POR QUE NÃO JOGAREI POKÉMON-GO?
Observação: Antes de ler o texto, tenha em mente que:
1) Esse texto NÃO é um manifesto contra o jogo
2) Meu objetivo não é convencer a não jogar
3)Se quiser motivo cult pra parar de jogar, clique aqui
Temos que pegar?
Lá pelos anos dois mil eu era uma criança obcecada pela franquia e licenciados de Pokemon. Eu juntava todo o meu dinheiro pra comprar refrigerante que nem gostava, salgadinhos, álbum, figurinhas e, mesmo, chicletes. Até percebia e me incomodava com o estilo de vida por trás daquele "gosto", mas não era exatamente um problema se comparado ao "objetivo maior": captura. Aquela época os colecionáveis - sim, os Pokémon em si - eram apenas 150 e o meu mundo era razoavelmente simples. Alem disso, as brincadeiras de faz-de-conta incluíam batalhas porque realmente eu me sentia capaz de ser a mestra Pokemon que gostaria que a Misty fosse. Apesar de todo o sexismo presente no desenho eu me identificava bastante com aquele contexto porque fui uma garota que cresceu com dois garotos e isso possibilitou compreender logo os mecanismos de engendramento e desigualdade. Vamos ao que interessa: o que Pokémon-Go tem a ver com racismo e especismo?
Sentença de morte?
Muito conteúdo tem sido gerado a partir de experiências de pessoas negras e periféricas sobre o perigo de jogar Pokémon-Go, se você não é privilegiada. Viver numa democracia estruturada pelo racismo faz com que pessoas negras e brancas usufruam de um mesmo produto com experiências diferentes. O simples fato de você ser homem negro jovem, já te faz pensar nas estatísticas de assassinato e encarceramento na vida cotidiana. Você pode portar um pinho sol, pegar os documentos na carteira ou qualquer outra coisa e ser agredido por quem deveria lhe proteger. Sobre isso, Omari Akil falou no vídeo Pokémon Go Could Be A Death Sentence For A Black Man [Pokémon-Go pode ser uma sentença de morte para um homem negro - trad. livre]. O que Akil aponta sobre o perigo de ser negro e jogar Pokémon tem a ver com a maneira como o racismo institucional confere um tratamento desigual no cotidiano, sobretudo no que tange à polícia, escola, hospitais. O racismo institucional é a base do racismo cotidiano [1], mas ambos irradiam do racismo estrutural, aquele que promove e reitera privilégios e exclusão (KILOMBA, 2010). Essa reflexão sobre os riscos de um homem negro aderir ao aplicativo já foi feita por Omari Akil, portanto, quero apontar uma outra perspectiva desse engajamento: vou falar desde uma perspectiva interseccional que relaciona opressão animal em conjunção com racismo. E o primeiro ponto é racismo NÃO É A MESMA COISA QUE ESPECISMO, ok abolicionista white vegan?
A relação entre racismo e especismo: o que uma ativista Negra tem a dizer sobre a opressão animal?
"A supremacia branca não se restringe ao racismo dos policiais batendo em negros" (KO, 2015) [2]. O conceito de "animal" é uma construção social usada para objetificar corpos e justificar seu abuso, exploração e violência. É bastante comum dizer que a vida humana vale mais que a de um "animal" e, curiosamente, chamam pessoas negras de macacos; e agem institucionalmente como se nossas vidas valessem menos. Aliás, a lógica especista embasou a escravidão, porque conduzia cientistas a tentarem provar que negros não são humanos e que brancos são superiores. Não pararam por aí, a partir da ideia de "animalesco" encarceravam em zoológicos e explicavam que negros são mais resistentes à dor, ao trabalho excessivo... assim como os animais de tração?!.
O senso comum sobre o que é humano, portanto, naturaliza o pressuposto de que a luta dos movimentos negros está restrita aos corpos negros, e tenta nos convencer de que há proximidade com os brancos, como se não houvesse hierarquia ideológica também nisso. Nem vou tratar dos abolicionistas brancos que afirmam que pessoas negras que lutam por justiça social DEVEM SER VEGANAS PARA MANTER A COERÊNCIA, porque não vale a pena. Esses acreditam em princesa Isabel e na benevolência de "libertação dos escravos" - ainda.
