A importância de Tara Mae Thornton sobre a pele de Rutina Wesley
Yeah, I’m just another mad weirdo
Yeah, I’m just another mad weirdo
Ergo
I came up with a chant for other mad weird folks’ earphones
(Sammus - Weirdo)
INTRODUÇÃO
Digamos que esse texto deve ter sido formulado em minha mente no fim da adolescência, assim que me deparei com "True Blood" (HBO: 2008-2014), adaptação audiovisual duma série de "romances pra garotas que gostam de vampiros e são mais radicais: "As Crônicas de Sookie Stackhouse" (Charlaine Harris). Nem os romances, nem mesmo os quadrinhos me interrogaram tão estranhamente quanto a série televisiva.
Pra quem não acompanhou, True Blood foi como "Game of Thrones" daquela época: todo mundo gostava porque trazia a tona os tabus sexuais, religiosos e sociais, além de resgatar as sombras coletivas. Que é um vampiro, senão a porção narcísica, a infância afetiva e a manifestação ilimitada dos nossos desejos? Obvio que não foi à toa a explosão de "Crepúsculo", "Vampire Diaries" e muitos outros que nos preencheram do revival soft de vampiragem estilo "Terça Vampiros na Fox" à época. Mas o texto não é sobre isso. Quero falar com vocês sobre a importância de Rutina Wesley como Tara Mae para a maturação do/da Preta, Nerd & Burning Hell. Aliás, se você observar, deveria haver lá nos primórdios, um texto sobre True Blood e o Racismo 2, que sim, existiu, mas não veio para o site porque a pesquisa finalizada me foi tomada num assalto. Apesar disso, a ideia sempre esteve comigo.
DE RUTINA WESLEY AO PRETA, NERD
A maioria das garotas Negras nerds têm como marco de representação na cultura pop a Tempestade da animação dos anos 90 ou a Diana da "Caverna do Dragão". Pra além delas, algumas afirmam que a Ranger Amarela marcou ainda mais, só que depois. Eu sou deste segundo grupo, pois, como vocês sabem, considerava a Diana despida demais e Tempestade anciã demais, (fora o meu pertencimento diaspórico antes de conhecer o termo) para serem "eu". A personagem Tara Mae, no entanto, deixou uma impressão duradoura. Primeiro eu observei o quanto sua pele era pigmentada como a minha, era jovem, vivia num mundo branco e, portanto, sua perspectiva tinha muito a me acrescentar. Apesar do contexto e das atitudes dela não serem iguais às minhas, percebi que eu a entendia melhor que a sua melhor amiga, Sookie Stackhouse porque eu a olhava de uma forma diferente. Apesar do meu incômodo com seu mal enquadramento, maquiagem, iluminação e narrativa, eu quis entender melhor o efeito de tudo isso sob o meu olhar então perseverei pelas temporadas.
Separei o verão que normalmente era reservado a maratonar "Buffy, a caça vampiros" para (re)assistir "True Blood" e analisar o porquê da minha atração por uma série tão ruim do ponto de vista narrativo e político. O mais evidente era a ínfima porção de tempo da Tara em tela e a forma como ela era entendida pelas pessoas ao seu redor. Apesar de sua vida ser marcada por picos (jamais vales) de dramas, violências, preterimentos e negligência parental, suas sequências sempre eram focadas em suas respostas irônicas e reativas. Era classificada, inclusive por Sookie, como uma pessoa agressiva, como se isso fosse um dado isolado sobre sua "amiga quase da família". E, por falar nisso, a série se passa em Nova Orleans e as personagens pretas importantes são todas da mesma família problemática, desestruturada. Ora, que Nova Orleans é essa onde não há negros?
Após a leitura do texto O meu, o seu o nosso lugar no mundo da Lady Sybylla, penso que a pergunta correta talvez seja: o que True Blood nos informa sobre o nosso lugar no mundo?
