CARA GENTE BRANCA - Humor Negro e Verdades
Samantha White é a protagonista melhor desenvolvida na série |
Diferente de Hidden Figures (Estrelas além do tempo) a tradução do título Dear White People (série original Netflix) para Cara Gente Branca me deu uma agonia indescritível. Primeiro porque a ironia é o ponto central da série e traduzir Dear como Cara esvazia o sentido dentro do contexto. Caberia uma licença poética ou mesmo o título original, mas por que não? Segundo porque faz parecer um direcionamento às pessoas brancas.
Fiquei pensando em todos os vocativos de brancos renovados antirracistas e simpáticos à causa quando lhes convém para se referirem a nós: queridíssima, flor, amada... Seria uma lista infinita. Imagine se o título da série fosse "Flor gente branca"? "Amada gente branca"? "Queridíssima gente branca"? Viu o nível de incômodo?
Pois é. A escolha da Netflix pela tradução literal é uma estratégia discursiva leve, mas que, combinada ao excessivo destaque de séries como 13 Reasons Why, Stranger Things e Santa Clara Diet ou filmes como o da vida do YouTuber conservador, preconceituoso, misógino e gordofobico, evidenciam o compromisso com camadas hegemônicas da sociedade. Ora, e por que seria diferente? A Netflix é produtora e produto duma sociedade racista com ânsia por catalogação. Até aí, nada de novo, mas que Dear White People foi um investimento certeiro, isso foi.
VISÃO GERAL
Achei a série eficaz no que se propôs a discutir e considerando possíveis limitações que veículos mainstream como a Netflix possam impor ao longo de negociações. O figurino mistura estereótipo, fashionismo e afropunk (pra nós o tombamento) de forma a construir um background estético, considerando que comédias não dão espaço para individuação.
Apesar disso, acredito que haja questões referentes à maquiagem, a serem questionadas, principalmente de Sam White (!). Há momentos em que é possível perceber a diferença do tom da base para o tom da pele para parecer ainda "mais clara". Ora, isso é problemático. Tanto porque existem pessoas negras de diversas tonalidades, quanto porque existem discussões seríssimas sobre poucas opções de maquiagem para pele negra, técnicas de embranquecimento, além da famosa "cara de rica".
Apesar disso, a junção de temas e situações reconhecíveis faz do seriado um ponto alto pra discussões óbvias relacionadas ao racismo (violência policial, violência epistemológica, negação, desumanização) e outras menos conhecidas como as fragilidades e subjetividade dos indivíduos que compõem os movimentos negros no âmbito universitário.
Eu a classificaria como humor negro muito mais pelo incomodo que gerou (pelos berros e pelo silêncio) que pela trama em si, porque houve deslizes demais entre o esquema direcionado aos negros e explicações bem didáticas para brancos "mea culpa".
Antes de qualquer olhadela no filme ou mesmo na série, o trailer de Dear White people causou frisson errado nos EUA. Os estadunidenses não apenas boicotaram a produção como fizeram questão que ela fosse tirada do ar. Veja que não permitir que exista é uma mensagem enfática. Tudo isso significa que as camadas de significação foram potentes o suficiente para incomodar racistas, o que significa que, no fim das contas, há algo certo.
Antes de assistir à série muitos influenciadores digitais já tinham opiniões sólidas sobre a série e sobre o quanto era "racista reversa". Ora, qualquer pessoa com noção básica de lógica é capaz de compreender que relações de poder são sempre antagonismo social que confere poder de opressão a um grupo e retira tudo de outro, inclusive a subjetividade. É simplesmente por isso que: 1) negros não são racistas (nem quando reproduzem discursos racistas, nem quando agem de forma reativa) e 2) não é possível analisar corretamente narrativas e experiências de pessoas negras ignorando o racismo como uma constante em nossas vidas.
A série é muito potente porque descreve experiências as quais, sendo uma mulher negra, jovem e escolarizada, possibilitaram que eu me reconhecesse. A descrição dos grupos mostra que não existe um movimento negro univoco e evidencia a disputa discursiva, os objetivos e as múltiplas análises (não temos que concordar sempre e é tudo bem). Na maior parte do tempo, as disputas e interesses são honestos e refletem interpretações diversas, saudáveis e marcadas por variantes de classe, sexualidade, pigmentação e traços diacríticos negros. Neste sentido, há muito do real.
