"Tua companheira inseparável": QUIMERA #1
Quimera #1
Roteiro e Cores:Cris PeterArte-finalista: Dika Araújo Letrista:Ariane Rauber Capa: Bilquis Evely Social Comics: novo fôlego ao quadrinho nacional
A maior dificuldade que a o mercado de quadrinhos independentes enfrenta é a distribuição. Quem produz ou consome quadrinhos independentes, no Brasil, sabe que é muito mais fácil encontrar quadrinhos estrangeiros nas bancas e livrarias que os nacionais, fato que sempre afastou o público médio do nosso mercado. Em tempos de webcomics, a Social Comics trouxe uma solução interessante e adequada aos nossos tempos e bolsos: o streaming de quadrinhos. A maioria das fãs de quadrinhos conhece serviços sob demanda como Spotfy, Netflix e HBO-GO que possibilitam consumir produtos/serviços de qualidade por um preço inferior ao dos meios convencionais. Afora isso, tais empresas possibilitam que a consumidora escolha "o que" e "quando" deseja assistir/ouvir.
Se, por um lado a Social Comics democratizou o acesso aos quadrinhos nacionais e, principalmente, às continuidades, por outro, ao convidar a artista Ana Recalde para comandar um selo produzido exclusivamente por mulheres - Pagu Comics - cobriu outra lacuna que tem sido denunciada há tempos. Sim, mulheres produzem e consomem quadrinhos, o que existe é um esforço de apagamento articulado com a boa e velha broderagem. Não é à toa que as Lady's Comics afirmam que "HQ não é só pro seu namorado". Em 2016, as iniciativas de coletivos, artistas, críticas e pesquisadoras brasileiras (Revista Risca, MnQ, Encontro Lady's Comics, Valéria Fernandes) se tornaram visíveis com a criação do selo Pagu Comics que, assim como Patrícia Galvão:
Um ponto importantíssimo da curadoria da Ana Recalde (Beladona) é sua agenda política. As equipes criativas, bem como as personagens, são compostas por mulheres que, além de nomes e conversas entre si sobre um tema que não seja homem, representam diferentes experiências, perspectivas e identidades da melhor forma. Estética, divertida e combativa.
Por todos esses motivos, QUIMERA #1 gerou entusiasmo até o lançamento, em 8 de janeiro de 2017!
Muito além da "metrópole" dos quadrinhos
Anna em primeiro plano e Nicole em segundo.
No terceiro, aquela que vocês conhecerão: a companheira inseparável
Uma das primeiras sensações que a capa de Bilquis Evely (Mulher Maravilha) foi a de uma descolonização que os quadrinhos nacionais têm refletido cada vez mais. Se antes o que mais chegava a maioria de nós eram quadrinhos de rapazes que adorariam ilustrar no mainstream (com todo um ranço estético e temático dos super-heróis), hoje, observamos cada vez mais ilustrações com traços autorais. Óbvio que as artes visuais são compostas por uma teia de influencia, o que é bem diferente de cópia. A capa de Quimera conquista de cara por trazer à luz essa ambivalência e fazer pensar sobre novos rumos para o grande guarda-chuvas que chamamos de "quadrinho nacional". Além disso, a capa aponta para uma história original que não tem em vista apenas injetar uma suposta "brasilidade" a tramas estadunidenses, sabe?
E por falar em trama, Quimera é protagonizada por Anna e Nicole, duas jovens mulheres cujas vidas são completamente diferentes. A partir dum assalto o destino das duas se une de uma maneira completamente quimérica - surreal, sombria e delirante. Certamente Cris Peter é conhecida por seus trabalhos como colorista no mercado estadunidense (Marvel, DC) e, portanto, sua paleta e modus operandi já tem sido destrinchados neste caminho, assim, me interesso em focar a narrativa.
