O problema por trás de "Prefiro Demolidor à Jéssica Jones ou Luke Cage" (MCU)



O imaginário é um sistema de pensamentos, crenças, imagens (!) que alimenta a memória cultural e molda o gosto, estilos, valores e, em suma, a identidade do indivíduo. Esse sistema é composto por teias de significação que são tensionadas a ponto de enaltecer certos aspectos em detrimento de outros, sempre em par: bom/mau, bonito/feio e eu/inimigo.

O imaginário é tão próximo do ego (do "eu") que, não raro, as lentes usadas por certos grupos sociais para ler a realidade à volta lhes parecem transparentes. Essa (suposta) transparência se consolida quando a identidade hegemônica encontra eco do que acredita que é. Noutras palavras: ao homem-cis-branco que se enxerga como medida do mundo só interessa ver refletida a confirmação de que é sim másculo, invencível, temível, belo e com ótimo desempenho sexual. Acaso lembra o Matt Murdock de Frank Miller? Ora, não existe transparência.

Quando um homem vocifera que "Jéssica Jones é mediano" ou uma pessoa branca diz que "Luke Cage é uma série fraca" dificilmente apresentam argumentos técnicos e análises coerentes, ou seja, "é questão de opinião" de "populares". Alguns rapazes que celebram o Justiceiro - achando que ele é "obviamente um herói" - devem ter lido Watchmen (DC/Vertigo) apenas no plano literal, esquecendo que ex-combatentes são pessoas traumatizadas que precisam de acompanhamento (sabem o Comediante? Ele não é uma comédia). Justiceiro é uma pessoa com grande poder bélico que se sente acima da lei, "punindo" todos aqueles que cometem crimes "nas ruas", como se a realidade fosse simples assim. Como se justiça fosse uma equação. Ele apenas reforça a lógica masculinista, violenta, hierárquica que prefere culpabilizar o infrator sem focar a causa da infração. Essa atitude mimada de "homem pondo ordem" não difere daquela chateação que temos após um furto, por exemplo. Sim, é péssimo ser furtada ou assaltada, porém, mais triste ainda é saber que as pessoas são reféns dum sistema perverso como o capitalismo. Que pessoas não são contratadas porque não nasceram da "cor certa". Infelizmente a vida é essa.

No auge do ridículo, há quem afirme que em "Marvel: Luke Cage" atua uma espécie de "racismo às avessas" alegando a falta de personagens brancos. Ora, há vários: policiais corruptos, técnico que consome pornografia, um cientista sádico e o sidekick/vegetariano/corrupto/solitário/"engelzado" Scarf. Nenhum "bonitão", nenhuma "broderagem" e nem chutes gratuitos nas faces de minorias políticas. 





Talvez o problema aí seja que os brancos não são protagonistas, que a série não gira em torno de seus privilégios e muto menos de seu prazer retórico de afirmar que "negros são mais racistas que brancos" ou "negros são os únicos que matam o próprio povo". Se você busca por uma perversidade gratuita plasmada numa imagem de mulher negra silente, homem negro alvejado por existir, ou ataques racistas como assunto qualquer, não encontrará em Luke Cage. Se isso incomoda, o problema não é a série, o problema é você.



(E olha que tem muito disso em Jéssica Jones. Reva aparece no mesmo papel de Brunhilde em Django Livre: silenciosa, objeto de violência e motivação para o herói. Jones sente um leve remorso por ela, mas para por aí. Já Malcolm é alvo do privilégio branco de Jones que não pensa muito sobre empurrá-lo contra o carrinho "fins justificam os meios"? A construção do desejo de Jones por Luke leva à objetificação de seu corpo e ensina: "homem negro é sexualmente mais potente que o branco". Mensagem bem colonial, aliás. Que homem-cis branco vai se sentir confortável com a presença de Cage - o Poderoso - numa relação afetivo-sexual com uma mulher branca?Além disso, dificilmente um boy vai gostar de ver sua manipulação, violência e infantilidade refletida em Killgrave).

Paradoxalmente, o "Homem Púrpura" é o ponto de aderência de certa horda de rapazes cis-ht. Muitos vibraram por suas atitudes violentas, egocêntricas e irresponsáveis como se fossem o padrão a ser seguido. Ou como se Killgrave fosse um líder que legítima o mainsplaning, slutshame, stalking e abuso sexual que tanto praticam e/ou fantasiam. Killgrave é um vilão, rapazes. Ele faz mal às pessoas pelo prazer pessoal. Ele feriu Jéssica Jones de todas as formas possíveis e para sempre. Não ver problemas nisso é sinal duma psique, no minimo, desequilibrada.

