CRITICA| Guerras Secretas #1 (2015)
*SPOILER*
* Se você acompanha as mensais de Vingadores e Novos Vingadores já sabe do que se trata a saga, então vá em frente e pule a primeira parte!
*Caso não faça nenhuma ideia, sugiro que leia esse artigo aqui antes de prosseguir.
*Nossa análise leva em conta questões sobre alteridade e representações sociais.
Ultimate + Nova Marvel, o ponto de partida das Guerras Secretas!
Vocês devem ter notado que a linha alternativa da Marvel Comics (Universo Ultimate) injeta pontos de vista e versões inimagináveis de super-heróis clássicos, seja uma versão teen dos Supremos, seja um Homem-Aranha latino e negro. Esta alternativa mercadológica tem mostrado, desde os anos 2000, que as minorias polÃticas (negros, mulheres, LGBTQ, muçulmanos, gordos, pessoas com deficiência) consomem se interessam pela mÃdia desde que se sintam representadas - tanto que são os tÃtulos que mais vendem. Esse crescimento nas vendas foi um ponto que motivou a reformulação da "Casa das Ideias" conhecida como Marvel Now, ou, no Brasil, Nova Marvel. A ideia central é a de que qualquer pessoa possa se sentir representada nas revistas de super-heróis - em especial, os Vingadores, cujos personagens icônicos deram lugar a colegas, amantes e companheiros sem que parecesse plausÃvel para a maioria dos fanboys. Segundo Rafel Conter (2015):
A ideia, além de aumentar as vendas, era torná-los um grupo maior, superior, multicultural. Segundo seus criadores, os Vingadores de Marvel Now, através de suas diversas formações, seriam capazes de "representar o mundo inteiro" (SUNU, 2012). Entre seus membros seria possÃvel representar as minorias e ver-se (quem quer que esteja olhando) também por eles representado.
(CONTER, 2015, p. 19)
Assim seguiram as fases da Nova Marvel e Totalmente Nova Marvel pelas revistas mensais com NovÃssimos Vingadores (2015) e a Moongirl and Devil Dinosaur (não publicado no Brasil ainda). Esses tÃtulos começaram com o número desde o um e, assim, chamaram um novo público que se atraiu pelo audiovisual (filmes e séries exclusivas da Netflix) ou mesmo pela promessa de inclusão de minorias. Essa mudança ocasionou muitas crÃticas dos "nerds clássicos" que acusaram a Marvel de ser indiferente a eles que sabem cada ponto controverso da cronologia editorial. É provável que as pessoas que aderiram à Marvel a partir desse ponto não tenham ideia de que as mensais são partes que dialogam com a continuidade-mestra que desembocará num evento que muda drasticamente o universo Marvel. Se esse for o seu caso, saiba que isso não é um grande problema, você pode sim ler as Guerras Secretas (2015)! Sugiro que, antes, você leia o encadernado Novos Vingadores: "Tudo Morre" ou/e o texto Guerras Secretas: o inicio para compreender o conceito de Incursão Dimensional (apesar da bela arte, e ótima forma de desenvolver um conceito para o evento achei o roteiro tedioso).
Este conceito - formulado pelo roteirista Jonatham Hickman - toma para si postulados da Teoria da Relatividade e soma à questão filosófica da mudança que pode ser interpretada como finitude (simbolizada no tarô como a morte e no panteão indiano como a deusa Kali). Em suma:
[...] criaturas super-poderosas chamadas Beyonders (que apareceram no mini-evento que se convencionou chamar de Guerras Secretas III), que literalmente criaram todo o multiverso, resolveram “descriá-lo”, colocando Terras de dimensões diferentes em colisão com outras, em uma sucessão infinita de destruições de universos inteiros. A chave é o Homem-Molecular, personagem importante da primeira saga Guerras Secretas, que, como aprendemos, é igual em todos os universos e funciona como uma espécie de bomba aniquiladora.