Isso tudo são formas de tentar se conectar com o público negro sem delongas, afinal vivemos isso. Sendo assim, é claro que a primeira ação de indivíduos brancos é inverter o discurso e insistir na negação. Quando o tópico “racismo” é levantado como discussão (e não mera descrição) há um incomodo natural em quem é beneficiado com essa opressão. “Não sou racista não” é uma reação previsível assim como a tentativa de manter o tema em silêncio. Acredito que o burburinho inicial é apenas uma pequena onda de hype, apenas pra demostrar que está interado do que está na moda e fazer textos inteiros sobre um branco secundário; já o silêncio é o desprezo real que o sujeito político branco precisa manter para que a realidade se mantenha a mesma.
Eu diria que para Dear White People ser classificada como Humor Negro deveria investir mais no humor, sem cair tão profundamente no quesito drama que séries ótimas como Insecure caem. Não estou dizendo que é errado dramatizar, mas que a realidade já é violenta e traumatizante, precisamos ter alternativas mais leves e sair do ciclo do horror (canções fofinhas de amor que nem da Lianne La Havas são válidas!). Podemos questionar a realidade social através do exagero, da ironia e do sarcasmo, como nos primeiros 5 episódios. Podemos, aliás, esperar que a segunda temporada foque numa complexidade mais comum é menos explorada que é a de Joelle.
Joelle |
CONTRADIÇÃO, DIFAMAÇÃO, SAM, COCO E REGGIE
Dear White people trouxe ao centro discussões e fragilidades muito caras às pessoas negras e aos movimentos. Com isso, opiniões diversas brotaram no meu feed, desde ativistas que amaram a série até ativistas que odiaram e não discordo de nenhuma delas.
Entendo que expor as fragilidades é uma escolha arriscada, sobretudo porque pode parecer que estamos ridicularizando a nós mesmas. Por outro lado, é essencial que no momento em que estamos sejamos conscientes de que não se pode ignorar problemas reais. Scandal é uma série incrível e terrível em vários aspectos e, tal como as estudantes de Winchester, eu me deleito em assistir sem nenhuma culpa secreta. Dear White People foi inteligente e certeira na crítica, a meu ver, porque identifica o problema e questiona sem trabalhar contra a ShondaLand. Pode não parecer, mas na militância, discordar é muito importante (até para nós nos repensarmos) desde que haja honestidade intelectual e transparência entre a motivação e o objetivo dá crítica.
Também foi genial a crítica ao Tarantino, porque não hierarquizou Shonda Rhimes e Tarantino, apenas deu nome ao desconforto do público. Em relação ao Quentin Tarantino, fazer filmes com trilha sonora negra e, sobretudo o revanchista Django: Livre, não faz dele autorizado a usar "a palavra com N" mais de duzentas vezes. Rir da Olívia Pope e dizer Negro não é um ato no vácuo, existe uma história de racismo e segregassão que faz da atitude professada por um branco mais do que ofensiva. Além do mais, Tarantino em sua "trilogia da vingança" revela mais de sua fantasia branca e masculinista (narcisista) do que representa uma perspectiva igualitária. Não é mais tempo de violência contra violência.
Coco |
E qual o objetivo de desqualificarem tanto as atitudes de Sam? Por que ela tem que ser inferiorizada para que se goste mais de Coco?
Entendo que essa oposição, muito comum no mundo real, foi escondida nas militâncias pelo medo dá separação, mas atualmente precisa ser discutida com seriedade. Um corpo como o de Sam materializa um antagonismo social que dissocia partes do que ela é, sempre negando sua individualidade como um todo. Quem pode julgar os efeitos do racismo na subjetividade de Sam?
Uma série de comédia dificilmente tem espaço para enfatizar o background de personagens, a ideia é que umas poucas facetas deem conta de descrever situações. Apesar disso, podemos deduzir que Sam provavelmente não vem de uma convivência com pessoas negras e que deve ter sempre sido considerada negra quando convinha ao interlocutor considera-la assim, ao passo que "negra, porém inteligente". Essa despersonalização é um aspecto importante dá subjetividade de uma pessoa "negra de pele clara" que não pode ser reduzida. É claro que sua vontade de representar a voz negra é um esforço por referendar sua condição de negra, mas também considero uma forma de usar sua inserção como ativismo.
Gabe, o boy de Samantha |
Muitas pessoas podem considerar minha visão muito leve, assim como a série em si, mas o que quero enfatizar é que eu acredito que o racismo torna a experiência de indivíduos racializados mais complexa que estamos dispostas a admitir. Não se pode analisar nada ignorando o aspecto raça, sendo assim, eu diria que Coco e Sam são socialmente lidas de maneiras diferentes, e, portanto, reagem de formas diferentes. Aliás, é importante frisar que a população negra é heterogênea.
