Por que Visibilidade Lésbica Negra é importante?*




A trilha sonora do filme estadunidense Pariah (Dee Rees, 2011) é fantástica, mas, de longe a minha canção preferida é Fight with fire da Tamar-Kali. Esse filme é  notável porque narra a trajetória duma jovem negra e sua "saída do armário"numa perspectiva sensível que quase não existe na mídia de massa. Primeiro não vemos no circuito mainstream a discussão da interseccionalidade, em segundo, no alternativo os que alternam são Gay e Lésbica-branca, deixando pra fora as demais pessoas, igualzinho ao sistema bruto. Não bastando ser Lésbicas e Gays (brancxs), temos um repertório sem fim de pessoas magras, consideradas hábeis e de classe média que se apaixonam por semelhantes em todos os sentidos possíveis.

Recentemente, o massacre em Orlando repercutiu na grande mídia e foi motivo de (mais uma) polarização nas redes sociais. À época assistimos a uma onda de solidariedade à questão LGBT+ e, mais uma vez, muito mais gay que Lésbica, Bissexual, Transsexual, Transgênero e Queer. Como se fosse uma questão "incolor" e culturalmente neutra, o movimento #preyforOrlando trouxe um (momentâneo) espaço de visibilidade da homofobia em que tanto o sujeito quanto as vítimas eram homens. Ora, o primeiro ponto a destacar nisso é : as vitimas eram predominantemente latinas e negras, mas é como se isso não importasse. Nesse "não citar" reforçam que (a) "somos todos iguais, logo o racismo não existe, tampouco se soma à homofobia", (b) "homofobia não tem ligação com racismo" e (c) "homem latino só pode/só deve ser cabrón" - o Lito de Sense8 que o diga (1).

O protagonismo masculino e, na mesma proporção, a invisibilização étnico-racial são pontos que encontramos em muitos dos ensaios de Audre Lorde fato que mostra a urgência em discutir a representação da orientação sexual levando em conta outras marcas sociais como raça, classe, performance. É exatamente o que encontramos em Pariah. Tanto Tamar-Kali quanto Dee Rees falam de uma experiência que conhecem bem, desde a tomada de consciência, a compreensão de si mesma no amplo espectro de racial e de gênero, por isso o modo de representar prioriza aspectos do olhar que não estão acessíveis à muita gente. Com isso, não quero enfatizar a experiência como única forma de conhecimento e autoridade, apenas mostrar como o olhar é importante.






Certa vez, numa disciplina lemos o conto Isaltina Campo belo, da escritora negra mineira Conceição Evaristo. A personagem é uma mulher negra lésbica que narra sua vida, desde a infância como uma criança que não compreende o porquê de ser enxergada como menina, já que se considerava um menino. Segundo a discente, esse conto trata da questão queer, pois a teoria de Judith Butler poderia ser facilmente aplicada: gênero não é apenas genitália, mas a conjunção dele com performance e orientação sexual. Tudo bem, isso é uma forma de leitura que se adequa aos métodos acadêmicos, mas falta uma parte: o racismo também modula o gênero .

A ideia de feminilidade ocidental está associada à branquidade e à classe. Dentro do padrão dominante do que é ser mulher/feminina (2) está a fraqueza, a incapacidade para o trabalho e gerência. Somado a isso, para a Inglaterra vitoriana há os saques feitos em nome das "amadas esposas", para o seu conforto e estética. Uma vez que a história das Negras é o contraponto a essa narrativa, pode-se inferir que mulheres Negras, não são mulheres (assim como as lésbicas), porque trabalham, sustentam lares e lutam pela própria agência. Essa necessidade de sobreviver a todo custo é lida sob o viés da branquidade como uma "força exagerada" e "rigidez de sentimentos", sabe a "mulher negra raivosa?". Nesse sentido, nem sempre "querer ser um homem" significa desejar a "masculinidade", mas o modo de elaborar a necessidade de poder e o desejo/identificação por/com mulheres. No desenrolar da narrativa, percebemos que a fissura de gênero-sexualidade de Isaltina é um problema de engendramento racializado, uma resposta à ideia de que "Todas as mulheres são brancas, todos os negros são homens" . Provavelmente, no imaginário de Isaltina Campo Belo, não havia palavras para descrever o que era, o que sentia. Ela nunca havia se visto em lugar algum (3).


