Sobre equiparar ao que não existe


*Texto originalmente publicado na Alpaca Editora em 21 de março de 2015

1 + 2q + q = 1 + 7
3q = 9
q = 9/3
Q = 3
É uma sensação estranha, essa consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos de outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade. E sempre sentir a duplicidade — americano e Negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que se destroce. (Du Bois)
Quando criança, na quinta série, eu tive muita dificuldade pra aprender a solucionar equações de primeiro grau. Isso simplesmente porque o professor desenhava uma balança e não fazia sentido nenhum aquela metáfora de igualar os números. Não entendia quem pesava mais e como esse pesar mais se tornava pesar igual. Como pessoal é político (Audre Lorde), a partir disso, explico a questão: rememorar o fato me leva a crer que a ideia de igualdade era muito abstrata porque eu já estava alfabetizada na codificação e violência social desde o interior de uma família majoritariamente masculina (em números), até o contraste com a autoridade de quem era mais velhx e a invisibilizante dinâmica escolar do racismo. Minha identidade era a diferença que eu não sabia expressar, pois não via refletida em lugar nenhum. E, se eu não via, não existia. Mas eu “era”.

Tempestade (X-Men).

Diana (Caverna do Dragão)  .
Diana (Caverna do Dragão).
Ainda naquela fase, adorava desenhos animados, seriados de vampiros e videogame. Mesmo sem saber elaborar exatamente a percepção dos padrões, eu sabia que, naquele universo, ou eu morreria primeiro, ou eu não existia mesmo, afinal, eu não era (e nem queria ser) um menino; não tinha (nem tenho) cabelos lisos e longos; não era (nem sou) uma anciã; por fim, eu não me identificava com aquele aspecto da África generalizante e paradisíaca que perpassava as duas únicas heroínas Negras que, àquela época, povoavam meu universo interno: Tempestade (X-Men) e Diana (Caverna do Dragão). Uma vez que não encarnavam e não ofereciam soluções diegéticas (dentro da história) para as minhas questões e as outras eram o que não sou, mais uma vez, eu era a incógnita inexistente.
Eu observava que os meus primos, todos eles negros, conseguiam se identificar com qualquer personagem e que não parecia haver problema nisso. Eles não precisavam ser homens negros, mas eu precisava ser uma mulher E sou Negra. Assim, mais do que desigual, eu pertencia a uma categoria do que não se fala, do que não tem nome. Eu era ___________?


