Por que precisamos de mais mulheres EDITANDO quadrinhos?
Sabemos o quão importante tem sido a presença de ilustradoras como Afua Richardson (Genius), Pia Guerra (Y: o último Homem), Annie Wu (Canário Negro), Beckye Cloonan (Pixu, Gotham Academy) Fiona Staples (Saga), Natasha Bustos (Moongirl & Devil Dinossaur) e de roteiristas como Amanda Conner (Arlequina, 2013-...), Amy Reeder (Moongirl & Devil Dinossaur), Ming Doyle (Constatine) no mercado mainstream das Marvel e DC/Vertigo. Apesar dessa mudança, ao ler Arlequina (tanto a dos novos 52 quanto a posterior) nos deparamos com requadros que priorizam aspectos "femininos" da personagem, a definição perfeita duma mirada masculina heterossexual (the male gaze). E aí, como resolve o problema?
Primeiro, se você não sabe o que faz o/a editor/a de quadrinhos, leia:
O que faz um editor de quadrinhos? (artigo)
Levi Trindade, editor dos quadrinhos DC no Brasil (entrevista)
Nosso trabalho como Editores de Quadrinhos (Vídeo)
5 dicas para publicar quadrinhos (Vídeo)
Se vocês já fizeram roteiros ou ilustrações de quadrinhos editados por outra pessoa, já devem ter pensado que - em muitos aspectos - a história não está mais como você idealizou*. E mais: talvez o título encomendado sequer seja de seu interesse primário. Seu nome pode vir antes do nome do editor, mas ele é o Diretor, aquele que define "o que vende", os "valores da empresa" e, portanto, aquele que elenca preferências.
1) Isso também é fato no mercado alternativo,
2) Estou usando as palavras no masculino porque 99℅ dos produtores e 93% dos leitores são homens e sim;
3) quero chamar a atenção para isso.
Pois bem, nada de errado com o ofício ou com editores em si, mas devemos reconhecer que, muitas vezes, é ele quem solicita mais sangue, mais close, mais peito, mais bunda, menos roupa. E isso se torna uma questão quando encaramos a problemática do ponto-de-vista nos quadrinhos. Se torna uma questão quando não somos a fatia considerada "cidadania padrão" e, ainda assim, desejamos nos entreter jogando videogame, lendo quadrinhos e assistindo a séries.
Grandes editoras começaram a rever o modo de criar ou reconceituar heroínas lentamente até culminar no "Ano das mulheres" (2015). Houve muita celebração de protagonistas fortes - como Furiosa e Jéssica Jones e, mesmo assim, a ideia equivocada sobre a Arlequina permaneceu no desagradável (?) filme Esquadrão Suicida.
Neste caso, as mulheres são tão bombardeadas por imagens negativas que aderem com naturalidade à caricatura "louca, sensual, jovem, magra, loira, vulnerável", etc., esquecendo que ela superou boa parte desses estereótipos em seu próprio quadrinho. Ela, no final das contas, é mais lembrada como a materialização de "nerdes punheteiros" (PUIG, Rebeca), que uma mulher "real" e/ou forte.
É considerado "natural"representar os heróis em poses "ativas" e "viris" que concentrem as informações para qualquer parte do corpo senão sua genitália. Eles aparecem:
1. De frente
2. Escondendo o pênis
3. Com o volume do pênis ocultado por sombras
Por outro lado, heroínas são representadas em poses desconfortáveis e que reafirmam os atributos tidos como "femininos". Exemplos clássicos:
1. "Dominadora, porém feminina" ¬¬'
2. ... ¬¬
3. ...¬¬''
A inserção de mulheres lenta e gradual das quadrinistas evidenciou que não basta que a história seja produzida por roteirista ou desenhista para que a male gaze e tropos como "mulheres no refrigerador" se repitam. Para quem acompanhou a Vertigo (subdivisão da DC comics) entre 1980 e 2013, é evidente que o olhar de Karen Berger direcionou obras de Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison para além do mercadológico em si é contribuiu para a construção dum discurso político e estético mais critico.
A partir da leitura da carta de Karen Berger direcionada a Neil Gaiman (colagem abaixo do extra de Orquídea Negra) notamos que as produções eram analisadas sob uma perspectiva crítica que influencia incrivelmente o resultado final. Com isso, não quero reduzir o trabalho desses gênios, apenas enfatizar a importância e o poder que a editoração propõe e demanda. Uma boa edição significa que o/a editor/a soube direcionar o talento, decantar as idéias e oferecer soluções, mostrar o que é bacana, o que funciona...enfim, acompanhar o processo de forma crítica. Nem preciso dizer que esse/essa profissional precisa dum background cultural, social diversos e que seja uma pessoa flexível.
Veja que, em meio a elogios e críticas, há sugestões ricas que foram incorporadas ao resultado final da obra.
