ASSÉDIO É VIOLÊNCIA CONCRETA SIM!
#FEMINISMONERD: 16 DIAS DE ATIVISMO CONTRA A VIOLÊNCIA À MULHER
"Durante os 16 dias de ativismo na luta contra a violência à mulher, os blogs Collant Sem Decote, Momentum Saga, Ideias em Roxo, Delirium Nerd, Vanilla Tree, Preta, Nerd & Burning Hell, Prosa Livre, Nó de Oito, Valkírias, Psicologia&CulturaPop, Iluminerd, Kaol Porfírio e Pac Mãe todos envoltos pelo #feminismonerd, se propuseram a discutir as problemáticas em torno da representação de mulheres tanto como uma matriz que reitera os discursos de violência e ódio, como veículos que visibilizam a discussão. Sabemos que, apenas a exposição e discussões possibilitam o combate direto, a resolução e identificação do problema. Como reitera a escritora e teórica feminista Audre Lorde : é preciso transformar o silêncio em linguagem e ação"
ASSÉDIO: VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E CONCRETUDE
A sensibilidade em relação ao problema "Violência à mulher" faz com que o tema vire objeto e método de análise de pessoas que se identificam como "feministas". Restringindo ao (multi)verso do #feminismonerd em que vivemos, não é exagero dizer que estamos cercadas pela questão tanto no mundo ficcional quanto no "real", e, portanto, todas nós, em algum momento, vamos falar disso reportando as violências dos comentários ou mesmo desmontando a retórica dos jogos, quadrinhos e filmes.
Como estudante de literatura, afirmo que, na maioria das vezes, o cotidiano duma mulher é feito um romance gótico: ameaçador, terrífico e inescapável. A heroína luta, luta e até tenta fugir, mas o substrato cultural encaminha ao corredor sem saída do trauma, loucura e morte. Se o "sem saída" é o que já temos - longe de qualquer positividade Pollyanna - eu acredito (e busco construir) no (o) feminismo como grande a utopia no "aqui-agora". Antes que vocês possam enxergar no que digo uma negatividade descabida, quero dizer que o realismo (não fatalismo) é uma das peças-chave para o ativismo. Os fatos são tristes (após 10 anos da Lei Maria da Penha, o índice de homicídios contra a mulher negra aumentou 19,5℅ enquanto a taxa em relação às brancas caiu 11,9%), mas temos que enxergar com lucidez e buscar soluções práticas. Sem reconhecer a violência, inclusive sua historicidade, não podemos erradicar nem de nosso cotidiano, menos ainda da sociedade. Exemplo dessa necessidade de repensar a realidade traumática imposta aos femininos e às mulheridades é o modo como as pessoas entendem o assédio. É incentivado que as garotas ignorem e até mesmo não vejam o assédio como violência, afinal "são apenas palavras" e "olhar não arranca pedaço".
Deixa eu te contar: arranca sim.
Entre as diversas modalidades de violências físicas e psicológicas, ambas marcam a vítima de forma concreta e permanente.
Um conceito central, quando se trata de violência simbólica, é o conceito de poder simbólico cunhado pelo sociólogo francês Bourdieu. Há, segundo o sociólogo, um poder que se deixa ver menos ou que é até mesmo invisível. Esse poder, que se exerce pela ausência de importância dada a sua existência, poder ignorado, que fundamenta e movimenta uma série de outros poderes e atos. O poder que está por trás, escondido nas entrelinhas e que é cunhado com este propósito. Quando reconhecido, estamos diante do poder simbólico, denomina Bourdieu (BOURDIEU, 1989, p.7). “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”
(BOURDIEU, 1989, p. 7 via Não Me Khalo).
É notável como permanece uma hierarquia de dor focada na concretude física que eu acho contraproducente. Segundo essa lógica, o assédio sexual é visto com normalidade (como se estivéssemos no momento infantil de descobrir o mundo pelo tato, sem a compreensão do conceito de substantivo abstrato) e a justiça contra o agressor deve ser física no estilo "olho por olho, dente por dente". Sinto informar: a ideia de corrigir estupro com linxamento, não é nova e está muito próxima do que entendo por "justica branca", que antes pune raça/cor e classe (aquela do Jim Crow). Imagens são muito densas, mas Strange Fruit na voz de Nina Simone é uma forma de compreender o ponto de vista interseccional. Mas vamos pensar um problema de cada vez.
Uma percepção adequada à complexidade do problema é a de que assédio é sim concreto. Ele atua de forma real no cotidiano das vítimas, é bastante letal e, sobretudo, é o que autoriza a violência física, no olhar do abusador. Na maioria das vezes, o insulto disfarçado de elogio é o primeiro passo.
Uma percepção adequada à complexidade do problema é a de que assédio é sim concreto. Ele atua de forma real no cotidiano das vítimas, é bastante letal e, sobretudo, é o que autoriza a violência física, no olhar do abusador. Na maioria das vezes, o insulto disfarçado de elogio é o primeiro passo.
Isso me ocorreu essa semana, analisando "A donzela de bronze" (Amazing Spider-Man Annual #16 (1982) [Brasil: Heróis da TV -1987]) a história em que estreou a Mônica Rambeau estreou como Capitã Marvel. Nela, o Peter Parker a.k.a Homem Aranha, primeiro demonstra um instinto naturalizado de "stalker" (uma masculinidade insegura) que culpa a vítima. Mais à frente, noutro plot da mesma história, ele a agride fisicamente. E parece tudo normal e desconexo para um olhar insensível, senão privilegiado como o do roteirista Roger Stern. O "amigão da vizinhança", a despeito de não ser "um estuprador" (porque acredita-se que *fatos produzem indivíduos*), se sente "safadinho" e, portanto, bastante à vontade para seguir uma mulher que "achou bonita". Não, isso é assédio. Isso é violência.
