Entrevista: Dear White People e a quebra do silêncio

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A vocalização de Sam simboliza o que Audre Lorde escreveu num dos ensaios: "É preciso transformar o silêncio em linguagem e ação" 

Entrevista: Dear White People e a quebra do silêncio

Porque isso não é Orange is The New Black...


Depois de tanto alarde sobre o cancelamento de contas da Netflix nos Estados Unidos devido à prévia de Dear White People (Cara Gente Branca) e do silêncio sobre a série em si, muitos portais liderados por feministas e ativistas autônimas passaram a questionar o por que. Com o sucesso imediato de 13 Reasons Why, nada mais natural que o questionamento em relação ao silêncio de Cara gente Branca, e não porque desmerecemos a primeira, mas simplesmente pela óbvia diferença na divulgação e comentários da crítica especializada.

Isso é grave porque o silêncio sobre violências e, especificamente, sobre o racismo é histórico. Vale bastante a pena refletir sobre a importância de quebrar o silêncio e de denunciar as injustiças, afinal apenas opressores se beneficiam com o "esquecimento". Engajada em não compactuar com isso, a Gabriela Orsini do Garotas Geeks entrevistou a mim (Anne Caroline Quiangala) e à Lívia Martins do AfriCásper e escreveu uma matéria rara, dada a honestidade, e muito importante para a vocalização do tema publicada em 6 de maio de 2017 no Garotas Geek. Abaixo a entrevista na íntegra!

Garotas Geeks: Antes de mais nada, o que você achou da série? No quesito elenco, figurino, cenário...? E no quesito tema?

Anne Quiangala: Achei a série eficaz no que se propôs a discutir e considerando possíveis limitações que veículos mainstream como a Netflix possam impor ao longo de negociações. No quesito estética: figurino, cenário e enquadramentos eu descreveria como um deleite. Apesar disso acredito que haja questões referentes à maquiagem, principalmente de Sam. Há momentos em que é possível perceber a diferença do tom da base para o da pele e isso é problemático. Apesar disso, no mais, a junção de temas e situações reconhecíveis faz do seriado um ponto alto pra discussões óbvias relacionadas ao racismo (violência policial, violência epistemológica, negação, desumanização) e outras menos conhecidas como as fragilidades e subjetividade dos movimentos negros.

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A heterogeneidade da população negra foi tratada de forma realista e isso foi um dos aspectos mais importantes


Garotas Geeks: Por que você acha que os sites e blogs de entretenimento estão em silêncio e não comentaram nada sobre a série?


AQ - Um motivo bem evidente é o racismo e outro, subsidiário dele, é a propaganda avassaladora de 13 Reasons Why. Enquanto a Netflix investe em divulgar séries e documentários biográficos nem tão interessantes assim, em pontos de ônibus, outdoor e propagandas no YouTube, o que é mais relevante como Crazyhead, Luke Cage e Dear White People são mais divulgadas no boca a boca e tem recepções bastante negativas. Falar sobre racismo incomoda, sobretudo quem se beneficia dele, então nada mais natural que mantenham ignorando a realidade.


Portais grandes que tratam de cultura pop tendem a replicar visões de mundo conservadoras através da falsa simetria e de critérios baseados numa experiência hegemônica, assim, toda a análise e critica recai às/os interessadas/os.



A relação entre Sam e Jo vai além do Teste Bechdell

Garotas Geeks: Desde que foi anunciada a série os comentários negativos começaram mas agora não existe nenhum comentário. Por que você acha que aconteceu essa mudança na reação das pessoas?

AQ - O trailer dá série é muito potente e, em certa medida, tenta se conectar com o público negro sem delongas. Sendo assim, é claro que a primeira ação de indivíduos brancos é inverter o discurso e insistir na negação. Quando o tópico “racismo” é levantado como discussão (e não mera descrição) há um incomodo natural em quem é beneficiado com essa opressão. “Não sou racista não” é uma reação previsível assim como a tentativa de manter o tema em silêncio. Acredito que o burburinho inicial é apenas uma onda de hype, para demostrar (e parecer) inteirado do que está na moda, já o silêncio é o desprezo real que o sujeito político branco precisa manter para que a realidade se mantenha a mesma.



Garotas Geeks: Como você compara a repercussão de 13 Reasons Why e Dear White People? As duas tratam de assuntos muito urgentes e necessários, mas tiveram respostas diferentes do público.

AQ - 13 Reasons Why apareceu como sugestão já que eu assisti X, Y e Z na Netflix. Dear White People, por outro lado, eu procurei. O que os algoritmos vêem de semelhante entre mim e 13 Reasons Why? Sendo otimista, podemos ver um objetivo claro de massificação. Há primeiro uma diferença no enfoque, na divulgação. Santa Clara Diet e Stranger Things, quando estrearam, praticamente não havia como não assistir o trailer, não é? Mas focando em 13 Reasons, acredito que é um sucesso pela clara ode ao narcisismo da branquitude. A série se constrói a partir de um discurso racializado, que finge  “diversidade” atribuindo as minorias sociais atitudes negativas, ao passo que a vítima é uma garota branca como costumamos ver, ao menos, desde o século XIX. Fingir indiretamente que bullying e racismo estão no mesmo patamar, faz com que a maioria se identifique, ao passo que denunciar o racismo e ridicularizar o sujeito que se beneficia com ele (como faz Dear White People) já é incômodo.
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Há várias referências na série que dificilmente fazem sentido para pessoas não-negras

Garotas Geeks: O que você acha sobre os "white saviors"?