Em 2014, quando finalmente a série Genius (2008!) foi publicada por completo, a desenhista Afua Richardson perguntou no Facebook se acaso as pessoas achavam sua capa da edição #1 inadequada*** em algum sentido. Veja com seus próprios olhos:
Sem dúvidas, assim como negros internalizam racismo e o repetem, uma mulher replicou o que tem visto nas histórias em quadrinhos dos últimos 100 anos. Outro ponto a ser levado em consideração é que essa capa está de acordo com outros títulos da editora protagonizado por mulheres como Tomb Raider. Assim, podemos concluir que:
Na prática, esses pontos não são isolados, principalmente no mercado estadunidense. A saída de Karen Berger da Vertigo revela que o direcionamento da editora DC é, cada vez mais lançar produtos médios que atinjam uma porção do mercado qualquer, desde que seja grande. O investimento ideológico em manter mensagens conservadoras no momento que vivemos é alto demais. Para manter Superman como carro-chefe não se cansam de cancelar títulos mais progressistas. A demanda é por representação positiva de minorias políticas, portanto, é isso que o público deseja. Insistir no retrocesso agora parece ilógico até para o capitalismo selvagem, o ranking de vendas mostra isso.
É comum que autoras independentes optem por editarem suas obras ou deixar a cargo do coletivo. Exemplo disso é a adorável - e Magra de ruim - Sirlanney. No caso da autora cearense, isso possibilita que toda a sua expressividade esteja na obra, sem cortes, sem podas. No caso da zine XXX, a multiplicidade de olhares/experiências possibilitou que muitas garotas tivessem a liberdade de expressar seus sentimentos, pensamentos e a própria experiência de autoria.
Em suma, acredito sim que o underground é a chave da liberdade criativa, mas que devemos buscar por visibilidade, por espaço de expressar outras experiências e pontos de vista. Ser autora e publicar a própria obra é uma experiência incrível, isso é inegável. O ponto-chave é que precisamos - e muito - editar as representações daqueles 99%.
**Para citar os mais famosos
***Nunca mais encontrei o Post. Gerou polêmica, entao deve ter sido tirado do ar.
quadro à direita: sketch de Tanxxx |
Primeiro, se você não sabe o que faz o/a editor/a de quadrinhos, leia:
O que faz um editor de quadrinhos? (artigo)
Levi Trindade, editor dos quadrinhos DC no Brasil (entrevista)
Nosso trabalho como Editores de Quadrinhos (Vídeo)
5 dicas para publicar quadrinhos (Vídeo)
Se vocês já fizeram roteiros ou ilustrações de quadrinhos editados por outra pessoa, já devem ter pensado que - em muitos aspectos - a história não está mais como você idealizou*. E mais: talvez o título encomendado sequer seja de seu interesse primário. Seu nome pode vir antes do nome do editor, mas ele é o Diretor, aquele que define "o que vende", os "valores da empresa" e, portanto, aquele que elenca preferências.
1) Isso também é fato no mercado alternativo,
2) Estou usando as palavras no masculino porque 99℅ dos produtores e 93% dos leitores são homens e sim;
3) quero chamar a atenção para isso.
Pois bem, nada de errado com o ofício ou com editores em si, mas devemos reconhecer que, muitas vezes, é ele quem solicita mais sangue, mais close, mais peito, mais bunda, menos roupa. E isso se torna uma questão quando encaramos a problemática do ponto-de-vista nos quadrinhos. Se torna uma questão quando não somos a fatia considerada "cidadania padrão" e, ainda assim, desejamos nos entreter jogando videogame, lendo quadrinhos e assistindo a séries.
Sim, o underground pós-internet, cada vez mais, nos proporciona encontrar nichos que nos cabem e sim, podemos produzir o que desejamos ver/consumir. Acredito muito na potência e na vontade de mudança que o underground proporciona. O ponto que estamos discutindo é que negros, mulheres e LGBTQ+ produzem fanzine, quadrinhos e romances e jornais há muito tempo. O problema é que não há circulação e que não é a primeira ideia que a "maioria" terá de googlar. Então, o mainstream (o mercado mais visível/popular) se torna uma arena política assim como as Universidades. Ora, podemos produzir conhecimento fora da universidade, posso eu mesma validar esse conhecimento, mas no sentido mais amplo de sociedade, essa iniciativa isolada não ultrapassa o gueto. Oportunidade e direitos devem ser ampliados e mesmo que meus ideais políticos sejam anticapitalistas parte do meu investimento pessoal está inserido neste "sistema inescapável". Talvez implodir de dentro, talvez.
Grandes editoras começaram a rever o modo de criar ou reconceituar heroínas lentamente até culminar no "Ano das mulheres" (2015). Houve muita celebração de protagonistas fortes - como Furiosa e Jéssica Jones e, mesmo assim, a ideia equivocada sobre a Arlequina permaneceu no desagradável (?) filme Esquadrão Suicida.