Lesbiandade/branquidade na cultura pop



Apesar de existir mulheres Negras Lésbicas e bissexuais reais com visibilidade (4) a primeira cena que assisti de representação da lesbiandade/bissexulidade/queerness na TV foi o beijo entre Willow e Tara em Buffy: a caça vampiros. Willow era uma personagem super nerd, querida pelo público, inteligente, emocionalmente complexa... judia. Na sociedade estadunidense, Willow é um avanço na representatividade por ser judia (5) e bissexual, mas para a nossa cultura colorista, ela é uma jovem branca como, alias, todas as The L Word (6), Kate Kane/Maggie Sawyer (Batwoman), Cosima (Orphan Black), Piper/Alex (Orange is the new black), Anne Bonny (Black Sails), Barbara Gordon (Gotham), Adèle (Azul é a cor mais quente), Alison Bechdel (Fun Home), Arlequina/Hera Venenosa (Arlequina). 


Depois de notar todas essas referências podemos contrastar com personagens Negras. Quantas personagens Negras não-hetoressexual você conhece? Quantas delas têm a pele mais pigmentada? Quantas delas são lésbicas?






Pois é.
Muitas heroínas lésbicas/bissexuais/queer não são brancas, então por que é difícil saber quem elas são? Por que é difícil lembrar delas? Ora, se não são citadas, não são visíveis. Por conseguinte, é como se não existissem.


E as Negras, onde estão as Negras?



Essa discussão sobre a VISIBILIDADE LÉSBICA tem tudo a ver com a representação de mulheres Negras na cultura pop porque as narrativas atuam sobre o imaginário e sobre o nosso quadro de referências objetivas e subjetivas. A insistência em representar mulheres Negras com padrões comportamentais levam a associar sequencia de ideias que moldam opiniões e juízo de valor que apagam a historicidade da percepção plasmada na personagem.  Uma vez que a mídia é fonte de boa parte do que que podemos imaginar (e, portanto, SER) alguns pontos me parecem importantes:

  1.  29 de agosto - o dia da visibilidade lésbica passou sem filtros no facebook, sem memes desconstrutores ou discussões. É simplesmente como se a lesbiandade não existisse e menos ainda a data. Podemos ler  esse apagamento como violência simbólica.
  2. O "Não falar sobre" perpetua o estranhamento, a fobia e sustentam a sua manifestação concreta: a violência física. 
  3. Lembremos também que visibilizar/tornar visível tem proximidade com a palavra mostrar (latim Mostrare) que pode denotar a exposição ofensiva do que é considerado (Por quem? Como? Onde?) bizarro, absurdo, inimaginável, noutras palavras, monstruoso.

Representação é mostrar, tornar visível, mas o olhar de quem nomeia define se trata-se de VISIBILIZAR ou de ESTRANHAR. Lembremos que representação diz muito sobre QUEM REPRESENTA. No que convencionamos chamar de "mundo real", as mulheres Negras são lidas como mulheres emasculadas/castradoras. Fruto de um imaginário colonial, essa representação ecoa nas personagens fortes da ficção. Tanto Michonne (The Walking Dead) quanto Zoe Washburne (Firefly) são mulheres fortes e que compõem equipes lideradas por homens brancos. Os principais traços que notamos em ambas são a lealdade rigide, disposição para combate e pouca expressão de sentimentos. Curiosamente são todos atributos associados à performance masculina e, por isso, plasmadas no senso comum como índices de lesbiandade. Ora, para enfatizar a heterossexualidade, elas são representadas em de cenas (descritas ou presumidas) de sexo com homens.


