[Painel] DC comics e a Representação Ultrajante
Novo Esquadrão Suicida #1 - Abril/2016
Sean Ryan (Roteiro)
Philippe Briones (Arte)
Blond (Cores)
Depois da aula de representação de gênero na literatura, me dirigi à parada de ônibus. Como o coletivo demorou, comecei a ler a edição #2 de Arlequina (pós novos 52), quando passou na minha frente um rapaz Negro todo cool, de boné caminhoneiro e camiseta da Marvel. Acabou que tomamos o mesmo ônibus e trocamos amenidades, daí ele me perguntou: "DC ou Marvel?". Olhei a camisa dele e respondi: "Marvel", 1) porque é verdade, 2) porque posso me identificar com as personagens que parecem comigo. Daí ele disse que preferia DC. Olhei pro rosto dele e buguei: Negro - camisa da Marvel - prefere...DC? Mal tinha percebido que eu - quadrinho da DC, camisa lisa, Negra - estava fazendo o mesmo, sem dar tanta bandeira.
Pifando e Entendendo
A primeira lição que eu absorvi foi a de que a linearidade é automática, mas a realidade nem tanto. Claro que eu sei disso, mas eu não concebi que o rapaz pudesse preferir "ser" Ciborgue ou Arraia Negra, pois o "gosto" visível obliterou o fato de que não conhecia a pessoa. Camisa estampada sempre diz algo sobre nós, mas não tudo. Continuando, ele disse que tinha mais contato com os filmes, e preferia BvS a Vingadores "porque as histórias da DC são mais maduras". A segunda coisa que percebi foi o meu estranhamento automático quando uma pessoa Preta prefere DC à Marvel. Imagens mentais correram sem palavras (T'Challa, Ororo, Misty Knight, Luke Cage) e pareceu muito óbvio que a Marvel é melhor. Pensando bem, não é apenas sobre isso, mas pela "dor da representação" que a DC insiste em produzir.
Apesar do Luke Cage (Marvel) ser marcado por estereótipos, é preciso reconhecer o discurso político empoderador: um cara negro, consciente, humano, agente/sujeito de sua vida e afetuoso. Ora, já a DC insiste em representar aspectos da marginalização de forma mais reiterativa do que crítica. Isso é desconfortável pra mim, porque só reflete a realidade de violências às quais sou potencialmente sujeitada. Ok, como vivo eu já sei disso, mas a vida não é APENAS isso, também rio, choro, sinto fome, uso celular, fico triste, falo com a TV e estudo - para lembrar Grada Kilomba.
Se tomarmos como exemplo o herói adolescente Miles Morales* há um equilíbrio entre o fato de ser negro, vulnerável às situações racistas e sua luta antirracista. Por que digo equilíbrio?
As histórias protagonizadas pelo Miles não se esquivam de mostrar que ele é negro, vem duma família desestruturada, e, ainda assim, essas não são as únicas informações sobre ele. O garoto sabe que é negro e tudo bem, é um dado, não precisa ser um fardo. Ele sente dor, é violentado pelo pai de sua ex-namorada (Katie Bishop) que pertence à Hidra (uma organização interessada em conquistar o mundo). Sabemos que a Hidra está ligada ao regime totalitário alemão, e que, portanto, são os vilões. A descrição do sofrimento de Miles em ter que lidar afeitiva e super-heroicamente tem sentido porque constrói uma jornada, reforça a motivação. A complexidade que essa representação gráfica alcansa mostra que um herói Negro pode ser carismático, profundo, efetivo e, acima de tudo, vendável. Agora, e o avesso disso?
Memórias plantadas: ultraje e a dor da representação
Quando se trata da representação de negros e de crítica ao racismo, a DC Comics é historicamente conservadora - todas sabem. Artistas que prestaram serviço para a editora dizem que la "é todo mundo engravatado e sério". Não que a Marvel, sua arque-rival, acerte sempre em tudo, mas só a DC pra "achar bonito" isso:
E isso:
A Namorada do Superman: Lois Lane # 106 (DC - Nov/1970) - Detalhe
Artista da capa: Curt
Swan
Roteirista: Robert Kanigher
Arte: Werner Roth
Arte-final: Vince Colletta
Podemos olhar para essas imagens e notar que foram produzidas há décadas, e supor que o direcionamento da DC mudou bastante. Podemos, inclusive, lembrar que o Demolidor de Frank Miller bem como outros conteúdos da Marvel podem ser muito racistas também..., mas New Suicide Squad #9 ** é de agosto de 2015 (E.U.A) e presenciamos isso:
Esquadrão Suicida #1 (abr/2016) - detalhe
"Ah, mas no cinema a DC tem Viola Davis e Will Smith, que estão incríveis" disse o rapaz cool. "Mal dirigidos, mas sim, temos vilões negros no cinema DC, ao passo que a Marvel esta engatinhando nisso", respondi. Não que eu tenha o hábito de comparar mídias - porque a Marvel audiovisual (MCU) não é dirigida na mesma perspectiva dos quadrinhos. E, mais uma vez: tem Luke Cage, Tempestade e Misty Knight.
