Mulher não pode ser chef(e) - A Solidão de Dayse Paparoto no Masterchef Profissional
Desde pequena eu sabia que não queria parar na cozinha, porque foi
ensinado a mim (e a todas as meninas negras) que aquele era o nosso “ambiente”, era
ali que poderíamos exercer o papel subalterno determinado para nós. Cresci
assistindo Tia Nastácia cozinhando divinamente sem sair da cozinha e vendo o
nome da Dona Benta no supermercado, aquilo não fazia sentido na minha cabeça.
Hoje faz porque entendo que ser mulher preta e ter algum tipo de poder é um
insulto à sociedade racista.
Não acompanhei
essa temporada do MasterChef Brasil
Profissional desde o início, mas algo me instigou a assistir o episódio 09 (transmitido
no dia 29.11.16) – o dia que várias pessoas ficaram boquiabertas com o machismo
escancarado sofrido pela participante Dayse
Paparoto, única mulher desde então. Me revoltei, mas comecei a fazer
questionamentos e conversar com minha mulher sobre o assunto. Aquilo ali, além
de machismo, se chama violência psicológica e nós passamos por isso todos os
dias em qualquer ambiente de trabalho, na faculdade, em casa, na rua, nós
sempre somos jogadas de lado como se não existíssemos, como se nossa capacidade
sobre determinado assunto fosse mais limitada que a dos homens. Percebamos isso
em qualquer área profissional: a mulher pode até exercer, mas ela não pode
deter o conhecimento maior, ela pode costurar e cozinhar, mas quem é chef de
cozinha e estilista é o homem. A supremacia branca e masculina determina que o homem
branco tem de estar sempre em algum patamar acima, caso contrário vejamos o
chilique:
Hoje eu
leciono para turmas do ensino técnico e sou a única mulher e negra do quadro de
professores e única também que vê uma necessidade em usar crachá e andar séria
para que assim possa ser, no mínimo, tolerada pelos demais funcionários. Anos
atrás, ainda na graduação, me retiraram uma bolsa de estágio - que eu
necessitava para sobrevivência - única e exclusivamente por ser competente, a
mais competente eu diria, e mais procurada pelos clientes do que meu subchefe,
um homem branco. Nunca tinha visto tamanha indignação e incômodo tão explicito
com o fato da minha competência e presença estar naquele ambiente. Eu chorei
muito naquele dia, eu precisava daquele dinheiro e fui extremamente
injustiçada, fui chamada por ele de “subordinada” e o peso daquela palavra ia
além do seu significado literal, ele significava que “esse espaço não é seu, o
seu lugar é sendo sempre subordinada a homens e pessoas brancas”. Aquilo foi um
murro bruto e violento na minha cara.
Daí eu olho a
Dayse, uma mulher de 32 anos, uma profissional com vasta experiência, sendo
tratada pelos seus colegas do reality como uma burra, limitada e frágil. Seu
ex-chefe e colega, Ivo, em uma prova em grupo a mandou varrer um chão depois de
uma reclamação dela sobre o andamento deles na prova, além de falar no seu
depoimento que lidar com mulheres na cozinha é difícil porque elas são
“frágeis” e expor na prova final que ela não merecia estar ali e sim, ele. Mesmo tendo que passar por tudo isso, Dayse sabe
quais são os motivos de todo aquele ódio e lida com tudo no sarcasmo, talvez
essa tenha sido a proteção que ela aprendeu durante os anos. Nós sempre aprendemos
e construímos algum escudo para não fracassar. Isso não quer dizer que isso
tudo não a afete psicologicamente, é notável que durante suas falas, ela explana
que não consegue acreditar no tamanho potencial que tem e na sua vitória ela
achou aquilo tudo inacreditável. Essa baixa autoestima não é por acaso. Fomos
criadas a sermos fortes e aguentar todo peso, mas não somos burros de carga,
precisamos aprender isso.
É tão
comum que os homens odeiem as mulheres e amem os homens, não é mesmo? O próprio
Marcelo disse durante todo reality que ela não é capaz, que seria injustiça se
ela ganhasse qualquer prova, deram a ele a ousadia de provar da comida de Dayse
para admitir que os jurados – profissionais competentes e com muito mais experiência
que ele – estavam certos. Aquilo foi insano de assistir. Tivemos que vê-la
comemorando sozinha pela sua vitória, como se sua existência fosse nula ou
descartável naquele espaço, depois na semifinal e até mesmo quando ganhou o
prêmio final, essa frustração estava ali presente. Ela teve que encarar o medo
e a incredibilidade - dos concorrentes e dela mesma - o tempo todo.
Esses
acontecimentos no reality só fez
mostrar de forma explícita alguns dos motivos pelos quais não vemos tantas
chefs de cozinha, engenheiras, cientistas, CEOs, cineastas, super-heroínas,
juízas, entre outras e, quando há muitas mulheres percebemos a desvalorização do
setor, por exemplo: professoras. E nós não estamos nesses locais porque somos
fracas ou incapazes não, mas porque para nós existem três vezes mais barreiras,
precisamos provar três, quatro ou cinco vezes mais nossa capacidade de estar
ali e ser respeitada da mesma forma que sujeitos com privilégios sociais possuem
por simplesmente fazer o trabalho necessário e bem feito.
Esse tipo de
violência é tão implícito e imperceptível que nós mesmas não percebemos, mas
isso molda nossa identidade, define quem somos e como nos vemos. Vejo-me incapaz
de ser a mulher inteligente e bem sucedida que meus pais sonharam pra mim
porque simplesmente aprendi durante a vida que sou burra e limitada. Esse
sentimento persegue a maior parte das mulheres, pior ainda se fugirmos aos
padrões socialmente estabelecidos. Precisamos reaprender que mesmo sendo fortes
para encarar os espaços como uma Dayse, nós estamos ali porque somos tão
inteligentes e capazes quanto os homens (e as pessoas brancas). É fundamental repetir
para nós mesmas e acreditar que sim, SOMOS FODAS.
¹ Comunicóloga e documentarista.
Preta revoltada, pesquisadora inquieta.
@oxenaira
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