda. 






As Serpentes que você só verá nos livros. Abaixo, as “trigêmeas assassinas”. 




“O primeiro negro da série foi um pirata” 


Foi sim. E foi muito bom. Vi muita gente chamando o Salladhor Saan de ladrão pelo fato de ser um pirata, mas não os vejo chamando Euron Greyjoy (outro pirata) do mesmo jeito. 

Na série, Salladhor (interpretado pelo excelente Lucian Msamati) é CAPITÃO, rico, dono de uma grande frota, e é tão poderoso que se intitula como Príncipe do Mar Estreito. Corajoso e bem humorado, mesmo sabendo que a causa do Rei Stannis era praticamente perdida se aliou a ele. Mais pela amizade a Sor Davos (um dos seguidores de Stannis), do que pelos lucros que poderia ter. 

E porque o Salladhor incomodou tanto?Bom, porque pra começar, a maioria das vezes em que os filmes e séries mostram negros na pirataria é sempre aquele estereótipo do marujo enorme,musculoso,e vestido com trapos (cof cof Piratas do Caribe). 




Um pirata negro que não é um marujo sem camisa? Hum vou reclamar. 


É o mesmo pessoal que justifica o protagonismo branco com: “Mas a série se passa no contexto da idade média”. 

Ah,porque os negros não existiam durante a Idade Média né.Só “apareceram” para serem sequestrados e escravizados? 

Deixem-me falar uma coisinha pra vocês. Mesmo antes dos Fernandos, Ricardos e Marias reinarem na Europa, já haviam impérios pré coloniais na África,como o Dahomey e o Ashanti.Rainhas,reis,príncipes,imperadores (em alguns países existentes até hoje) eram prósperos e respeitados. Na África Ocidental por exemplo, o Império de Benim (atual Nigéria),fazia comércio com os europeus, exportando bronze,prata,marfim,pimenta,produtos têxteis e muito mais. Dentro do próprio continente, importavam cobre, algodão e cola dos atuais Sudão e Guiné. As esculturas em bronze de Benim são famosas até hoje, pelo trabalho minucioso em relevo e nos detalhes únicos de cada peça. Eles tinham seus próprios escravos,apesar de que diferente do que aconteceria após as colonizações, os escravos tinham certa liberdade religiosa e os filhos destes não eram propriedade do seu senhor. 

Mas isso você não verá no seu livro “didático” de História distribuído nas escolas. No máximo, uma passagem pelo Egito, que de tanto ser mostrado como branco pela mídia, tem quem ache que não faz parte do continente africano. Isso é uma das razões pela minha preocupação com a falta da aplicação da lei 10.639[1],mas isso é pauta pra um próximo artigo. 



Bandeira do Império de Benim. Me diz se não seria perfeito como brasão de uma das casas de Westeros? 



Atualmente, há dois personagens negros recorrentes. São ex-escravos, libertos pela Daenerys. E mesmo crescendo na trama, não vejo o mesmo furor que dedicam a outros coadjuvantes brancos. 

O Verme Cinzento não falava quase nada durante suas primeiras aparições. O treinamento dos Imaculados, o exército que ele fez parte (nos livros logicamente descritos como escravos de várias de raças, e na série formado só por negros) é a coisa mais desumana. Os meninos são castrados, tem o nome trocado e associado a coisas ruins e sofrem mutilações diariamente. Querem que eles se vejam como coisas. Missandei é tradutora, nós ainda a ouvimos de imediato. Então,veio a Daenerys. 

Matou e incendiou os mestres, fez um discursão, e teve aquela cena bizarra (só na cabeça dos diretores pra achar que aquilo tá legal) onde centenas de escravos a carregaram e chamaram de “mhysa”(mãe).A salvadora branca num mar de escravos negros né.Tá. 

Claro, as audiências mais inocentes podem enxergar a Daenerys como a ‘Princesa Isabel de Astapor’, tão boazinha, mas é óbvio que ela não os libertou por puro altruísmo.Uma rainha precisa de seguidores. Chegando em uma multidão desesperada e cansada da escravidão, desrespeito e abuso, fazendo promessas a eles,o que poderiam escolher? 

Quando ela se diz quebradora de correntes, é apenas um dos seus vários títulos. Ela até os liberta com boas intenções, mas no fundo tudo é para que você a sirva. Caso contrário, encare a destruição que os bebês da mamãe(até gosto deles) deixam pra trás. Você pode servir ou sei lá,morrer de fome. 

Os dois estão com ela porque quiseram seguí-la e isso se deve ao poder de discurso.E mesmo assim, o resto da multidão liberta acaba se voltando contra ela, porque por mais boazinha que você diga ser, promessas tem prazo de validade. 

Felizmente o crescimento de Missandei na última temporada é visível. Durante o “exílio” da Khaleesi,ela fez parte do pequeno conselho, junto com Verme Cinzento e Tyrion Lannister.E se mostrou muito contrariada quando Tyrion fez um acordo de permissão para escravidão por mais sete anos nas cidades vizinhas. Quando ela questiona sobre isso,Tyrion diz que entende sobre como ela se sente. 





Vocês vêem a diferença? 

O Tyrion só foi vendido como escravo porque estava fugindo da irmã.Assim,não poderia revelar sua origem (quantas vezes Tyrion usou o fato de ser Lannister pra escapar)ou seria morto. Missandei nunca teve essa escolha. 

Claro,oTyrion está fazendo seu papel de mediador, mas ele nunca vai entender o que é uma vida de escravidão. Mais ou menos como as pessoas querendo problematizar a hashtag “blacklivesmatter”. 

Mesmo discordando com a decisão, ela apóia Tyrion, já que os libertos de Mereen ficam furiosos com esse acordo de sete anos mas a respeitam. Eles precisam de uma representante que os entenda, o que não vêem em Tyrion. Felizmente o acordo só dura até a volta da rainha. 

No fim das contas, Game of Thrones não peca em mostrar essa luta feminina, mas ainda tem o que melhorar. Há uma certa diversidade, mas não quero vê-la sendo jogada na tela de qualquer jeito, sem nenhum aprofundamento. Eu tenho minhas casas e personagens preferidas, mas não sou uma fã xiita e reconheço essas falhas. E se espero mais desenvolvimento pra Brienne e Yara por exemplo,quero o mesmo para Missandei. 



NOTA
[1] "Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. 





* Larissa Ribeiro. "Tenho 20 anos,comecei a estudar Pedagogia mais pelo acaso e acabei me encontrando no meio.E mesmo planejando fazer Jornalismo também,acredito que posso mudar o mundo. Escrevo,desenho,sou viciada em livros desde os cinco anos,sou fã de ficção científica,terror,Godfather e Stephen King.E tenho quase certeza que a Daenerys não é a única Targaryen restante".
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