Voltando ao que é importante: a dicotomia humano/animal beneficia uma lógica branca que sistematiza o mundo em torno de "vidas que valem" e as demais. Deste modo, é necessário analisar como se articula a violência contra não-humanos e legitimação da violência direcionada aos corpos considerados sub-humanos como negros, mulheres, gordos, pessoas LGBTQIA (lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, transgênero, queer, intersexuais e assexuais).
A relação entre Pokémon-Go e o especismo
Assim como um assaltante não interpelará sempre com "Prepare-se para e encrenca", um branco supremacista não traja veste cerimonial branca na vida comum. Ele pode convidar para entrar em sua casa e tentar instruir sobre como aquele austríaco salvou a Alemanha da humilhação pós primeira guerra [3]. Com isso, quero enfatizar o quanto as estratégias da supremacia branca, bem como do patriarcado capitalista se mascaram e atualizam no nosso cotidiano de formas variadas e atraentes. Sua lógica hierárquica costuma transformar a violência das granjas e dos matadouros em bifes e empanados cujas embalagens são estampadas com cartuns de frangos felizes. Desse modo é fácil abstrair que aquele ser é criado, explorado e torturado para estar disponível como alimento para nós, acaso tivessemos uma maciça campanha visual sobre isso é provável que a maioria das pessoas que "adorariam ser vegetarianas, mas não conseguem" deixaria seu essencialista "instinto carnívoro" para trás.
Agora sabemos que a Mulher Aranha ama bacon Avengers Assemble #23 por Kelly Sue Deconnick, Warren Ellis, Matteo Buffagni, Nolan Woodard, and Clayton Cowles (Christine Hoxmeier via Panels.net) |
A maioria das pessoas não têm acesso recorrente ao animal inteiro, portanto, não pensa nesse sistema de exploração que faz animais não dormirem, não sentarem, não terem acesso aos seus filhotes. É como se os animais não pudessem se importar, porque, "o mundo é dos mais aptos" e daqueles que estão "no topo da cadeia alimentar". Esse discurso é perceptível em Pokémon, quando descobrimos que uma tecnologia permite que o Pokémon fique confortável dentro da pokebola. Deve ser realmente, muito melhor ficar preso numa pokebola que livre na natureza. É como se a razão de viver do pokémon fosse a possibilidade de ser capturado e armazenado.
É dito pelo membro da Elite dos Quatro, Lucian, que elas propiciam ao Pokémon um ambiente amigável, confortável e acolhedor, principalmente aos enfraquecidos. (via Wikipedia)
Isso significa que a franquia Pokémon faz uso dessa lógica especista para justificar que os animais sejam capturados.No desenho, é bem nítido que existem os humanos (mestras e mestres) e os animais. Muitas vezes, durante a jornada do herói Ash, temos contato com mestres que delegam aos pokémons que os sirva, arrumem a casa, cantem, enfim, que proporcionem bem-estar. A brutalidade desse pensamento é naturalizada pelas relações de amizade e pelo senso de justiça do protagonista Ash para com seus pokémons, até que você nota que:
- Ash gastou bastante tempo usando estratégias para
aliciarconvencer Pikachu a entrar na pokebola; - Ash tem uma relação diferenciada Pikachu que favorece a captura de outros pokémons.
O ponto mais objetivo sobre a relação entre Pokémon-Go e a lógica especista é o fato de que ser mestre pokemon significa engajar os bichinos em batalhas que não são deles, que não os favorece em nada apenas pela contemplação e satisfação da vontade humana. Ginásios, eventos enormes giram em torno da contemplação da briga de pokémons, que lutam até seu total esgotamento. Isso lembra o que disse Aph Ko em Por que a liberação animal requer uma mudança epistemológica (trad. livre):
"Branco" não é apenas uma categoria de superioridade racial; Se refere, também, a um modo superior de ser/estar. No topo da hierarquia racial o branco é considerado humano, assim, espécie e raça coincidem com [a ideia de] ser superior. Com isso, resta aos demais a abjeção, oposta à branquitude, e a (necessariamente) nebulosa noção de "animal" [4] - trad. livre. (Via Aph Ko in Aphro-ism)
Uma vez que desnudamos o entrelaçamento conceitual de especismo-racismo e do papel que devemos desempenhar ao nos engajarmos no aplicativo de Pokémon-Go, é difícil dissociar que, ao concordarmos com batalhas entre pokémons, concordamos com a lógica duma diversão proporcionada pela (ilegal) luta de galos; juntamos a isso o fato de que os mestres da "casa grande" escravizaram pessoas que foram sequestradas em sua casa, capturadas e armazenadas em senzalas; sendo portadores dessas pessoas escravizadas, eles se divertiam induzindo os iguais à luta entre si até a morte. Curiosamente, tanto batalhas pokémon, quanto luta de galos e mesmo "mandingos" fazem girar o capital e têm um sujeito cuja agência consiste em induzir o corpo do outro à mutilação. Além disso, a exaltação do mestre revela um grande prazer diante da dor alheia. Mais uma vez ressalto que não se trata de ter empatia por um ser ficcional/virtual ou de mea-culpa, mas na percepção da lógica que sustenta o entretenimento de Pokémon-Go.