Neste caso, as mulheres são tão bombardeadas por imagens negativas que aderem com naturalidade à caricatura "louca, sensual, jovem, magra, loira, vulnerável", etc., esquecendo que ela superou boa parte desses estereótipos em seu próprio quadrinho. Ela, no final das contas, é mais lembrada como a materialização de "nerdes punheteiros" (PUIG, Rebeca), que uma mulher "real" e/ou forte.
É considerado "natural"representar os heróis em poses "ativas" e "viris" que concentrem as informações para qualquer parte do corpo senão sua genitália. Eles aparecem:
1. De frente
2. Escondendo o pênis
3. Com o volume do pênis ocultado por sombras
Por outro lado, heroínas são representadas em poses desconfortáveis e que reafirmam os atributos tidos como "femininos". Exemplos clássicos:
1. "Dominadora, porém feminina" ¬¬'
2. ... ¬¬
3. ...¬¬''
A inserção de mulheres lenta e gradual das quadrinistas evidenciou que não basta que a história seja produzida por roteirista ou desenhista para que a male gaze e tropos como "mulheres no refrigerador" se repitam. Para quem acompanhou a Vertigo (subdivisão da DC comics) entre 1980 e 2013, é evidente que o olhar de Karen Berger direcionou obras de Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison para além do mercadológico em si é contribuiu para a construção dum discurso político e estético mais critico.
A partir da leitura da carta de Karen Berger direcionada a Neil Gaiman (colagem abaixo do extra de Orquídea Negra) notamos que as produções eram analisadas sob uma perspectiva crítica que influencia incrivelmente o resultado final. Com isso, não quero reduzir o trabalho desses gênios, apenas enfatizar a importância e o poder que a editoração propõe e demanda. Uma boa edição significa que o/a editor/a soube direcionar o talento, decantar as idéias e oferecer soluções, mostrar o que é bacana, o que funciona...enfim, acompanhar o processo de forma crítica. Nem preciso dizer que esse/essa profissional precisa dum background cultural, social diversos e que seja uma pessoa flexível.
Veja que, em meio a elogios e críticas, há sugestões ricas que foram incorporadas ao resultado final da obra.
Em 2014, quando finalmente a série Genius (2008!) foi publicada por completo, a desenhista Afua Richardson perguntou no Facebook se acaso as pessoas achavam sua capa da edição #1 inadequada*** em algum sentido. Veja com seus próprios olhos:
Sem dúvidas, assim como negros internalizam racismo e o repetem, uma mulher replicou o que tem visto nas histórias em quadrinhos dos últimos 100 anos. Outro ponto a ser levado em consideração é que essa capa está de acordo com outros títulos da editora protagonizado por mulheres como Tomb Raider. Assim, podemos concluir que:
- O perfil da editora é conservador;
- O público-alvo são homens heterossexuais jovens e abastados (gênero construído segundo essas convenções);
- O editor ou a editora não tem senso critico aprimorado, já que desconhece avanços básicos do mercado em pleno século XXI.
Na prática, esses pontos não são isolados, principalmente no mercado estadunidense. A saída de Karen Berger da Vertigo revela que o direcionamento da editora DC é, cada vez mais lançar produtos médios que atinjam uma porção do mercado qualquer, desde que seja grande. O investimento ideológico em manter mensagens conservadoras no momento que vivemos é alto demais. Para manter Superman como carro-chefe não se cansam de cancelar títulos mais progressistas. A demanda é por representação positiva de minorias políticas, portanto, é isso que o público deseja. Insistir no retrocesso agora parece ilógico até para o capitalismo selvagem, o ranking de vendas mostra isso.
É comum que autoras independentes optem por editarem suas obras ou deixar a cargo do coletivo. Exemplo disso é a adorável - e Magra de ruim - Sirlanney. No caso da autora cearense, isso possibilita que toda a sua expressividade esteja na obra, sem cortes, sem podas. No caso da zine XXX, a multiplicidade de olhares/experiências possibilitou que muitas garotas tivessem a liberdade de expressar seus sentimentos, pensamentos e a própria experiência de autoria.
Em suma, acredito sim que o underground é a chave da liberdade criativa, mas que devemos buscar por visibilidade, por espaço de expressar outras experiências e pontos de vista. Ser autora e publicar a própria obra é uma experiência incrível, isso é inegável. O ponto-chave é que precisamos - e muito - editar as representações daqueles 99%.
NOTAS
* Não estou defendendo a ideia de uma arte pura que expresse o artista, afinal não estamos no século XIX. O que eu aponto é que a confecção coletiva de quadrinhos, cinema e música pop passam por critérios hegemônicos para se tornarem palataveis ao cidadão comum e, portanto, vendaveis.Obvio que um álbum bem produzido não é o que artistas imaginaram e que isso pode ser ótimo, como um Black Álbum do Metallica que todes gostam.**Para citar os mais famosos
***Nunca mais encontrei o Post. Gerou polêmica, entao deve ter sido tirado do ar.
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