(não falo aqui de sofrimento mental ou de síndromes e nem quero dizer que o problema ético resulta duma doença; quero apenas enfatizar que a identificação com Killgrave sinaliza a necessidade de amadurecimento emocional que transmute menino edípico numa pessoa autônoma e capaz de observar o contexto).



Veja, não estou desqualificando a atuação e nem mesmo o conceito de "Homem Púrpura", até mesmo porque não existe heroísmo sem o exemplar oposto que encarna o "mau", errado e grosseiro. A ideia aqui é enfatizar que o gênero de super heróis tem como objetivo principal mostrar o ideal ético e o seu oposto, que não deverá ser seguido. Assim, através da metáfora de um homem de porte mediano, mimado e com toda a sorte de facilidades, a série questionou um padrão de comportamento violento que emerge dessa masculinidade da qual não se costuma falar.




E "falando em falar": quanto tempo Jéssica Jones e Luke Cage tem juntos, em minutos, de 1) mulheres com nomes, 2) conversando sobre qualquer coisa que não seja homem? Ou apoiando uma à outra? Ou salvando uma à outra? Ou vivendo sexualidades em função delas mesmas, não da audiência? Que tal a quantidade de mulheres fortes, que não se curvam ante a violência específica, que não se calam quando questionadas por mero sexismo? Que tal a Claire Tample salvando a si mesma, se relacionando com quem deseja e dizendo "não" na hora certa. Todas essas mudanças geram profundo medo nos rapazes conservadores. Medo de que seus valores sociais se percam, junto com seu poder.

O seu tempo acabou, moço clássico. Para além deste horizonte normativo narcisista há mais possibilidade de ser/estar do que pensa a "vã filosofia", ou mesmo do que o Universo Ultimate mostrava pré Guerras Secretas 2, mas prossigamos.

Em Marvel: Demolidor" predomina o fetiche de extinguir o mal da face da terra. Como dissemos anteriormente, Murdock é parte eloquente do corpo burocrático (advogado) que inclui o sistema prisional (moedor de vidas negras) à luz do dia; por outro lado, à noite, ele se volta ao <<<crime como um fato em si mesmo>>> e o resolve com violência física. Violência essa que fere, sem matar, alimentando o ciclo. Curioso que o cristianismo dele é mais código de talião (olho por olho, dente por dente) que "dar a outra face" para o oponente bater. A liberdade de aliviar a sensação de impotência ante à burocracia, quando somada à impunidade constrói uma forma de heroísmo ao molde "justiça branca" que não apenas pune a consequência (a pessoa não-branca em conflito com a lei) no lugar de atacar a causa (concentração de renda, indústria bélica, pornografia, criminalização do uso e porte de drogas). Assim como o ícone da Justiça é uma pessoa cega, o conceito da personagem faz uso do "igualitarismo segregacionista" para representar o que Murdock se recusa a ver. Ele se relacionar com a enfermeira Claire Tample não apaga a soma de seus privilégios, apenas remonta à imagem histórica de relacionamento inter-racial. Além de usar seu conhecimento técnico para ajudar Murdock a todo tempo, Claire aparece como interesse sexual e (após ser ferida fisicamente) se consolida como motivação para o herói (fato que não ocorre com a secretária Karen Page, que se expõe aos perigos). Claire Tample é a única personagem não-branca relevante na Hell's Kitchen de Demolidor, e por quê? Alguns tentarão me lembrar do Ben Ulrich, mas ele foi uma figura que apareceu apenas para moldar a participação de Page (assim como o Rhodes na Guerra Civil 2). A importância de Tample também é de mostrar a necessidade de apoio que todas as pessoas, por mais fortes que sejam, precisam. Ela é tão destemida quanto Cage, mas eles são mais fortes quando juntos. Como afirmou Anita Sarkeesian (2015), em Jéssica Jones, pedir ajuda funciona como demonstração de fraqueza e aderência aos arquétipos femininos que Jones tanto rejeita; Malcolm, por outro lado, com porte físico menor que o de Cage é vulnerável (como seres humanos costumam ser!) e isso não fere sua masculinidade. Exercer a função de coordenador do grupo de ajuda mostra que ele reconhece sua condição de trauma - atitude lida em nossa sociedade como "feminina". Olhando com nossas lentes de feministas interseccionais, enxergamos um grande avanço na discussão sobre masculinidades negras, mas o que predomina é a interpretação de que ele é frágil, dependente e infantilizado.

