(GUEST) O Silêncio das Marias
O Silêncio das Marias
por Rosângela Lopes da Silva *
Ali, depois da mesa, da geladeira, dos vidros no chão, da pequena porta estreita, sobre as
rachaduras da velha escada de concreto, estava ela. Os dedos, trêmulos, deslizavam entre as frinchas,
construindo desenhos indecifráveis.
Lá, depois do negro dos cabelos se misturar as folhas da mangueira, noite apenas. Distante,
vazia, silenciosa, embrutecida.
A oito passos dali, antes da porta estreita, dos cacos de vidro no chão, da geladeira branca, da
pequena mesa de madeira, estava Luiza a contar os degraus da escada. Perdera-se entre os cinco
algarismos. Imaginou que a ordem e a quantidade das coisas são tão abstratas. Os números não
conseguem tocar o instante. São incapazes de mensurar o momento. Arrumou um cantinho entre o
fogão e o armário. Após tanto tempo encolhida lá, já não sentia as pernas, nem os braços, nem as mãos
entrecruzadas, pouco abaixo dos joelhos. Tudo pesava.
- O abstrato do existir! Pensou um pouco, antes de recomeçar a contagem, sem ordem, sem
regras, sem tempo.
Dali, via as pernas da mesa, a triste figura que se somava à escuridão lá fora, a pouca luz
emanada da candeia. Fosse um outro dia, certamente acharia lindo o círculo oscilante, de luz amarela,
que se desenhou em volta da lamparina. O pavio havia sido tecido na noite anterior. Aprendeu com a
avó a girar os pedacinhos de algodão na mão até ficarem parecidos com um barbante. Achava mágico e
divertido tudo aquilo. Quis, por um momento, aquela magia de volta, mas o olhar encontrou mais uma
vez a triste figura lá fora.
Enquanto tentava, em vão, recuperar o sorriso da noite passada, lembrou-se de uma outra triste
figura. Uma que lutava contra moinhos de vento, na história que a professora havia contado na terça-
feira. Tia Rita, empunhada com uma espada de papelão, bradava eloquente:
- Não fujam, criaturas vis e covardes!
As crianças sorriam, gritavam, encorajavam a triste figura. Luiza, no entanto, continuou quieta
em sua carteira. Viu apenas loucura naquela batalha. Não encontrou motivos para sorrir. Achou seus
colegas tão ingênuos.
- Não são gigantes, são moinhos de vento! - Balbuciou, ao ver pela janela que algumas crianças
no pátio sorriam da cena que presenciavam.
Não sabe como, mas de onde estava agora, ali no canto da cozinha, encontrou em um milésimo
de segundo, desses que não se pode contar, sentido naquela insanidade. Quis voltar lá e pedir para a tia
Rita não desistir da luta. Quis também ter uma espada de papelão para não deixá-la sozinha. Era
preciso mostrar aos zombadores que havia, de fato, gigantes enfurecidos vestindo aqueles moinhos.
Desses gigantes que precisamos enfrentar todos os dias. Mesmo que ninguém lá fora possa enxergar.
Luiza constatou assustada que aquela triste figura, petrificada no quarto degrau, também lutava
contra gigantes.
- Está só e sem espada. Como vencerá?
A menina sabia da necessidade de levar a espada até lá. Levaria. Diria que também ver os
gigantes. Mas tudo estava tão adormecido. Dormiam profundamente as pernas, os braços, as mãos.
Estava ali havia tanto tempo que já nem se lembrava mais de...
- Que besteira pensar em moinhos de vento! - Disse a si mesma, silenciosamente, em tom de
repreensão. Desviou seu olhar para um canto da cozinha, onde encontrou duas crianças dormindo.
Estavam abraçadas. Dormiam em uma cama velha de casal. Havia espaço do lado direito da cama.
Luiza sabia que deveria estar deitada ali, mas não ouvira os conselhos dados mais cedo. Das duas
crianças, o mais velho parecia forçar os olhos para mentir o sono. A menorzinha dormia em sua
inocência. Luiza também quis mentir, também quis a inocência, mas gritos aflitos pareciam chamar
pelo seu socorro.