1 - batalha pokémon. 2- briga de galo. 3 -"mandingo" luta até a morte em Django Livre (2012) |
Essa percepção de Pokémon-Go é o desdobramento duma sessão recente do jogo de tabuleiro ZombieCide (zumbicídio em trad. livre) em que ficou nítido pra mim como o pessoal é político até num jogo. Explico: Durante as partidas, cada amiga/amigo mostra muito de si mesmo, pela espontaneidade - e é mais intenso se houver cronômetro. Como o jogo é cooperativo, matar integrantes da equipe não é uma opção; sendo assim, o "instinto de autopreservação" daqueles mais cidadãos Shane "agressivos" é direcionado aos zumbis (que são sub-humanos). O especismo se revela posteriormente; naquela partida a qual me refiro, numa das buscas por item "ganhei" um cachorro. É como se o cachorro fosse um objeto, um item qualquer que o humano pode usar como bem entende. A dinâmica do jogo leva à situação de escolher entre a vida de um colega "humano" e a do "animal", o que se torna difícil devido à pressão. "Sacrifica o cachorro!" aos berros foi como minha querida avó dizendo "Coma esse pedaço de carne que fiz pra você", quando meu desejo não é esse. Analisei o tabuleiro e lembrei de que não como carne e de que a abstração facilita legitimação de violência contra mim também. Então decidi que não sacrificaria o cachorro e, do mesmo modo, decidi não jogar Pokémon-Go.
Conclusão
Essa reflexão que, obviamente, não fez parte da minha infância e sequer teria vindo à tona sem Pokémon-Go, é importante pra mim porque o fato de ser negra, mulher e vegetariana solicita uma forma de experienciar a #nerdiandade atenta. Para mim, a questão não é a solidariedade ao pokémon em si, que é ficcional, e sim o modo como o aplicativo é tributário dum sistema de opressão que atinge a todas nós de diferentes maneiras. Através dessas experiências e reflexões ficou evidente que na diegese dos jogos as escolhas também são políticas.Com isso, não quero demonizar o uso do aplicativo e classificá-lo como pura forma de alienação, em vez disso, dizer que não jogarei Pokémon-Go é resultado duma reflexão que inviabilizou a possibilidade de me divertir com esse jogo. Minha proposição é estender nossa revolução epistemológica também para o entretenimento, noutras palavras: preta, nerd & burning hell.
Brock de olhos abertos, como se seu estado normal fosse "não enxergar" ¬¬' (Via bulbapedia) |
NOTAS
[1] Em Plantation Memories, Grada Kilomba introduz o conceito de "Everyday racism" que é o modo como o racismo como estrutura social é aplicada no cotidiano a partir de múltiplas estratégias retóricas. ver: Kilomba, Grada. Plantation Memories: Episodes of everyday racism.
[2] A militante Negra, vegana Aph Ko explica "o que a opressão animal tem a ver com nossosmovimentos antirracistas" [trad. livre] em seu blog Aphro-ism (ingles).
[3] Talvez vocês não saibam, mas eu sou do Espírito Santo e lá temos colônicas alemãs e italianas tradicionais e, portanto, ideologias racistas tomam um rumo diferentes do "racismo à brasileira" (cordial). Sim, a situação aconteceu comigo, durante a adolescência. Entendi o que o Stephen King disse no conto "Verão": os monstros não precisam ter aparência monstruosa.
[4] Trecho Original: “White” is not just the superior race; it is also the superior mode of being. Residing at the top of the racial hierarchy is the white human, where species and race coincide to create the master being. And resting at the bottom as the abject opposite of the human, of whiteness, is the (necessarily) nebulous notion of “the animal”. - Syl Ko in Aph Ko. WHY ANIMAL LIBERATION REQUIRES AN EPISTEMOLOGICAL REVOLUTION, 2016)
Obrigada!
Carlúcio
David Yuri
Diego Matos
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