Tudo começa quando você diz não.(Joanna Russ)
Instintivamente, eu sabia que me apoiar em uma das identidades (negritude) não me faria igual a eles, eu continuaria sendo a única a ir ao outro banheiro. Embora negritude masculina deles não fosse questionada, a minha indissociável negritude/feminilidade/mulheridade era questionada o tempo todo na invisibilidade ou no cinismo de ser legal embora garota. Apesar disso, também sabia que, depois da aula na piscina, meu cabelo faria toda a diferença entre as colegas de turma que eram brancas. Isso porque, no contexto privilegiado de educação privada, não raro, eu era a única Negra da sala de aula. O que me fazia ter que deparar com uma normatização — como aquelas “damas de ferro” — onde eu não (e jamais) caberia. Se, por um lado, naquela idade eu “só” queria ser igual às crianças, por outro, a resposta muda dizia “não”.  Era como se eu fosse duas coisas, dois corpos simultaneamente inexistentes. E aí, como acomodar isso?
Dama de Ferro
Além de delinear meu lugar político de fala, esse relato emerge do fundo da experiência individual à tona da experiência coletiva de racismo “à brasileira” — o que tem verbo sem sujeito, portanto, aquele que diz pra mim que estou ali e que não existo ao mesmo tempo. Noutras palavras: há racismo sem racistas, pois “a casa grande e a senzala andam juntas” (citando o ainda tão lido Freyre) e porque “somos todOs cordiais uns com OS outrOs” (citando Sérgio Buarque). Então, se eu não me vejo refletida em nenhum lugar e as relações sociais dizem que o fato de eu não me ver não tem nada a ver, esse fato é (pra eles) quase cabível de patologização, pois a pessoa negra que reivindica é a única que vê um problema que “na verdade, não existe”. Assim, corpos que, socialmente, não existem sofrem violências tão invisivizadas quanto invisibilizantes. E como a gente lida com inimigo invisível?
Uma das formas políticas de dizer não a isso são as demandas por e os estudos sobre a Representação. Estes vêm de uma luta dos movimentos negros e feministas da segunda onda (década de 70-80) que argumentavam sobre a impossibilidade coletiva de identificação positiva, autoestima e autonomia frente à sub-representação/estereotipia/absência de personagens negros e Negras reafirmadas cotidianamente na mídia. Essa é violência simbólica, presente nos livros didáticos e também aplicável aos desenhos citados, às séries de ficção, aos jogos: quando é negro, é negro, isto é: homem. Logo: ________________________.
Em oposição à violência epistemológica (aquela que apaga a contribuição intelectual e cultural) foi sancionada a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de História e cultura afro-brasileira em todos os estabelecimentos de ensino. Certamente, ela não fez surgir o sujeito oculto, mas empurra as instituições a assumir as existências e valorizar heranças que usurparam continuamente.  Ambas as políticas que respondem às violências citadas, proporcionaram o visível aumento de pessoas negras identificadas assim, tanto estética como politicamente, tanto pelos cabelos crespos soltos, quanto enegrescendo a universidade e os demais espaços públicos. E perceba que não usei “denegrir” (tornar negro), pois essa palavra é pejorativa, significa que tornar negro é ruim. A escolha da palavra é uma das sutis políticas de opressão promovidas pelo corpo fantasmagórico do racismo à brasileira. Sutil, enterrado, oculto. Passível de logro. Mas,
Violência física é o que, no geral, alarma. Nesse sentido, cabe explicar que me refiro ao terrorismo do Estado. À violência promovida pelas instituições que podem nos matar e matam, que reafirmam a leveza inquestionável dos nossos corpos no prato da balança que desce quando UM corpo branco, cis, classe-média morre. Embora não haja silêncio de nossa parte, esse enfrentamento é de outra instância. Mais uma vez, não somos ninguém, dessa vez contra a máquina democrática de matriz europeia. O mais frustrante é que, mesmo sendo 60% da população, nosso não precisa de um endosso maior que nós mesmxs.
Até 2003, no Brasil, revindicar a legitimação da luta antirracista contra o inimigo invisível era como registrar um boletim de ocorrência após o furto. Significa reivindicar o que foi furtado ou registrar para compor índices? Fato é que o objeto não será retomado, portanto, o eco é frágil. Assim, inimigo continua incorpóreo. Devido a esse confronto em âmbito social que houve avanço político. Em termos práticos: famílias negras sabem que os homens jovens (entre 15 e 29 anos) são bastante vulneráveis a situações de violência física e simbólica praticada e endossada pelas instituições. A sociedade diz, cinicamente, que é loucura e, ao mesmo tempo, chacina, aniquila, tortura, encarcera esses corpos como descartam seus objetos obsoletos. Não preciso dizer que fazem e não são punidos e não são punidos, logo fazem… mas ATÉ têm amigos negros.
Esse contrassenso de agressão (fato) e afeto (eu diria, tolerância) é paralisante e leva o individuo (e a sua coletividade) a se enxergar com os olhos vigilantes de quem o/os observa, de se perceber tanto individual como coletivamente através de constantes reafirmações de inferiorização desde os filmes e novelas às piadas.  Sob o anonimato e disfarçados de “liberdade de expressão” e “retrato da vida real”, tais discursos transmutam-se num corpo vil e privilegiado que agride, mas sem solidez que possa sofrer represália. A essa relação de alteridade, José Jorge de Carvalho caracteriza como duplo vínculo:

 Assim, porém, que o negro resolve afirmar-se em sua condição de negro (condição prescrita justamente pela injunção primária do discurso branco), o  branco não aceita essa afirmação, lançando mão de uma injunção secundária em conflito com a primeira: não, não há diferença entre um negro e um  branco, você é igual a mim, logo não tem o direito de marcar essa diferença irredutível. Esse duplo vínculo específico aprisiona o negro brasileiro em uma  relação que mina a sua auto-estima porque não lhe permite responder a uma mensagem que simultaneamente nega e afirma a sua condição de  alteridade (ou de identidade) frente ao branco. Completa-se aqui o sentido do duplo vínculo tal como formulado por Bateson: se permanecer vinculado a  essa estrutura desigual de comunicação, sairá perdendo sempre, independente da posição que escolha assumir (2004, p.10).

