Como fabricar a consciência do futuro negro
All you gona gotta do is stand up/ Tudo o que você precisa fazer é permanecer de pé
And Fight Fire with fire/E combater fogo com fogo
(Tamar Kali - Fire with fire)
Por Anne Quiangala
*Este texto foi escrito em 2015, com o título "O que é consciência negra, hoje?", mas faço alguns acréscimos cinco anos depois, numa espécie de diálogo. Por esse motivo, uso itálico para diferenciar os trechos inseridos em novembro de 2020.
MEMÓRIAS, LOCAIS E QUEM VOCÊ É
Quando assisti ao vídeo em que Viola Davis disse que "memórias exigem atenção, porque memórias têm dentes", cada pergunta que me fizeram, cada pergunta que me deixou reticente ou que me tirou do lugar recebeu de mim uma prova de fogo nas primeiras versões deste texto. Essas memórias são dentadas que deixaram marcas dos nacos de carne que tiraram, e do quanto evisceraram, mas são marcas de sobrevivência num mundo injusto, cruel e inóspito para mulheres Negras. Estou destacando mulheres e Negras porque é a essas irmãs a quem me refiro neste texto.
Olhando para os meus vinte e cinco anos completos*, parece cada dia
mais real que ser Negra, pra mim, é tornar-me consciente de que a minha vida-trajetória ultrapassa o projeto que "as estruturas do mundo" à lá burning hell [1] tinham como prontas desde que nasci. Afinal, quando nós nascemos (negras), somos lançadas em um mundo que nos rejeita o tempo todo, das formas mais grotescas às mais sutis. O. Tempo. Inteiro. Não é fácil admitir isso porque é assustadoramente frustrante, triste e doloroso. É sentir que não pertence a nada, que não tem espaço, que não tem história. É sentir, num primeiro colapso, que não tem jeito. Que não haverá espaço nunca.
Então, por hora, ter consciência racial, como mulher Negra, é estar ciente de que há uma estrutura política que nos exclui dupla ou triplamente, delega funções e futuros antes de nascermos. Uma vez que as instituições afirmam uma conduta, estética ou agenda, elas desautorizam, silenciam e excluem outras. Essa rede cria uma desvantagem absurda entre brancos/brancas e mulheres Negras que vão desde associações sutis e indiferença, aos pressupostos que justificam o racismo diário. Diante desse panorama, não existe possibilidade de ignorar a verdade do colonialismo.
Apesar dessas memórias da plantação serem parte que constituem a nossa subjetividade, é importante ter em vista que "a função das pessoas negras é se humanizarem" (Grada Kilomba), e quando ela se refere à humanizar não é em oposição ao que entendemos como "animalização". Se humanizar é o processo de nos constituirmos como sujeitos, que analisam o mundo em sua perspectiva, e no processo de entender o presente como potência de elaboração do futuro, recriar a si mesma e o mundo no qual deseja viver. A consciência negra hoje é a reestruturação de si e o empoderamento coletivo, noutras palavras: o vislumbre do futuro negro.
"DESCENDE DE ESCRAVOS"
Confesso que, desde o primeiro dia de Novembro, eu me perguntava se teria que presenciar mais um "Canto das três raças" ou mais um teatro em que crianças negras despidas são chicoteadas por brancas. Embora meu ceticismo não tenha falhado, parte de mim ainda esperava que eu sairia ilesa esse ano... mas não. Em pleno dia da Consciência Negra, presenciei uma apresentação intitulada "Sítio do Pica Pau Amarelo". Aquela exaltação da perversidade, mais uma vez centralizou o racismo como pedagogia, não como questão-problema. Mais uma vez, as crianças pretas estavam confinadas em papéis em que era necessário performar um estereótipo negro "pra branco ver" ou um animal não humano. Mais uma vez, por pura negligência, crianças negras são lembradas do seu lugar dado desde os tempos coloniais. Foi espantoso ver que familiares dessas crianças estavam cheios de orgulho daquele "protagonismo" jamais permitido em outras épocas do ano. Curioso que Emília ou qualquer outra personagem "esperta" daquele universo ficcional, vive uma branquitude mais rígida que as montagens contemporâneas dos dramas shakeasperianos.
