DAS TRANSITIVIDADES DO AMOR OU A QUEM VOCÊ COMPLETA?: "Arroz" (2016)
Alerta: Spoiler!
"Arroz" (2016) é uma história em quadrinhos independente com roteiro e quadrinização de Ale Presser. O exemplar que tenho em mãos foi adquirido na CCXP 2016 e já é uma segunda edição, o que por si só mostra o sucesso da obra.
O conceito é muito simples e faz referencia àquela expressão que marcou a adolescência de muita gente, "arroz" era o vocativo daquele tipo de pessoa que "só acompanha", lembra? Nas palavras da autora:
"Arroz é aquele carboidrato sem graça que só está no prato sem fazer volume. Só fica bom se estiver devidamente acompanhado de um molho especial do bife ou do caldinho de feijão. O arroz precisa estar no PF para fazer sentido, mas se não estiver, beleza. Você tranquilamente pediria um prato só de batata frita, ou só um bife ou salada, ou até só de feijão. Mas nunca um só de arroz"
(PRESSER, 2016).
Expectativas
Eu sou do tipo que compra um livro pela capa, sim! É óbvio que a capa duma história que parece um shoujo me seduziria fácil. A primeira impressão que tive, foi a de que teria uma personagem negra importante na narrativa, o que já é um ponto de interesse. Também me cativou o fato de ser produzida por uma artista nacional e independente. Sim, apoio o quadrinho nacional, sobretudo feito por mulheres! Além desses pontos, me intrigou a descrição da obra na quarta capa: supus que a personagem negra seria comparada ao feijão sob o risco de ser uma herdeira ou índice da Boneca-de-Pixe do Ziraldo e sua "Turma do Pererê". Resolvi apostar na história de Ale Presser, apesar do temor. E valeu muito a pena!
Análise
Quando li "Arroz" eu vinha da leitura do famoso romance de formação "Duas iguais" (Record, 2004) da Cíntia Moscovich. Ele trata da relação afetivo-sexual entre duas garotas e o desenrolar até a fase adulta delas. Uma é uma garota branca e voltada para questões sociais durante a ditadura militar (Ana) e a outra uma garota também branca (Clara), mas inserida na tradição judaica, que confere uma experiência social e cultura específica no contexto geral do Brasil. Apesar das personalidades diferentes, as "duas iguais" se completam na acomodação das diferenças. Uma das camadas da obra transmite a sutil mensagem de que é através da compreensão das diferenças que se concretiza a igualdade.
E o que isso tem a ver com "Arroz"? A capa (que soa como um Spoiler) já mostra as duas personagens principais dá história: a narradora-personagem Melina e sua amiga Amanda. A linguagem corporal de Melina leva a identificarmos ela como uma pessoa tímida e introvertida, o oposto de Amanda. Elas são apenas diferentes, como todo mundo, aliás. E essa não hierarquização na diferença é, junto com a interseccionalidade (gênero, cultura e religiosidade), pontos de grande interesse para o Preta, Nerd & Burning Hell, como você bem sabe.
No capitulo 1 somos introduzidas à sua rotina, amigos e ao conceito do quadrinho. Cada pessoa, segundo Melina tem um traço na personalidade que faz dela marcante e necessária a seu modo, assim como cada elemento dum Prato Feito (PF). Ela se classifica como arroz porque não é capaz de enxergar seus próprios atributos estéticos e intectuais.
Isso muda quando ela conhece Amanda, uma garota inteligente, bonita e extrovertida. O oposto de Melina. No segundo capítulo, conhecemos Amanda, desde a sua personalidade até o caminho que levou à livraria onde Melina trabalhava. A descrição lenta da ação e todo o desenrolar do história a partir do encontro (assim como o tranço de Presser) lembra bastante as narrativas de mangá em que a protagonista tem um interesse amoroso que só se resolve no final. A amizade se fortalece no capítulo 4, de modo que a presença de Amanda na vida de Melina faz uma grande diferença na autoestima e, portanto, no cotidiano. Assim como os alimentos ao redor do arroz modificam seu sabor, a presença de Amanda leva Melina a uma compreensão positiva de si, de suas inseguranças, interesses e pretensões.
No quinto capítulo "Amor" já estamos certas de que a amizade pode se mostrar como interesse amoroso mútuo. Aí, então, temos a fala de Melina que tenta elaborar seus sentimentos por Amanda e nos surpreende com sua declaração.
Surpreende muito mais pela construção da narrativa do que por anseios prévios, aliás. A mudança positiva que Amanda operou na vida de sua amiga transmite uma mensagem forte sobre amizade entre mulheres e também tem o mérito de não cair no cliché da personagem negra que usa toda a sua habilidade para a personagem branca e negligência a própria vida. A descrição ao longo dos capítulos 3 e 4 evidência o quanto Amanda é uma personagem complexa é capaz de gerenciar sua própria vida.
Por um lado é bom ver a amizade entre mulheres ser descrita como uma experiência possível nas histórias quadrinhos, sobretudo porque elas têm nomes, histórias e falam sobre qualquer coisa além de homens. Por outro, a forma como o desenlace ocorre não quebra o estereótipo de bibliotecária que Melina performa e ainda naturaliza a heterossexualidade em vez de fazer dela uma questão. Isso é, quando Melina diz que é impossível ela se sentir completa na relação com Amanda, não está em jogo o afeto ou orientação sexual per se, mas a norma social, fato que quebra o ritmo tradicional que a narrativa seguia. Sem dúvidas podemos entender que essa quebra da "magia" é uma forma de narrar que segue a tradição dos romances de autoria feminina do século XIX com o avanço de não haver um final graficamente trágico. Tudo é racionalizado e o final feliz romântico não se consolida como a condução nos leva a desejar, o que desaloja aquele tipo de leitura "automática" que decodifica clichês. O desconforto inicial com o desfecho e final em aberto, salvo questões de narratividade, nos alerta sobre o quanto nos sentimos pós-modernas, mas sequer vivemos o contemporâneo subjetivamente. Apesar de ser marca da narrativa contemporânea, esse tipo de desenlace ainda nos desafia a ponto de dizer mais sobre nós mesmas do que imaginamos.
A obra é leve e divertida daquele tipo que arranca sorrisos involuntários, mas ao questionar o conceito de amor e o que de nós se revela a partir dos acompanhamentos/companhias, perguntas profundas vêm à tona naturalmente.
Conclusão
"Arroz" é uma obra muito divertida e rara. Ela introduz questões interessantes de forma leve, bem humorada e repleta daquelas encantadoras convenções de shojo mangá. É altamente recomendável para quem deseja uma leitura rápida, agradável e é fã de shoujo!
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