Marvel, Público, Representação e Novidades totalmente... Novas?!

Riri Williams/IronHeart



A editora Marvel tem um histórico de mudanças que a maior parte das pessoas ignora. Segundo Sean Howe em Marvel Comics, a história secreta (2012), durante bastante tempo a equipe criativa foi composta por jovens brancos heterossexuais, suburbanos e, alguns, em conflito com a lei. Podemos constatar que, até recentemente a diversidade na representação  de personagens ocorria com maior fluidez que a presença de grupos marginalizados nas equipes criativas. Ela foi a primeira editora Mainstream a ter heróis negros relevantes (Pantera Negra, Tempestade, Luke Cage, Misty Knight, Claire Tample) e a discutir racismo durante a luta por diretos civis (X-Men), embora seja comum as pessoas afirmarem que X-Men trata unica e simplesmente da questão judaica (!). Na década de 1960, Amazing Spider Man apresentou uma população multirracial/multiétnica que passou a ser nomeada. Apesar disso, em 2016 temos o primeiro título roteirizado por uma mulher Negra; a revista O Mundo de Wakanda [World of Wakanda] que também é composta por uma equipe criativa composta totalmente por mulheres Negras. São elas: Afua Richardson (GeniusX-Men '92), Alitha Martinez (Batwoman, Ironman), Roxane Gay (Bad feminist), e Yona Harvey (Hemming the Water). Se por um lado, pensar a estratégia da Totalmente Nova e Totalmente diferente Marvel é poder ter um salto na representação de produtoras e de personagens, por outro, os avanços precisam ser pensados porque:

  1. Minorias não precisam escrever apenas sobre sobre si mesmas
  2. Minorias apenas descritas por equipes não configuram grande avanço
  3. Há muitas/os artistas negras e negros que precisam ser recrutados para escrever sobre qualquer tipo de personagem,
  4. Proeminentes personagens negras são roteirizadas e desenhadas por homens brancos que poderiam dar espaço para que pessoas negras possam escrever sobre sua experiência e, assim, torná-la real no sentido simbólico da autonomeação.
 
O mercado de quadrinhos é marcado por um ciclo de altas e baixas vendagens, modulado por estratégias sensacionalistas como "inédito", mortes, zeramentos e reboots que bagunçam cronologias há mais de oitenta anos, portanto, a mudança faz parte da própria dinâmica histórica da Marvel. Como já houve substituições temporárias antes da iniciativa chamada Marvel Now (como o Isaiah Bradley que assumiu o manto do Capitão América Steve Rogers), não podemos dizer que é exatamente inédito um Capitão América negro; por outro lado, as mudanças de gênero e raça que preconizam a Nova Marvel são um progresso considerável do ponto de vista da presença e da representação positiva dos grupos minoritários, que são minorias políticas, não numéricas. Hoje em dia, apesar da condição de desigualdade, esses grupos têm um poder de consumo que se mostra bastante ativo tanto no que se refere aos boicotes sistemáticos quanto alternativas empreendedoras. Dada a insistência das propagandas, a utilidade do produto (como cremes embranquecedores) e o próprio modo como as companias se posicionam, a população se mobiliza a ponto de pressionar os setores. Estamos tratando de populações destituídas de poder, portanto, a pressão é maior no sentido de conscientizar consumidores a mudarem os rumos das demandas.




Também a demanda por representação (política e estética) tem abrido portas para a acomodação dos interesses hegemônicos às necessidades desse momento histórico aparentemente integrado. Portanto, uma parcela considerável de pessoas passou a ser inserida no direcionamento e grandes empresas de quadrinhos e de audiovisual. Evidente que as estratégias e abordagens caminham lentamente, mas durante décadas pessoas que gostavam da linguagem quadrinística deviam abrir mão de certas objetivações de mal-estar vivenciadas pelos quadrinhos, sobretudo os da DC comics. A Marvel Max também construiu uma negritude masculina para o público adulto, nos anos 2000, tão estereotipada que uma mulher Negra jamais poderia se identificar. Luke Cage era construído como típico homem do hip hop MTv, invulnerável, forte demais, resistente demais... Como a retratação de negros escravizados. Possivelmente seu sonho original não fosse um par romântico com uma garota branca (camadas de Jim Crow), mas sua união com Jessica Jones causou uma nódoa tanto do ponto de vista conservador (óbvio) quando um mal-estar nosso.

E por falar nisso, quando o Falcão foi criado o pensamento vigente era o de que um herói Negro não venderia para todos, ao passo que um herói branco seria universalmente difundido. Esta é a noção de poder: quem tem poder se vê preso à incompreensão típica do narcisismo. "Ah, mas os trajes e os poderes dele são ridículos!". Claro, chique mesmo é cueca sobre o uniforme.




Durante muito tempo era verdade que "um rapaz branco não compraria o gibi dum herói Negro, ao passo que o contrário era verdadeiro. Não obstante, essas transformações foram motivadas por demandas do público, por volta de 2011, que interagia pelo twitter e ameaçava boicotar produtos que os ignorasse como consumidores. Por um lado, é positivo que a composição dessas personagens privilegia a complexidade humana, explora os recursos narrativos de forma interessante e possibilita ao público não-padrão que sempre consumiu, mas raramente podia se identificar, personagens que se parecem conosco. Por outro, estes títulos são produto de equipes criativas majoritariamente masculinas e brancas, o que revela a necessidade de incluir também profissionais mulheres, negros, jovens, LGBTQIA, não-judaico-cristãos para que a visão de mundo não se mantenha unidirecional.