O que esse desserviço está ensinando para cada criança, sobre seu papel social? De que forma está moendo seus sonhos, triturando sua autoestima? Talvez elas não tenham "visto" nada de errado, mas elas, certamente, gravaram algumas "verdades" sobre o mundo. Elas foram expostas ao racismo promovido pela instituição porque foram submetidas à performance do que o projeto colonial quer que elas sejam na realidade. Imagino que muitas de nós vivemos situações similares em algum momento da infância, um momento em que a negritude era um lugar construído antes, nas aulas de Folclore. Esperam que uma criança se identifique com uma criança negra que não transmite valores positivos (Saci), ou uma "Boneca de Piche", o "Pelezinho", o "Cascão" (que nem preto é) e inumeráveis outros. Esperam que aquele garoto, só de short, touca e cachimbo, que pulou durante vários minutos, leia Monteiro Lobato e aprecie, porque é um clássico. Adultos brancos podem crer que são apenas nacionalistas, mas não, são racistas quando desejam que pessoas negras exaltem aquela negritude que mantém o mundo como está. Estes mesmos adultos, podem crer que tudo é questão de classe, mas queride, estou falando das pessoas negras em camadas médias.
Não quero associar o "ser Negra" a uma espécie de calvário, mas considerar que, para tornar-se Negra (a posição política no contexto em que vivemos) é preciso compreender a história da(s) violência(s) impostas ao nosso povo desde a escravização e que reverberam todos os dias, em diferentes modos de objetificação, espoliação, expropriação. Essas histórias, quando trazidas à consciência, são importantes faíscas no processo de buscar um lugar, uma voz e uma perspectiva própria. Saber disso é o primeiro passo para crer que "podemos sonhar" ("I can dream") desde que permaneçamos de pé. Mas a queda não é sua/nossa culpa, não é um processo individual.
Eu posso ter sido uma criança e adolescente deslocada nos universos em que vivi (preta demais pra ser nerd/ nerd demais pra ser garota) e é bem verdade que há inúmeros pontos de experiências em comum que minhas amigas Negras passaram e eu não, mas eu gosto de pensar nessas interpretações de diferenças como pontos cruciais para a minha compreensão do que é "borrar as fronteiras", do que é ter consciência negra hoje. Eu era como o que a Tamar Kali canta em "Pearl": "[...] uma pérola quase confinada", o que também significa que está quase lapidada, quase. Penso que era exatamente a imagem de uma adolescência em que não cabem as expectativas de negritude, os estereótipos, de garota Preta, mas que, ao mesmo tempo, materializava um modo de existir, fora das bordas, é verdade, mas que criaria o conceito de #nerdiandade para nomear e o Pretaenerd para amplificar as vozes de outras pessoas que estavam sendo abafadas.
Quando penso nas pessoas negras que me disseram que é errado me interessar pelo que me interesso, heavy metal, os quadrinhos, a cultura pop, sinto um alívio imenso ao notar que estava certa na minha convicção. Eu estava vendo um futuro, alicerçada numa intuição de que outras pretaenerd vieram antes de mim, e que eu precisaria redescobri-las.
Mas, o que é ter consciência preta e nerd hoje e quais são os processos pelos quais passamos até vislumbrarmos o futuro negro?
- É estar ciente das relações de dominação/resistência, numa perspectiva histórica, em que o significado da negritude é a busca por emancipação plena.
- É compreender o passado a partir da interpretação do presente (as necessidades e condições) com finalidade operativa.
- É estar comprometida com a descolonização ou cura, do self.
1. Consciência
Num mundo em que a violência simbólica é fato concreto, compreender as raízes políticas e econômicas em toda a sua complexidade é parte do processo de conscientização. Compreender o que é lugar de fala bem como a historicidade da negritude como identidade imposta é um passo muito importante. Muitas vezes, a militância na internet vem antes desta compreensão (o que é também é válido), mas se não for para um próximo passo, a superficialidade cria problemas coletivos como o desentendimento público, cancelamentos e polarizações desnecessárias.