Claire, Luke e Malcolm são o oposto emocional de Jéssica Jones. É como se a sensação de impotência da heroína a levasse para caminhos em que sua atitude de "vale tudo" seja justificativa para palavrões e empurrões.



Enquanto isso, a deficiência visual do Demolidor se mostra como metáfora da recusa em perceber que a violência gráfica está direcionada para "estrangeiros", não-brancos e qualquer pessoa lida como "diferente". Na série dele, não passam cinco minutos sem ossos quebrando, sangue e lutas viscerais. Quando muito, diálogos entre homens e sobre homens se estendem até que uma mulher apareça, daí eles agem como se ela não fosse capaz de entender e isso vira piada entre eles e Fogy Nelson (Atitude reconhecível em qualquer espaço Nerd quando uma garota aparece).

Sem dúvidas, é familiar e bem mais agradável a experiência de lugar-comum ou de "clube do bolinha" para os rapazes que preferem Demolidor à Jessica Jones. Neste ambiente, os valores que constroem e reforçam o imaginário e as políticas ocidentais, são destacados ao passo que outros pontos de vista, línguas, valores e necessidades são ignorados. Nesse sentido, à medida que focam em seu próprio bem-viver, os rapazes se mantém longe de sensações de empatia e deslegitimam quaisquer outras experiências. Por isso preferem "Demolidor".

Reconheço que o roteiro de Jéssica Jones poderia ter menos contratempos e pontos-de-virada, porque perder o vilão tantas vezes e de forma tão inverossímil, enfraquece a história. As formas como Killgrave se safou não convenceram a ninguém. Assim como o excesso de vilões em Luke Cage geraram temporadas dentro da temporada e não permitiram o desenvolvimento pleno do Cottonmouth. Apesar disso, sabemos que quando os meninos dizem que <<<preferem Demolidor à Jessica Jones ou Luke Cage>>> o que eles querem dizer é que não aguentam mais ver e ouvir o que mulheres, negros e LGBTQ+ têm a dizer. Para quem celebrou o crescimento de Claire Tample e a jornada de Misty Kinight, Luke Cage está bem próxima do que queremos ver. A quem não aguenta mais, boa sorte: nem um passo atrás, "sempre à frente"!






-Revisão e Edição: Anna Bárbara Araújo

Textos consultados

CARDIM, Thiago.CODE OF THE STREETSA música como personagem de Luke Cage. <judao.com.br/musica-como-personagem-de-luke-cage/>..Acesso em 10 out. 2016.
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Dyce, Andrew. Jessica Jones Easter Eggs, Marvel Connections, & Comic Nods. <screenrant.com/jessica-jones-easter-eggs-netflix-marvel-mcu/?view=all.>. .Acesso em 10 out. 2016.
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PUIG, Rebeca S.  BRODERAGEM, MERCADO E EXCLUSÃO. <collantsemdecote.com.br/broderagem-mercado-e-exclusao/>. Acesso em 10 out. 2016.
______. ONECAST #3 – JESSICA JONES (podcast). <collantsemdecote.com.br/jessica-jones-a-melhor-serie-do-ano/>.Acesso em 10 out. 2016.
______. O QUE VOCÊ PRECISA SABER SOBRE JESSICA JONES ANTES DA ESTREIA. <collantsemdecote.com.br/o-que-voce-precisa-saber-sobre-jessica-jones-antes-da-estreia/>. Acesso em 10 out. 2016.
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VACHONREBECCA THEODORE- <www.fastcocreate.com/3064174/a-love-letter-to-black-women-cheo-hodari-coker-the-gender-dynamics-of-luke-cage>.  Acesso em 10 out. 2016.
Zanetti, Laysa. Luke Cage: Crítica da primeira temporada <www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-124819/>. Acesso em 10 out. 2016.
*'Luke Cage' é o heroi que todos estavam esperando, cravam críticas de nova série da Netflix <www.tudocelular.com/tech/noticias/n78156/luke-cage-netflix-primeiras-criticas.html>. Acesso em 10 out. 2016.


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