Na primeira sequencia, Tara nos localiza:
"Não estala os dedos pra mim, eu tenho um nome, é Tara. Não é engraçado, uma garota negra com o nome de plantação? Na verdade me irrita. Ou minha mãe era burra ou simplesmente má. Por isso você deve ser amável comigo se quiser beber algo essa noite" (TARA MAE THORNTON in True Blood. #1 ep.1 - grifo nosso)
Para um olhar descompromissado talvez seja fácil localizar a personagem de Rutina no mesmo hall do Wes de "How to get away with murder": a pessoa negra difícil, emocionalmente instável, reativa demais e chata. Em todas as conversas das quais participei sobre a série, nunca foi apontado o vestígio da colonização na forma de representar personagens negros, nem mesmo as tentativas de entender os sentimentos e vulnerabilidades da Tara. Curiosamente, o primo Lafayette (um homem negro, gay, afeminado) foi um personagem ovacionado, evidenciando locais na pirâmide social. A abertura, mínima que fosse, pra compreensão da sensibilidade dele era um lugar. Lettie Mae, sua mãe e duplo, era a típica "mãe negra megera" que somente aparecia para mostrar o quanto era egoísta, violenta e impotente (como a mãe da Preciosa). É muito fácil colocar a mãe de Tara no lugar do ódio, sobretudo pela oposição entre a bondosa avó de Sookie e ela. Esse jogo entre as famílias negra e branca, que associa preto ao mau e disfuncional, é a tônica da série, pelo menos, até a terceira temporada, quando notamos uma notável mudança na forma de enfocar a narrativa da personagem.
Com toda a sutileza que meu olhar sensível à personagem, sofri com a busca incansável de Tara por afeto a ponto de se por a disposição de homens brancos insensíveis como Jason Stackhouse e Sam Merlotte. Em seguida, quando se apaixona por Eggs e esperei que a felicidade fosse palpável e veremos no desenrolar de True Blood que a felicidade é simplesmente inalcançável para ela. Situações que atualizam as memórias de escravidão são vividas pela personagem, que busca a todo tempo uma possibilidade de transcendência. Na quarta temporada, Tara passa do lugar de negligência e solidão ao lugar de interesse amoroso de uma mulher não-branca... que, também morre. Infelizmente, a mensagem que o programa deixa é a de que não há saída para Tara, além de que identificação com uma mulher e/ou a bissexualidade são apenas reações à vida.
E por falar em transcendência, sua condição de mulher negra num ambiente branco reflete nossa condição neste mundo de forma tão desesperançosa, que Tara se torna o que menos aprova - vampira - e tem que conviver com uma criadora não apenas branca, como secular. Para além do afeto inerente às relações vampíricas, é evidente que Pam e Tara encenam a relação de senhora/escravizada mostrando como tudo é racializado; por mais marginalizada que seja a identidade, existe hierarquia. Na segunda temporada, a energia sexual emanada por Tara e Eggs é canalizada pela Mariyann, uma entidade ligada à fertilidade e à organicidade da terra, que, apesar de não-branca para os estadunidenses constitui uma metáfora incontestável da exploração dos corpos negros no período colonial, seja pela reprodução em si, seja pela relação de objetificação no sentido amplo.
Tudo isso me instigou a entender o porquê de tantos estereótipos. Por que tanta dificuldade em confiar. Por que as relações, as atitudes, os afetos de Tara eram tão reconhecíveis. Por que o abuso é apresentado como uma "história negra" sempre. E essas dúvidas, foram suspensas pela morte desnecessária de Tara. Uma morte que serve apenas lembrar que ela representa um lugar que não pode existir naquele mundo, que não cabe na narrativa de fadas, brancuras e o privilégio de viver o amor e a luz do dia.
Confesso que foi muito frustrante experienciar essa série, embora ela tenha sido uma espécie de rito de passagem pra mim. Desde então, eu criei o Preta, Nerd & Burning Hell e desejei ver Rutina Wesley encarando outras histórias e vozes que realmente dizem e são ouvidas como Queen Sugar (OWN, 2016) da Ava DuVernay. Nesta série, algumas inscrições de Tara são vistas, mas num outro ponto de vista, e isso resgatou a importância da atriz como representatividade feminina e negra. DuVernay, produzida pela grandiosa Oprah, nos proporciona indescritível prazer nesta série dirigida por mulheres, que, finalmente, criou o papel que Rutina merece interpretar e que merecemos assistir (mas esse já é outro texto!).
CONCLUSÃO
Bem, muito da minha insistência e boa vontade com a série vampiresca True Blood vem da ambivalência que eu sentia em relação à personagem de Rutina Wesley: Tara Mae Thorton. Num primeiro momento eu queria entender a profundidade da personagens naquelas entradas rápidas e, posteriormente, veio uma frustração prolongada. Numa perspectiva mais construtiva, decidi estudar e poder responder às perguntas que a série embasou. Rutina indiretamente me conduziu à bell hooks, Grada Kilomba, Patricia Hill Collins porque o corpo, o olhar e a interpretação dela são trechos do que caracterizamos (todas nós) como Pensamento Feminista Negro - Nós somos o que compomos, o que vemos e o modo como vemos, lemos e compomos.
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