Dito isso, podemos entender que há muitos exemplos eficazes de militâncias contemporâneas. Nelas, porém, não é raro encontrar complexidades que fazem emergir a urgência em nos curarmos individualmente, de repensarmos nossas micropolíticas, nossos graus de subalternidade. O desinteresse e a indiferença para com a esfera individual (não me refiro a individualista como prática de centralização do sujeito). Essa condição, transforma uma grande parcela da população negra, dependente do racismo, pois"se o racismo acabasse hoje ele deixaria muitos órfãos". Noutras palavras: ser negro/a é viver lutando contra o racismo e todas as formas de opressão, bem como ter consciência de que opressões são vetorizadas por pessoas. A semente do racismo é plantada em todo mundo sem exceção, porque somos produzidas socialmente, como bio-máquinas cada vez mais cibernéticas.
Quando alguém disser que a escravidão foi há muito tempo, mostre essa linha do tempo. Considerando que a (falsa) abolição nos Estados Unidos antecedeu a do Brasil, deixo pra você a conta. |
2. Olhar para o passado, construir o futuro
O Afrofuturismo como elaboração do passado e presente com a finalidade de por o sujeito negro no centro da reflexões sobre lacunas, fendas e possibilidades é uma prática de #nerdiandade de grande relevância. Diferente do que o termo central, "futurismo", possa indicar é uma perspectiva teórica e estética que tem em vista imaginar e analisar o real e o ficcional com uma ótica negra, com referencial, vernáculo, estruturas e valores enraizados na experiência negra. É por meio desta ficção da possibilidade do improvável (politicamente), do impossível (cientificamente) e do desejável (socialmente) que exercitamos de forma coletiva a viabilidade de um mundo sem prisões, um mundo no qual pessoas negras existem no futuro e com cidadania plena. Acrescento que, neste processo de se conscientizar, de se fortalecer e ir além do que a violência história oferece, é imprescindível ler Angela Davis.
3. Empoderamento
Embora a lógica do mundo capitalista seja um tipo de verdade autoritária que precede, atravessa e constitui a internet, precisamos entender que o individualismo, o destaque para exceções e o prêmio para histórias de superação de sujeitos negros são armadilhas potentes que nos destroem coletivamente todos os dias. De fato, acredito que as redes sociais tem sido importantes plataformas para que pessoas negras com os mais variados pontos de vista se posicionem, expressem e conscientizem umas as outras.
Porém, a armadilha que a escassez de recursor e as memórias da plantação apresentam, fazem do território virtual um campo minado para pessoas negras, a reencenação do contexto colonial. E enquanto prevalecer a crença performática de que a vitória individual das melhores respostas curtas e rudes, a maior difamação e o culto ao individuo resolve problemas sociais graves, estaremos longe do que é, de fato, empoderamento. Empoderar não é entender o "estilo" ou um "modo correto de ser negro"; empoderar é entender que precisamos individualmente aprender a amar, nos identificarmos com outras pessoas negras, focar no referencial negro e, a partir disso, empoderar o corpo social. Ninguém se empodera sozinha, por mais radical e descolado que o visual possa parecer. Visual é um detalhe da vida, não pode ser começo e fim.
Conclusão
Consciência negra é passar por isso tudo, ter consciência do sistema e manter a sanidade. Acrescento: consciência negra é o compromisso em se constituir como sujeito, compromisso com a construção de um futuro saudável para tendo em vista a liberdade plena para todo o corpo social. Consciência negra é buscar o que nos foi tirado, construir e se preparar para o futuro negro.
NOTA
[1] isto é, o mundo racista infernal que queima à nossa volta
REFERENCIAS
GIPSON, Grace D. Performance of Blackness/Whiteness and DuBois Double-Consciousness in the film Bamboozled. Disponivel em: <https://www.academia.edu/3674715/Performance_of_Blackness_Whiteness_and_DuBois_Double_Consciousness_in_the_film_Bamboozled>.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
SKUNK ANANSIE. I Can Dream. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=MJRIY9U4zhQ&index=33&list=PL6vaQoDclvw-6YlajU0K--9iWquAV4qr_>. Acesso em 20 nov. 15.
RIBEIRO, Stephanie. Tu Palmitas e nós preteridas. Disponível em: <almapreta.com/o-quilombo/tu-palmitas-e-nos-preteridas/>.
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