Em cima: 355 (Y: the Last Man), Suzanne (Orange is the New Black) / Poussay (RIP - Orange is the new black), Alike (Pariah) e Max (Black Sails)

Já a agente 355 de Y: o último homem  é representada de forma mais complexa. No início da saga, a agente apresenta traços lidos socialmente como "masculinos" e, à medida que se apaixona pelo protagonista (branco), vai se tornando "mais feminina" (o amor feminiliza?!). Se no início da trama ela era alvo de suspeitas sobre estar escondendo sua sexualidade no "armário", com o passar do tempo, essa naturalização é quebrada. Sabemos que roupas, corte de cabelo e acessórios não têm gênero, mas é um dado da realidade que a cultura codifica os """desvios""" à luz da norma heterossexual. O affair entre 355 e a Dra. Mann visibiliza as várias formas de afeto, desejo e performance que pessoas não-brancas também vivem. Apesar de a bissexualidade ser representada de forma leviana, serve ao menos para quebrar a ideia de "sexualidade verdadeira" e mostrar a fluidez da categoria gênero. Em Y: o ultimo homem a visibilidade é carregada de estranhamento, mas desnaturaliza muitos paradigmas sobre o "sistema-sexo-gênero". Esse estranhamento também foi pontuado em nossa comunidade quando Annelise Keating se mostrou convictamente bissexual em How to get away with murder. A produtora Shonda Rhimes, ao ser abordada sobre a questão, respondeu que odeia a palavra DIVERSIDADE - e concordo, poderia ser trocada por REALIDADE. No mundo real, as pessoas não são apenas brancas, magras, heterossexuais, classe média, escolarizadas, urbanas. "Elas não são!" (Kamila Jacoub). Outro modo leviano de representar a bissexualidade foi apresentado na série vampiresca True Blood. A adjuvante Tara Thornton é descrita como uma jovem negra "problemática, com dificuldade de aceitar autoridade" e sexualmente disponível. Uma série de relacionamentos problemáticos ocorrem até que, desiludida, ela aceita namorar com Naomi. A mensagem que essa relação transmite é muito mais de solução afetiva e, não, mulheres não são mero suporte. É preciso trazer a dimensão do desejo, do afeto e outras nuances que não se restrinjam ao "paliativo emocional". Naomi é latina, o que traz um ponto positivo para a representação (não existem apenas mulheres brancas lésbicas e, numa relação, outras raças/etnias são possíveis). O problema principal é que Naomi SPOILER....


Morre.



Latoya é a protagonista da webserie Black Feminist Blogger

Aliás, "Lésbica" é uma palavra que remete à Antiguidade e à Ilha de Lesbos, onde nasceu e morreu a poeta Sapho. Quando muito, lembra a suposta ambiguidade da convicta amazona da DC: Mulher Maravilha. O que todas têm em comum além da força moral de desafiar o regime patriarcal/heterossexual é que ambas são brancas. Citei personagens negras bissexuais anteriormente para pensar no direcionamento dessa representação: a fluidez funciona nas narrativas convencionais como pretexto de fetichização da "lesbiandade ocasional". O primeiro passo para perceber se a representação é direcionada aos homens heterossexuais, é identificar se há investimento em imagens higienizadas da homossexualidade através de uma ideia de "diferente" como "estilosa", magra, classe média, objetificada na descrição do ato sexual. Também é importante observar o contexto da relação - se ela existe, se as personagens serão "trocadas" por um relacionamento estável com uma pessoa dentro do padrão ou se há hierarquia racial, intelectual etc.


Amanita, companheira da mulher transsexual Nomi (Sense8)


É um problema representar relações lésbicas SEMPRE tributárias do que aparenta ser uma heteronormatividade: butch + Lipstick. Gente, existem tantas formas de experienciar gênero que simplesmente não faz sentido insistir nessa fórmula Yin/Yang que não funciona nem no universo da heterossexualidade. Também é problemático que mulheres Negras sejam sempre parte duma relação inter-racial, como em Sense8. É lindo como Amanita é apaixonada por Nomi e como é recíproco. A relação delas é bastante focada na fragilidade de Nomi, que demanda resgate e apoio, fora que "sua inteligência e esperteza é sempre direcionada a isso" (CRESCENCIO, Bel). Mais uma vez: é preciso um olhar atento para o embrincamento de gênero, raça e sexualidade.