(FAN, 2016)
Assim como a Dinastia M (2006) foi uma alternativa ficcional para limar o excesso de personagens mutantes, as novas Guerras Secretas foram encomendadas para acomodar a demanda do público por representatividade ao marketing de transformar o Ultimate em cânone além de injetar novidade aqueles tÃtulos protagonizados por personagens cujo potencial narrativo chegou ao limite. Para todo esgotamento um reboot,
Prelúdio
No ápice dramático de Homem-Aranha Ultimate (Miles Morales) em Ultimate Marvel #12 e da Thor (Jane Foster), Capitão América (Sam Wilson) e Homem de Ferro Superior (Tony Stark) em NovÃssimos Vingadores #9, as narrativas avisam que o que nos resta são as Guerras Secretas! A primeira versão das Guerras Secretas, publicada entre 1984/85, foi uma "narrativa-mestra" que se passava noutra dimensão espaço-temporal chamada de Battleworld ou "Mundo Bélico" e esse é o ponto de encontro com as atuais. Após a incursão final, as realidades alternativas/universos paralelos todos se mesclam num globo e, como sempre, sagas clássicas são referenciadas, o que pode ser entendido como fanservice (isto é, uma camada de interpretação que privilegia aquela "audiência clássica" citada acima); em geral, esses floreios não acrescentam complexidade à narrativa (como em Star Wars VII), mas, caso você se interesse, vale a pena consultar:
- Guerras Secretas - 1984/1985 (Jim Shooter/Michael Zeck)
- X-Men: A saga da Fênix Negra - 1980 (Chris Cleremont/ John Byrne)
- Vingadores: A queda - 2005 (Brian Michael Bendis)
- Dinastia M - 2006 (Brian Michael Bendis/Olivier Coipel)
- Guerra Civil - 2006/2007 ( Mark Millar)
- Aranhaverso (2014)
Mapa do Mundo Bélico (Guerras Secretas III - 2015) |
Análise
O primeiro volume de Guerras Secretas III publicado no Brasil é composto pela edição promocional lançada nos E.U.A no Free Comic Book Day e pela "história em si", totalizando 68 páginas sem anúncios (!), com o preço de capa de R$ 9,50. As primeiras páginas foram ilustradas por Paul Renaud e mostram o plano de criança-prodÃgio Valéria Richards (filha do Sr. Fantástico, Reed) de sobreviver à incursão através da construção duma nave que funcionará como bote salva-vidas. A referência a Noé avança à medida que descobrimos que a nave não comporta mais setenta indivÃduos e que a diversidade genética é ridicularizada em detrimento duma ideia de evolucionismo: "Apenas os mais fortes sobrevivem, mano" (p.7). É evidente que não há como reverter a incursão, pois nem mesmo o conselho dos Illuminati (formado exclusivamente por homens) impediu, mas ao observarmos o contingente de crianças (filhos do amanhã) que compõem o grupo dos "fortes", concluÃmos sem dificuldade que há mais extraterrestres do que meninas e do que pessoas não-brancas. Assim como os não-humanóides, a menina Negra faz parte do cenário, portanto, apesar de a criança-prodÃgio encarnar um papel mÃtico do patriarca e desafiar a tal ideologia, sua liderança e genialidade reforça a imagem de superioridade racial.
A ideia de mérito só é questionada por Franklin Richards, portanto, os dois pontos de vista são representados pela familia de Reed Richards. Essa dicotomia, associada à presença massiva de personagens brancos, torna o plano inicial de destruir a Terra outra para manter o seu próprio legado um projeto darwinista no sentido estrito. "Mais forte" neste caso é aquele que teve os melhores meios para sobreviver.
No inÃcio da história seguinte a conjunção da camada verbal e gráfica se mostra bastante eficaz para representar a morte: Dr. Destino vivencia o fim do multiverso do preto ao branco, do realista à simplificação. As páginas brancas com a descrição do estado do multiverso funcionam como uma transição espaço-temporal, de modo que somos levadas na página seguinte à Terra 1. 610 (Ultimate) com seu elenco dividido em objetivos e métodos de sobrevivência. De um lado, Nicky Fury tem a motivação de salvar o mundo, por outro, Reed Richards trabalha "[...] nas coisas que realmente importam" (p.21) que nada mais são que suas próprias prioridades.