A psicóloga portuguesa Grada Kilomba em sua obra Plantation Memories [Memórias Plantadas] centralizou a questão do racismo cotidiano [everyday racism] como a continuidade do trauma das relações coloniais na atualidade. Assim como a ideia de superioridade constrói a branquitude do sujeito branco, ela forja uma problemática construção do sujeito Negro a partir dessas experiências de plantação. "Ah, não vejo diferença", Ok, lá vai:
As representações do Novo Esquadrão suicida
A fim de gerar hype para o filme Esquadrão Suicida, a Panini/DC lançou o mix Novo Esquadrão Suicida com número de capa #1 (Abr/2016), que foi meu ponto de entrada. Fixada que sou em verificar o contexto de produção percebi que, nesta revista, foram compiladas as edições Convergence: The Flash 2 (jul/2015), New Suicide Squad #9 (ago/2015) e #10 (set/2015) com o valor de capa de R$ 7,60.
A revista começa com o prólogo "Fim dos tempos" em que temos as intriga entre John e Sra. Pesta, seguida da ação do esquadrão na Ucrânia. Curiosamente, a Arlequina segue o padrão dos filmes e não de sua própria revista: representada como uma garota seminua, "louca" e incapaz de cuidar de si mesma em contraste com as masculinidades agressivas, racionais e protetoras. Já em "Monstros" somos introduzidas à Amanda Waller, que explica a missão: os vilões deverão se infiltrar na ala separatista "mais radical"da Liga dos Assassinos, que, segundo Waller, é "uma organização terrorista obcecada por erradicar o que eles [todos homens] consideram corrupção, poluição e superpopulação...custe o que custar".
O grupo "extremista"é representado como uma atribuição de aspectos indesejáveis (lidos pelos E.U.A como terrorismo) às fraternidades racistas. O ponto alto, aliás, é trazer esse grupo como o mal real, apesar disso esconder lógicas complexas. A alegoria é composta pelo seguinte raciocínio:
Arlequina se coloca em perigo sem perceber e precisa ser resgatada. Apesar disso NÃO percebe que está em perigo... |
O grupo "extremista"é representado como uma atribuição de aspectos indesejáveis (lidos pelos E.U.A como terrorismo) às fraternidades racistas. O ponto alto, aliás, é trazer esse grupo como o mal real, apesar disso esconder lógicas complexas. A alegoria é composta pelo seguinte raciocínio:
1) nossos protagonistas são vilões, logo são descartáveis e prontos para trabalhos "sujos" e perigoso.
2) eles configuram uma equipe com minorias sociais
2) eles configuram uma equipe com minorias sociais
3) os antagonistas são "terroristas", logo seu objetivo é tanto perturbar a liberdade estadunidense como impor ditaduras
4) Os "terroristas" não são brancos
4) Os "terroristas" não são brancos
3) Se são terroristas, logo podem ser violentados.
Esse raciocínio induzido pela narrativa me lembrou do diálogo com o rapaz no ônibus. O padrão de consumo Nerd é construído por falsas dicotomias (no que se refere ao conteúdo) e de profunda contradição (no que se refere a gente). Quando eu respondi que achava (acho) a Marvel melhor, não estava negando que a DC gosta de um clima
Em suma: assim como no filme Esquadrão Suicida, os "vilões" são representados mais como anti-heróis cunhados numa sociedade desigual que indivíduos malvados. Neste ponto a proposta da revista é confusa: onde estão os super vilões? Aliás, eles são tão pessoas tão comuns que a violência que sofrem parece injusta - diferente de Waller. Ela é sempre representada como comandante fria e nada mais que isso. Apesar dessa edição contar com a presença dela como líder da operação, há marcas absurdas de violência desnecessária contra as personagens negras. "Ah, mas todo mundo sofre igual". Primeiro que ninguém está medindo sofrimento e segundo: estamos apontando a historicidade, a narrativa como um dispositivo de aliena ao e despersonalização de pessoas negras.
No fim das contas, descemos na mesma parada de ônibus e descobrimos que moramos muito próximos. E olha que curioso: dizem que o problema de fazer personagens negros é o público. A ironia é que, preferindo uma ou outra das "2 maiores" [the big two: Marvel ou DC] continuamos no lugar da representação traumática, dolorosa e ultrajante.
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NOTAS
* conhecido como Homem Aranha Ultimate (criado por Brian Michael Bendis)
** Lançado nos EUA como #9 (2015) e aqui no mix com número de capa #1 (2016)
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TEXTOS CONSULTADOS
** Lançado nos EUA como #9 (2015) e aqui no mix com número de capa #1 (2016)
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TEXTOS CONSULTADOS
COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics
of Empowerment. New
York: Routledge, 2000. 2.ed.
JODELET, Denise. Representações
sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, Denise (Org.), As
Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002, p. 17-44.
KILOMBA, Grada. Plantation Memories: episodes of
everyday racism. Budapeste: Unrast, 2010.
MORRISON, Grant. Superdeuses. São Paulo: Seoman, 2012.
PUIG, Rebeca. COMPARAR A MARVEL E A DC NO CINEMA É INEVITÁVEL. Disponível em: <collantsemdecote.com.br/comparar-a-marvel-e-a-dc-no-cinema-e-inevitavel/>. Acesso em 25 ago. 2016.
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