Naquele dia, horas mais cedo, quando a luz ainda escondia a noite escura que viria, a dona
Maria Roxa, uma senhora cega que morava próximo a sua casa, contou-lhe que todas as Marias vieram
ao mundo para carregar os fardos do existir. Não quis acreditar no que ouviu. Lembrou que muitos
diziam que dona Maria Roxa havia ficado louca. Luiza, no entanto, duvidava disso. Acreditava que os
olhos cegos e o tempo abrigado nos cabelos brancos a faziam saber de coisas que nenhum outro adulto
da rua seria capaz de saber. Nem mesmo a avó. Por isso, a menina passava horas conversando com ela.
Ouvia, curiosa, a história de um tempo em que uma moça chamada Liberdade foi levada de sua terra
mãe. Aprisionada por aqueles que se diziam seus senhores.
Certa de que dona Maria Roxa era a maior sábia que já havia conhecido, a menina ficou
angustiada com a ideia de que as Marias vieram ao mundo para sofrer. Pensou alto a sua aflição.
- Não pode ser verdade! Minha mãe não veio ao mundo para sofrer!
Era preciso existir exceções. A vizinha sorriu. Daqui de longe, não se sabe ao certo se era um
sorriso alegre ou de compaixão. Luiza nem teve tempo de tentar interpretá-lo. A velha senhora, olhando
no fundo dos seus olhos, como se pudesse enxergar toda a tristeza escondida lá dentro, falou-lhe
baixinho:
- Todas nós somos Marias, minha menina. Todas nós. Algumas, no entanto, carregam fardos
mais pesados que outras.
Luiza temia que aquela triste figura, sentada no quarto degrau, estivesse há muito carregando
um peso que já não podia suportar. Estaria muito machucada. Estava. Luiza sentia. As marcas no corpo
gritavam isso. A menina sentiu que também queria gritar. Era preciso erguer a cabeça, agora acolhida
com calma pelos joelhos, e empunhar a sua espada. Queria, mas não foi capaz. Tudo estava tão pesado.
Lembrou-se que, um pouco antes da noite chegar, sua mãe havia lhe dito que os filhos nunca
devem sentir raiva dos pais. E que era papel da filha mais velha cuidar dos irmãos mais novos, protegê-
los de tudo. Luiza não queria escutar aquilo. Queria fechar os ouvidos o suficiente para que não ouvisse
nem mesmo o som acelerado de sua respiração. Mas sua mãe não parava. Dizia coisas sem nexos.
Frases soltas.
- Ele não gosta de alho!
- Como assim não gosta de alho? Eu gosto!
- Teus irmãos vão precisar de você...
- Construirei um castelo de pedras. Meu quarto será na torre mais...
- Menina, você é muito sem atenção! O feijão está queimando.
- Eu quero muito ser bailarina. Dançar toda noite num castelo cheio de doces. Sozinha. Existem
bailarinas ne...
- Você precisa prometer, por favor! Eu posso não estar aqui. Às vezes tenho medo de me matar.
- Se matar? Alguém pode matar a si mesmo?
A menina pensa agora que talvez tenha se segurado a pensamentos vazios enquanto a mãe
falava. No vazio fazia de conta que tudo estava bem. As frases foram se confundindo no eco que
faziam. Os dedos da menina se entrecruzavam bruscamente. Sem mais espaço entre um e o outro,
restou a dor. Um formigamento. Encolheu-se. Luiza envergou-se para um dentro que não sabia onde
acabava. O peso das palavras. A dor de ouvi-las repetidas vezes dentro de sua cabeça. Lá fora, aquele
soluço sufocado. Lá em cima, sobre os outros cinco degraus, um ronco ameaçador. Sim, havia uma
outra escada. Talvez Luiza quisesse deixar claro que estaria melhor se ela não existisse. Não era ódio,
prometera a mãe que jamais sentiria isso. Então inventou ser uma coisa sem nome que fazia sofrer.
Palavras ávidas por existir
param subitamente ao observar
o ser atônito a implorar inerte.
Constroem na solidão do momento um lar.
Tecem nos vazios um teto sem alicerces.