Em relação à Sam, ela não é confundida com uma pessoa branca, então ela é negra, sofre racismo e ponto. O fenômeno subjetivo dela que as pessoas tendem a simplificar é que, provavelmente, ela sempre teve maior aceitação por ter pele menos pigmentada, mas isso tem limite. A necessidade de afirmação dela é muito grande porque seu corpo é uma materialidade de identidades politicas conflitantes. Algumas pessoas viram nela um ar de pedantismo que eu interpretei de outra forma: é muito evidente que a pigmentocracia e diferenças fenotípicas possibilitam acessos diferentes e todas as pessoas racializadas acabam se tornando também fruto disso. Dizer que seu relacionamento com Gabe é simplesmente síndrome de estocolmo ignora a complexidade de sua história e individualidade. Ignora inclusive a possibilidade de seu pai ser branco e ela estar, de certa forma, repetindo a história. É um murro no estômago de muita gente o relacionamento de Sam e Gabe porque não se discute de forma séria relacionamentos inter-raciais. Nem o por que menos óbvio de que a maior parte das ativistas se relacionarem com pessoas brancas, por mais conscientes que sejam.
Contrapor narrativamente Sam a Coco é uma forma de demonstrar a especificidade que o gênero traz à experiência negra. A rivalidade e o isolamento dialogam bastante com uma tendência a se exigir do sujeito negro que esteja pronto tanto como militante quanto como porta-voz duma raça. Nunca a subjetividade, a trivialidade e as contradições humanas como desejo de ser aceita, direito à futilidade e necessidade de amar e ser amada.
No caso de Coco, ela é inegavelmente negra e as pessoas não vão negar ou questionar a sua negritude, mas sua necessidade de ser uma mulher negra bem sucedida evidencia o quanto o racismo permeia sua vida de forma diferente de Sam. Acho bastante contraproducente elencar quem sofre mais, mas não se pode ignorar que ter pele menos pigmentada possibilita à Sam ter um discurso mais radical e ainda assim ser ouvida - diferente de Coco.
O questionamento da necessidade de Coco se aliar a um homem evidencia o quanto sexismo é salutar, o quanto racismo e sexismo atuam juntos como violência específica. Apesar disso tudo, e de eu questionar em vários aspectos, ela é uma personagem brilhante, determinada e em busca de autorrealização. É, em certa medida, vetor de mensagem meritrocrática? Sim, mas todas notamos que é uma série estadunidense, certo? E pensa no isolamento, nos insultos, na trajetória de desestímulo e de exceção? Ela é uma sobrevivente e merece respeito, também por isso.
Reggie é, dentre muitas coisas, um dos vértices do triângulo amoroso Sam-Gabe-Reggie. Ele esquematiza um tipo de ativista negro mega inteligente (e mega anacrônico), mas marcado por atitudes de auto-boicote profissional e afetivo, em resposta as pressões ao longo da vida. Foi muito positiva a representação dele tanto pela descrição de sua sensibilidade, quanto de como situações-limite fazem parte do cotidiano de jovens negros, mesmo escolarizados, mesmo classe-média.
Reggie |
Assim como as demais pessoas, ele não está no vácuo, é um homem heterossexual e lido como tal. Sua atitude tem sido lida pelo público como "territorialista", insinuando que a do John Mayer Gabe não é - olha a falsa simetria! A diferença é que as violências são mais ou menos explícitas, mais ou menos naturalizadas. Vendo que Sam não está interessada afetivamente por ele, sua condição de friendzone autoimposta é seu maior erro, inclusive por ser interesse amoroso de Joelle. Assim como o relacionamento inter-racial precisa ser discutido, questões relacionadas ao preterimento de mulheres negras mais pigmentadas, inclusive por ativistas, é imprescindível.
CONCLUSÃO
Em Dear White People, temas como a heterogeneidade, a solidariedade e a empatia são aspectos levados à sério. A representação de diversas experiências evidenciam que o racismo estrutura a sociedade sem ignorar o impacto do gênero e de aspectos raciais. Apesar de parecer ofensivo, a meu ver, a exposição de fragilidades nada mais é que uma abertura para a tão necessária quebra do silêncio e transformação da linguagem em ação - como disse Audre Lorde. Dear White People não é para brancos, embora seja importante que eles também assistam - e seu grande mérito é que reforça o quanto manter silêncio sobre as opressões não mantém ninguém a salvo, exceto o opressor.
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