"A Donzela de Bronze" (1 nov. 1982) [detalhe] Roteiro: Roger Stern Arte: John Romita, John Romita Jr. |
O entrelaçamento do real como o fictício mostra com propriedade a concretude dessa narrativa em nosso imaginário e experiência "real". Qualquer mulher é vulnerável ao assédio, por mais autossuficiente que seja e em qualquer situação e ambiente. Tanto é verdade que o assédio é violência concreta que, quando ignoramos ou mostramos desacordo, o/os agressor/es mudam o tom, o palavreado e a abordagem e coagem de forma direta insinuando agressão física, insultando com palavras de calão e desvalorizando. Essa situação é o plot de "A vingança de Briggs" (1986) roteirizado por Ann Nocenti. O mutante Briggs, depois de assediar Tempestade e ser ignorado por ela se sente à vontade para agredi-la de forma contínua. De fato, quando aparece uma espécie de Lord para defendê-la, Tempestade que é uma deusa, recebe a proteção com muito gosto o que ensina para os garotos àquela época que mulheres estão interessadas em homens "formosos e com posses", como se o problema não fossem as atitudes. Em seguida, Briggs coage a mutante a escolher um dos seus melhores amigos (Colossus ou Wolverine) para morrer. Como uma heroína gótica, Tempestade se sente aprisionada e escolhe Wolverine por acreditar que ele é mais apto a se defender. Embora a escolha seja racional, ela não leva em conta a cooperação entre homens e o final não é positivo para ela, exceto no que tange à integridade física. Veja que o título faz parecer que Briggs é a vítima, em busca de vingança. Ora, é o próprio Briggs que tenta humilhar a heroína (slutshaming) por sua (suposta) atração sexual pelo (suposto) salvador.
Sendo Nocenti uma mulher, notamos em sua narrativa a falta de agência da heroína e a impossibilidade dum desfecho transgressor, tal como a ficção especulativa de autoria feminina do século XIX. Já Stern possibilita que Rambeau salve a si mesma naquela situação, surpreendendo Parker, mas sua forma combativa é punida física e moralmente noutros momentos daquela história - como o gótico masculino Ex: "O castelo de Otranto" (Horace Walpole).
Tendo em vista que as equipes criativas de ambas as histórias em quadrinhos não são compostas por nenhuma pessoa negra, uma perspectiva interseccional identifica a complexidade que é o fato de Rambeau e Munroe serem sexual e racialmente diferentes desses times. Óbviamente escritoras/es devem ser capazes de escrever sobre qualquer experiência, no entanto, se vocês observarem qualquer história em que a Wanda Maximoff eiticeira Escarlate ou mesmo da Jean Grey (Garota Marvel/Fênix) sofrem assédio perceberão que ambas não há índices imediatos de violência física, e sim a tentativa de manipulação mental para que elas escolham o vilão como parceiro sexual. A primeira está sempre acompanhada do irmão Pietro (Mercúrio) para defendê-la dos invasores, a despeito de apresentar comportamento tão manipulador quanto o Mestre Mental, por exemplo. A segunda também é assediada, mas duma forma que compromete o plano psicológico com danos irreparáveis.
Por um lado, defendo a ideia de que assédio sexual e moral são violências concretas e entendo que "Vingadores, a queda" e "Dinastia M" são formas de representar os efeitos da violência simbólica na vida de mulheres brancas. Por outro, tanto "A vingança de Briggs" como "A donzela de bronze" descrevem situações em que o assédio moral é metáfora da ameaça física, de uma violação imediata do corpo. Não há estratégia de convencimento, nem o insulto e a perseguição isolados; Tempestade e a Capitã Marvel estão expostas ao risco de morte iminente. Como eu mesma e qualquer outra garota negra. Ora, quem disse que essas situações imaginadas não refletem e constroem o cotidiano? Aliás, cá estou existindo e contra-imaginando, afinal, ser Preta, Nerd, acadêmica e escrever sobre violência quer dizer contrariar estatísticas, não é mesmo?
CONCLUSÃO
Graças à veiculação de imagens que mostram a violência simbólica como aspecto da vida cotidiana, muitas vezes nos vemos concordando que "palavras não arrancam pedaços". Em "A Vingança de Briggs" e "A donzela de Bronze", duas histórias criadas pós conquista dos direitos civis, roteiristas reforçam a norma sexista que diferencia o sujeito e o objeto, respectivamente, como homens e mulheres (estas divididas entre "boas" e "más" com punições visivelmente diferentes). É importante ler essas histórias tendo em vista o contexto histórico e econômico, porém, ambas as situações ficcionais constroem padrões de comportamentos que perpetuamos. É evidente que, enquanto não desnaturalizamos os pensamentos e práticas, enquanto não transformamos tudo em linguagem e denúncia, refletiremos a ideia de que violência simbólica é invisível, abstrata e menos importante. Está firmado no nosso campo de experiências que esse tipo de violência é normal, mas como audiência negra crítica, estamos no caminho da decolonização a ponto de lidar com o poder simbólico de forma combativa, porque assédio, mainsplaning, slutshame e assédio sexual são violência concreta sim!
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