"Acostuma-te à lama que te espera!" (Augusto dos Anjos)
Logo de início somos introduzidas ao cotidiano solitário de Anna e Nicole, que se opõem de forma familiar a nós, desde o básico (luz/trevas) até as condições materiais, que, num primeiro momento, parecem moldar suas personalidades. Digo "em primeiro momento" para enfatizar que esta primeira edição segue (e muito bem) o modelo de equilibrar ação e explicação, deixando dúvidas que funcionam como múltiplos ganchos para nos atrair para a próxima edição.
Essa primeira página constrói em apenas dois requadros o paralelo de temporalidade (a forma de usar o tempo) de cada garota. A oposição é tão polarizada que gera curiosidade sobre o background das personagem: o que levou cada uma até ali? Quais as suas motivações? O abismo sócio-cultural levará a a história a qual ponto?
Como o lugar não é especificado neste início, uma estratégia adorável para inserir a leitora é a introdução de acontecimentos de outra revista da Pagu Comics, Empoderadas. Além de quebrar o ar de desconhecido, com essa referência, constrói a ligação (e explicação) sem um deus ex machina, aquele tipo de aparição aleatória. Essa página já dá a tônica das outras 25: objetividade e ótima comunicação das ideias. O layout confere um ritmo de leitura agradável e dinâmico, além de conduzir o olhar de forma harmônica por cada detalhe.
Apesar de, num primeiro momento eu me perguntar sobre as intenções da história ao fazer uso de convenções de raça e classe juntas, com o passar das páginas essa tensão, aparentemente óbvia, vai se complexificando até a interrogação final. Com isso, não estou afirmando que a tensão tende a se resolver, mas que há nesta edição um visível interesse em embasar para os próximos números discussões importantes sobre performance de gênero/raça/classe (há duas situações "donzela em perigo" de Anna).
Além de discutir o que é gaslighting, a narrativa nos dá uma resposta excelente!
Além do deslocamento necessário sobre o que é ser uma protagonista nos quadrinhos (no geral padrões de beleza eurocêntrica), a história traz comentários retóricos sobre gaslighting [manipulação psicológica], que precisam ser realmente desnaturalizados. Quando Nicole responde à altura, torna evidente a violência que é ignorada na maioria das vezes pela sua "sutileza". Apesar disso, Nicole reage como personagens negras costumam reagir na cultura de massa, então, neste sentido, a "fragilidade" de Anna fica intacta. É claro que a sensibilidade e aspectos contraditórios e inconsistentes que compõem a nossa humanidade se apresentam na figura de Nicole, mas estão equilibrados por pouco, na balança de força, altivez e reatividade.
Fato que a relação entre Anna e Nicole não se pauta no estranhamento e que se constrói uma forte relação de amizade desde o primeiro instante. A solidariedade entre elas é uma imagem positiva na representação e tende a transformar a solidão e descrença de ambas, numa força descomunal de aproximação e aderência. Neste sentido, a história fala sobre empatia entre mulheres e reapresenta o conceito de sororidade num nível cotidiano e real. Essa primeira edição me fez pensar muito em como faltam imagens positivas de relação entre mulheres que fuja do padrão "das inimiga" e, também, na beleza de corpos reais como o meu ou o seu, leitora.
Vale muito a pena ler com calma, atenta aos detalhes da arte da Dika Araújo (já falamos dela aqui). O traço cartunesco junto à riqueza de detalhes, equilibram o "maravilhoso" (o surreal perfeitamente explicado na história) com o tom jocoso de rir dos estereótipos como a vizinha alcoviteira ou o homem imaturo que se enxerga como líder!
Conclusão
Uma das coisas que mais me encantou em Quimera foi a representação de mulheres abrir possibilidades de discussão para as próximas edições. Construindo a narrativa do convencional até uma complexidade interessante, o primeiro número trouxe uma abordagem envolvente sincronizada com a bela arte da Dika Araújo. Aguardo ansiosamente a próxima edição para ver a engrenagem, de fato, disparar.
E você, já leu?
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