Se o conjunto de nossos corpos está um degrau abaixo da existência social, a mudança requer políticas públicas e, nesse intuito, foi criada a SECRETARIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL (SEPPIR) em 21 de março 2003. Pela primeira vez neste país, o Estado (chefiado por Lula) reconheceu nossa existência e o descompasso em relação à outra (branca). Pela primeira vez, o chefe de Estado disse não ao circuito de duplo vinculo. Foi como emergir dum longo mergulho. Existir para o outro. O Outro existir para o um. Tanto nós, Negras e negros, como os problemas direcionados PORQUE SOMOS Negras e negros.
Embora eu não seja inocente a ponto de acreditar no poder autodestrutivo da casa grande, ela nos furtou e furta há séculos e tem que assumir que o problema do racismo não é nosso, mas dela, afinal, Negros não são racistas e mulheres não são machistas. Favor não confundir internalização com a própria violência. Favor não culpabilizar as vítimas. É necessário que privilegiadxs pensem sua branquitude e não parem por aí: que abram mão dela. Óbvio que acredito na SEPPIR como um esforço político que empurra em direção à existência e à dignidade. Essa força, em especial, promovida pelo Plano Juventude Viva, reúne ações de prevenção para reduzir a vulnerabilidade de jovens negros a situações de violência física e simbólica além do racismo institucional. Ok. Pelo DIREITO de existir.
Fato que Precisamos sobreviver, e dizer não ao “silencioso” genocídio do nosso corpo social. Mas outra tecnologia social, que favoreça nossa construção identitária, deve ser empreendida. Precisamos reaver o nosso empoderamento, nossas condições materiais, nossa autoafirmação, nossa cultura, cosmologia e autorreconhecimento. O lugar de estrangeiras e estrangeiros, nesse território simbólico e físico, não nos cabe mais. Precisamos lembrar o 21 de março, companheirxs, mas é necessário ressaltar que ainda há um passo longo rumo ao existir. Talvez aí vislumbraremos a Democracia da Abolição (Du Bois) defendida por Angela Davis. A liberdade que vivemos é parcial e usada pra nos intimidar. Até essa mesquinhez é atribuída a uma pessoa branca, quase que beatificada. Sério. É nesse sentido que Davis afirma que, reivindicar a igualdade na maquinaria de opressão não é o grande desafio vivido contemporaneamente. O único modo de libertação estendida às grandes massas é o desmantelamento total da casa grande, pois de seus tijolos normatizadores (racismo, sexismo, classismo, homofobia, gordofobia, preconceito geracional) sempre brotará outro tijolo. O que quero evidenciar é a base comum de todas as discriminações e violências sociais. É necessário visibilizar a negritude como diferença que é negada, sim. Mas essa negritude também tem sua norma: homem, classe-média e cis. Num mundo cada vez mais contraditório, a identidade é um agregado de posições que podem ser inclusive inegociáveis. Em suma: a igualdade racial, para mulheres Negras, deverá ser simultaneamente, igualdade de gênero e de outras categorias. A visibilidade do caráter interseccional é imprescindível para a nossa sobrevivência: homens negros, como homens, também estão sujeitos ao sexismo.
Não venho com essa reflexão, confundir ou fragmentar a luta por igualdade racial, mas dar nome e voz ao grito que me abafa. Como Negra e nerd, situo aquela minha identidade da infância que, sem nomes, já percebia a brutalidade do não-existir. Tempestade e Diana, à medida que trouxeram minha existência ao campo do existir, rasgaram outro ponto na minha subjetividade: os termos mudaram, mas a diferença prevalece. Igualar? Igualar como, o quê e a quem, cara-pálida?
No final das contas, cheguei em casa com uma “boa dúvida” sobre igualar os termos da equação e a minha tia, que é historiadora, ensinou a secura do que a metáfora queria dizer. Aliás, aprendi que a conta era a conta, sem metáfora. Esse é um dos princípios daquele meu feminismo embrionário. E essa narrativa, que pode parecer tão particular, é incrivelmente mais uma. Com um sincero e necessário desejo de alcançar a utópica igualdade, denomino (dou nome a) essa experiência cotidiana que vivo e que eu sei, minhas irmãs, vocês também vivem. Ainda assim, existe o sentido da existência, da sobrevivência que, pra nós, não é uma simples escolha: nosso existir é político e torna possível a existência, o nome de outras irmãs mais. A mudança é mais que sobreviver, sim, é tirar a semente podre que plantaram quando nascemos, é cortar as linhas de duplo vínculo, ter raiva enquanto precisamos dela, mas estarmos preparadas para o dia em que não seremos problemas, mas pessoas. Aí, então, a raiva não mais será necessária.

Referências:
CARVALHO, José Jorge de. Bases para uma aliança negro-branco-indígena contra a discriminação étnica e racial no Brasil.<www.ciadejovensgriots.org.br/livros/racismo%20indios%20e%20negros.pdf>.
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império das prisões e da tortura. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
LORDE, Audre. Textos escolhidos. [s.L]: Difusão Herética: edições lesbofeministas independentes (folheto), 2013
PHILLIPS, Kayla. What do hardcore, ferguson, and the “angry black woman” trope all have in common?<noisey.vice.com/blog/hardcore-ferguson-and-the-angry-black-woman-essay>.
RUSS, Joanna. To write like a woman: Essays in feminism and science fiction, Indiana University Press, 1995.
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