E qual a representação mais interessante?



à esquerda Diamond e à direita Original Cindy (Dark Angel)


Pense numa heroína sarcástica, inteligente e psicologicamente complexa interpretada por uma atriz Negra! Original Cindy (7) (Dark Angel) foi a primeira personagem Negra-lésbica que assisti na TV, e achei encantador o seu modo de encarar a realidade distópica mantendo um laço de amizade bonito com "a Dark Angel" Max Guevara. Apesar de adjuvante, sua presença é notável, sobretudo, no episódio "Shorties in Love", em que sua personalidade é melhor desenvolvida. Nele, a história gira em torno de uma ex-namorada Cindy, chamada Diamond, que acabou de sair do cárcere. A configuração dos acontecimentos e o modo como Cindy lida com seus sentimentos mostra uma discussão séria que intersecciona lesbiandade, classe, racismo, sistema prisional como herança colonialista. Ao mesmo tempo que mostra uma personagem negra e lésbica de forma respeitosa, faz da sexualidade um tópico de discussão surpreendentemente avançado se comparado ao que a ficção especulativa mainstream nos oferece hoje. Apesar dos percalços de Diamond, ela é descrita com afetos e contradições realistas, nem uma pessoa "arrependida de seu crime", nem vilã. Original Cindy, por sua vez, vive num contexto heterossexual que acolhe sem pontuar como desigualdade. O estereotipo da "lésbica que odeia homens" é transformado numa crítica real às masculinidades hegemônicas com seus sexismos, dependência e afins. A proeminência de Original Cindy é uma resposta às pessoas que são invisibilizadas, silenciadas todos os dias. Pessoas que são assassinadas e ninguém "reza", muda a foto do perfil e nem cria hashtag por elas - porque Negra-Lésbica.

Eu adoro Original Cindy porque ela é Negra-Lésbica e não precisa morrer, não precisa que sua companheira morra e nenhum outro tipo de tragédia para ser quem ela é. Sua inteligência, companheirismos e autonomia REPRESENTAM valores que precisamos VER mais na mídia para que, de uma vez por todas entendam que Lésbicas-Negras existem. Abafar o fato, não faz dele MENOS REAL, apenas contribui para que a violência se legitime.




Não basta mostrar(e), tem que representar!


Amanita (Sense8)



*Post in Memoriam de
 Luana
Katiane

*Obrigada à
Bel Crescencio
Camila Cerdeira



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NOTAS

(1) Apesar da higienização e da reprodução de heteronormatividade, na série Sense8 essa discussão foi estabelecida de forma até satisfatória.
(2) Aqui me refiro à Simone de Beauvoir (Sexo é diferente de gênero, mas só compreende dois: feminino/masculino e mulher/homem, que podem se cruzar e ser um tabu). 
(3) Isso também é discutido em A cor púrpura (The Colour Purple), romance de Alice Walker e adaptado para o cinema por Steven Spielberg em 1985.
(4) Elen Oléria, Angela Davis, Mart'nália, Kara Walker, Tamar-Kali, Skin, Dee Rees, Queen Latifah, Beth Smith, Audre Lorde, Aph Ko e muitas outras...
(5) POC - pessoa de cor (people of color) ou não-branca.
(6) O seriado com temática Lésbica mais celebrado até hoje. Ahan, a Bety é metade negra, mas a discussão é rasa do tipo "você está escondendo seu pai preto que gosta mais de voe que da sua irmã preta, so porque você parece branca!". Roteiristas perderam a oportunidade de discutir de forma politica esse dilema, ms como disse Camila Cerdeira: "The L word é um monte de erros juntos".
(7) Interpretada por Valerie Rae Miller.
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