Na Terra 616, Vingadores e X-Men lutam contra os oponentes da realidade alternativa ao mesmo tempo em que ambos os lados planejaram a fuga com um número reduzido de indivÃduos. Enquanto os heróis desta Terra salvam civis (em vão), o mundo a volta se dissolve e a sensação é de que não há solução para o mundo. Essas ações desinteressadas questionam o utilitarismo de Richards (Ultimate).
A seguinte passagem é um diálogo entre Reed (Ultimate) e Thanos em conjunção com o sacrifÃcio de Dobra. Enquanto o cientista explica seu ponto de vista vemos a materialização de seu contrário; eis a minha chave de interpretação do evento: temos uma belÃssima analogia.
Assim como o discurso hegemônico usa estratégias para se manter visÃvel e normativo (Universo Convencional 616) o underground, as minorias e todos os indivÃduos não ajustados ao sistema lutam para poder existir (Universo Ultimate 1610). A pesar de Richard expressar que os oponentes versão seu "salva-vidas" como um roubo, ele enfatiza a resistência dele em recusar a finitude. Esse discurso de esperança é costurado com o sacrifÃcio de um dos três homens negros da formação atual dos Vingadores: Luke Cage, Capitão América Sam Wilson e o Dobra. Em tempos de denúncia da morte de homens negros pelas instituições através da campanha #Blacklivesmatter, a morte desta personagem não passa como um acontecimento qualquer: pode-se morrer o corpo, mas o contra discurso, as idéias em si, nunca morrem; no máximo, elas se transformam com o tempo. Vejo uma sombra de Martin Luther King Jr, Malcom X e de Audre Lorde nessas palavras, porque foram Ãcones que deixaram um importante legado apesar de toda a violência e usurpação. A presença de Ciclope em diálogo com a Fênix Negra metaforiza a mudança da forma - dado o contexto desfavorável - e a adaptação do conteúdo como resistência à morte. Só existe resistência num mundo não ideal, portanto, a despeito da violência que a alteridade pode significar: viver não é preciso, navegar é preciso. Confesso que é graficamente desagradável a transmutação de Dobra, porque ela é um fim, uma ausência, uma morte simbólica. E ele como presença, importa.
Em suma: cada uma das Terras simboliza pontos de vista que lutam por espaço/poder. As Guerras Secretas reduzem o mundo social a "o mesmo" e "o outro" sem nos direcionar a uma identificação automática. Ambos os lados desejam sobreviver ao medo de aniquilação: aà reside a complexidade da trama. A fim de mostrar como o diferente - seu outro - é lido como o inimigo porque desconhecemos e que seu instinto de autopreservação é tão legÃtimo quanto o seu, imagem e texto trabalham para não nos polarizar. Assim como um lado reivindica o território, quem já está nele há tempos (e é incapaz de autocrÃtica) não tem empatia e o defende de toda forma. Enquanto a existência de um é construÃda pela presença do outro (um é tudo o que o outro não é) a ideia de herói passa por uma profunda reformulação e força tanto as personagens como a própria audiência a lidar com o horror de sair de si mesma. Não é a mesma coisa no Burning Hell?
- E você, está acompanhando a saga? Deseja ver aqui análise dos Tie-ins?
Textos Consultados
Cardim, Thiago. Se liga no mapa do mundo bélico de Secret Wars! o.O <judao.com.br/notepad/se-liga-mapa-mundo-belico-de-secret-wars-o-o/>. Acesso em 5 out. 2016.
Conter, Rafael. O super-herói e as presenças do outro. (Dissertação). UFRGS, 2015. </www.lume.ufrgs.br/handle/10183/118255>. Acesso em 5 out. 2016.
Fan, Ritter. Sagas Marvel | Guerras Secretas (2015) <www.planocritico.com/sagas-marvel-guerras-secretas-2015/>. Acesso em 5 out. 2016.
Heck, Kinhu. Guerras Secretas - O inÃcio do fim! <www.marvel616.com/2015/05/guerras-secretas-o-inicio-do-fim.html>.Acesso em 5 out. 2016.
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