Nova e totalmente nova Marvel


Sem dúvidas, é um grande passo ter títulos que foquem experiências, percepções e visões de mundo que foram mal exploradas anteriormente. A representação é uma forma de descrever o que existe, de criar imagens sobre o diferente e isso é uma responsabilidade também de autoras e autores de ficção. A grande questão é o comprometido com uma real quebra de estereótipos, duma discussão sobre sexismo, racismo, LGBTfobia, classismo e não a mera inclusão como assunto qualquer. O estardalhaço dos fãs conservadores, nada mais é que a tentativa de manter seus privilégios e poder oriundos duma suposta distinção. Essa força contrária é típica dos momentos em que há conquistas políticas dos grupos minoritários, pois o que está em jogo é uma mudança profunda no imaginário colonial das camadas privilegiadas. É curioso como muitas pessoas ignoram que X-Men é uma narrativa que discute racismo bem como Star Wars discute o imperialismo.

 
É uma ilusão acreditar que "o público de quadrinhos" é formado apenas por rapazes brancos. Eles são muito mais um público-alvo que audiência real, não é de hoje. Mas não há como computar dados de perguntas que não foram feitas, certo? Jovens das camadas privilegiadas só não se identificam com Miles Morales ou Kamala Khan se o medo de perder o poder for grande demais., pois são personagens com os quais o público pode se identificar, independente da faixa-etária. A forma como as personagens tem sido desenvolvidas, com profundidade, dilemas e complexidade humana, bem como os desafios que enfrentam são bastante verossímeis. Títulos como Novíssimos Vingadores (Thor e Capitão América) têm uma medida de metalinguagem e outras sofisticações que conferem uma dignidade ímpar para essas categorias sociais historicamente pouco desenvolvidas nos quadrinhos.


" Com isso não estou afirmando que apenas um grupo minoritário tem legitimidade de criar histórias sobre si (afinal, estamos falando de arte), mas que é preciso discutir a representação de uma forma mais profunda do que "mudar o herói"

A maior parte dos comentários insiste na ideia de que a Marvel "está forçando a barra" na inclusão e que não está deixando nenhum herói - digamos - clássico. Afirmar que a mudança é falta de criatividade parece uma forma leviana de dizer que a sociedade deveria se manter a mesma sempre. Não é um problema real a realocação das personagens, porque não me lembro de estardalhaços porque Carol Danvers (que é loira) assumiu o título de Capitã Marvel, o problema é que grupos historicamente privilegiados costumam camuflar o desejo autorreferente e de marginalização das minorias como "opinião" e "senso estético". Criar novos títulos para manter os antigos tais como são há décadas é um modo de dizer para cada um ficar no seu lugar.


Muita gente conheceu a Monica Rambeau como uma personagem "sarcástica" em Capitã Marvel. Curioso que o título não se chama "Capitã Marvel: Carol Danvers", não é?


É importante levar em conta que histórias em quadrinhos são produzidas por equipes criativas que são supervisionadas por um editor. Essa segmentação é potencialmente diversa de pontos de vista, mas a maioria dos títulos das grandes editoras é roteirizada e editada por homens brancos estadunidenses heterossexuais como Michael Bendis. Embora o trabalho criativo seja feito por roteiristas, ilustradores, coloristas e letristas, é o editor quem pode intervir nas camadas estéticas e discursivas, então seus valores predominam na forma de contar histórias e de representar personagens. Sendo assim, uma representatividade mais plural nos quadrinhos passa pela presença de profissionais de identidade e backgrounds diferentes. Com isso não estou afirmando que apenas um grupo minoritário tem legitimidade de criar histórias sobre si (afinal, estamos falando de arte), mas que é preciso discutir a representação de uma forma mais profunda do que "mudar o herói".


Já vi fãs argumentando que o Sam Wilson (Novíssimo Capitão América) "tem um uniforme ridículo", "que seu poder é insosso" e que "não faz sentido Steve Rogers ser o Alfred dele".


No mundo dos quadrinhos, as personagens tendem a ser mais progressistas que no universo cinemático, mas o que é considerado "descaracterização" é, em geral, tratado de forma parcial e focada no "gosto" e na "opinião". Já vi fãs argumentando que o Sam Wilson (Novíssimo Capitão América) "tem um uniforme ridículo", "que seu poder é insosso" e que "não faz sentido Steve Rogers ser o Alfred dele". Bom, sabemos que as mudanças são temporárias e que uniforme de super-heróis não são o look mais interessante da vida comum, sério que uma cueca sob a calça é menos ridícula que o uniforme clássico de Sam? Até mesmo que o novo? A Era de Bronze é sobre os poderes serem incríveis? A maioria dos fãs que se referem às mudanças como "descaracterização" defendem a manutenção de narrativas que privilegiam o sexismo (como "A piada mortal"), mas não se incomodam com as distorções dos conceitos no universo cinemático. Jessica Jones nos quadrinhos não é tão magra e jovem, a Tempestade dos filmes não é importante como a dos quadrinhos e a Mística não é heterossexual.. e tudo isso não foi encarado como um problema de descaracterização. Parece que  ideia de "descaracterização", na verdade, mascara um juízo de valor.


Assim, se eu pudesse modificar uma personagem da Marvel ela seria Misty Knight. Desde a década de 70, ela tem sido pouco desenvolvida. Àquela época era uma coadjuvante do Luke Cage, passou pela Dinastia M sem mudanças consideráveis, também pelas Defensoras sem Medo e chegou em 2015, na revista do Novíssimo Capitão América, como uma junção de estereótipos. Eu deixaria um pouco de lado esse aspecto de "badass" ou "mulher negra raivosa ( "angry Black woman") e exploraria sua complexidade psicológica e emocional de modo a transforma-la não num "estandarte da raça", mas nunca pessoa com quem seja possível se identificar!





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