Luiza não acreditava fazer poesias bem. Achou melhor parar. A tia Rita insistia em dizer-lhe
que era uma grande poeta. Mas a menina duvidava. Não encontrava em seus versos toscos a beleza e a
sensibilidade das poesias que lia, encostada à parede da biblioteca da escola, escondida pelas estantes
cheias de livros. Pensava ser as imagens construídas por aqueles poetas inalcançáveis. Ah, as palavras...
Elas são fugidias. Têm vontade própria. Quando não querem sair, ficam presas, machucam, doem. Se
querem sair, e não deixamos, saem desajustadas, cortantes.
- SE CONTINUAR A BATER NELA, O SENHOR VAI VER!
Quis segurá-las. Promete a si mesmo que quis, que tentou. Mas elas estavam cortando lá dentro
há muito tempo. Ouviu quando a mãe disse que ela e os irmãos precisavam ir para a cama mais cedo e
que, independente do que acontecesse, era preciso que continuassem dormindo, pois ele certamente
chegaria bêbado novamente naquela noite. Ouviu tanto quanto ouviu aqueles gritos sufocados no
quarto lá em cima. Tentou mentir que dormia, mas não foi capaz.
- As palavras cortam.
Não lembra quando subiu os cinco degraus.
- São cinco? Não! São seis.
Lembra-se apenas das palavras, como plumas agarradas à brisa despercebida, se tornarem ainda
mais ameaçadoras e cortantes quando capturadas por ele. No canto esquerdo do quarto, a mãe chorava.
Os olhos vermelhos, zangados, feriam-na.
Luiza quis gritar, mas lembrou dos irmãos. Não podia acordá-los. E foi assim, que as palavras,
assustadas, resolveram construir morada no silêncio. Ficaram lá, quietas, enquanto o corpo da menina
era pintado por marcas avermelhadas. Dona Maria Roxa estava errada quando disse, certa vez, que
pretos não ficam vermelhos. Ah, se ela pudesse enxergar aquela momento! Veria que podemos sim.
Procurou a mãe em algum lugar do quarto. Queria dizer que não precisava se preocupar. Estava
bem. Procurou em vão. Não estava mais lá. Luiza sabia que a mãe saiu para que ele parasse. A menina
também sabia que depois a mãe lhe cobraria por não tê-la ouvido, como fez os outros irmãos. A culpa
foi chegando devagarinho a procura de refúgio. Até que fez moradia lá onde as palavras construíram
um muro imenso e se esconderam.
- Onde?
- Aqui dentro.
O gigante era forte e impetuoso. Não podia contra ele. Precisava de sua espada. Correu. Se
escondeu entre o fogão e o armário. Colocou a cabeça entre os joelhos o quanto foi possível. Queria
fazer morada junto às palavras. Não as culparia. Faria apenas companhia. Lá em cima o gigante
adormecera. Lá embaixo um ser a se confundir com o vazio ensurdecedor da escuridão.
Enquanto a memória insistia em manter vivo o que aconteceu, Luiza insistia em apagar tudo.
Talvez, se daqui não pudéssemos pular o muro construído pelas palavras, essa história jamais teria sido
contada. A menina prometeu ao silêncio que todas aquelas lembranças seriam dele. Certa de que ele
cuidaria de tudo, tomou coragem. Levantou-se. Sentou-se ao lado da triste figura. Tentou esmiuçar
algumas palavras que havia guardado para aquele momento, mas até essas pediram para morar também
lá no silêncio. Algumas delas, no entanto, saíram correndo desesperadas e soaram súbitas:
"Mãe, nós somos todas Marias, sabia?".
E, antes que outras resolvessem acompanhar as primeiras fugitivas, ouviu-se emudecidamente:
- Shhhhh!! Cala a boca, menina! Você quer que Ele acorde!?
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*Rosângela Lopes da Silva é professora do Ensino Médio Básico do estado do Tocantins. Também é mestranda em Literatura na Universidade de Brasília (UnB) com pesquisa em andamento vinculada à linha Representação na Literatura Contemporânea; mais precisamente ao eixo Representação e autorrepresentação de grupos marginalizados na literatura brasileira contemporânea. Possui especialização em Poética da Linguagem: Do signo ao discurso, do verso à prosa (UFT 2012) e graduação em Letras pela Fundação Universidade Federal do Tocantins (2010). Atualmente é integrante do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UnB.
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