AQ - Frantz Fanon disse em Peles Negras, Máscaras Brancas que o sujeito negro e o sujeito branco não existem em si; ambos são uma relação hierarquizada. A construção discursiva e psicológica do Branco (falo aqui dá identidade política, não dá tia, avó ou amiga de alguém) é cheia de inversões porque o ego humano não suporta associar a si mesmo valores negativos. No caso, o sujeito branco roubou, extorquiu e violentou populações inteiras, mas para manter um autovalor, o discurso tem que ser invertido: eles roubaram, extorquiram e violentaram, afinal, comiam as mangas, tomavam o leite e sabotavam os engenhos. O “branco salvador”, portanto, é uma fantasia do sujeito branco que tenta transformar o problema político e econômico em juízo de valor, em moralidade. A necessidade de protagonizar tudo, ignorando sua função no processo, mostra uma tendência narcisista ancorada nesta experiência histórica.


Garotas Geeks: Em determinado momento da série vemos algo como negros sofrendo preconceito de outros negros, como a Coco, ou a Sam que eles falam que tem a pele mais clara e sofre menos preconceito. Como você analisa isso?

AQ - Eu acredito que o racismo torna a experiência de indivíduos racializados mais complexa. Não se pode analisar nada ignorando o aspecto raça, sendo assim, não diria que Coco e Sam sofrem preconceito entre negros e sim que são lidas de maneiras diferentes, afinal, a população negra é heterogênea. Em relação à Sam, ela não é confundida com uma pessoa branca, então ela é negra, sofre racismo etc. O fenômeno subjetivo dela que as pessoas tendem a simplificar é que, provavelmente, ela sempre teve maior aceitação por ter pele menos pigmentada, mas isso tem limite. A necessidade de afirmação dela é muito grande porque seu corpo é uma materialidade de identidades politicas conflitantes. Algumas pessoas viram nela um ar de pedantismo que eu interpretei de outra forma: é muito evidente que a pigmentocracia e fenotípica possibilita acessos diferentes e todas as pessoas são fruto disso. Dizer que seu relacionamento com Gabe é unica e exclusivamente síndrome de estocolmo ignora a complexidade de sua história é individualidade. Já no caso de Coco, ela é inegavelmente negra e as pessoas não vão negar ou questionar a sua negritude, mas sua necessidade de ser uma mulher negra bem-sucedida evidencia o quanto o racismo permeia sua vida de forma diferente de Sam. Acho bastante contraproducente elencar quem sofre mais, mas não se pode ignorar que ter pele menos pigmentada possibilita à Sam ser mais ouvida que Coco.


Garotas Geeks: Outra série que também foi muito criticada foi Luke Cage, que também tem a grande maioria dos personagens negros. O que você acha da reclamação contra essa série?

AQ - Luke Cage foi muito mal interpretada pelo público e ignorada pela mídia. Engraçado que a série é infinitamente superior aos quadrinhos, sobretudo no que se refere à Misty Knight. Dar voz as perspectivas historicamente silenciadas causa incomodo na maioria, por isso sempre há espaço prum Eminem em trilhas sonoras e quase nunca pra uma Tamar-Kali. Guardadas as proporções, o mesmo aconteceu com Jéssica Jones. É claro que ambas as séries possuem problemas narrativos que não ignoramos, mas Demolidor e Punho de Ferro foram aclamadas simplesmente por engrossarem o coro do discurso hegemônico sexista e racista.

Garotas Geeks: Como podemos comparar a ficção com a vida real?

AQ - No meu caso, entendo o Feminismo Negro como um método crítico então não vejo como possível separar o real do ficcional. Há a questão platônica sobre o real ser diferente do que é imaginado, e posteriormente questões do olhar, realistas e contemporâneas, sobre a arte “ser obrigada a” ou “não ser obrigada a” refletir o real. A arte não está dissociada dá realidade social, então ela reflete visões de mundo, consciente ou inconscientemente. Há sempre uma conexão dá ficção com o real, prova disso é a ficção científica refletir os problemas atuais e manter-se relevante com passar dos anos. Ignorar a conexão entre o real e o ficcional é um engajamento político comprometido em manter as desigualdades.

Garotas Geeks:
Tem algum comentário que gostaria de fazer? Algum recado que gostaria de deixar para os leitores?

AQ -Eu quero enfatizar o quanto o jargão “lugar de fala” tem sido mal utilizado. Tanto atitudes “deixa disso” quanto atitudes “prefiro não comentar” prejudicam o debate racial. É preciso que influenciadoras/es se comprometam a comentar e analisar séries como The Get Down, Luke Cage e Dear White People e parar de deixar tudo na responsabilidade de pessoas negras. Querendo ou não, chamar pessoas negras para Guest Post, pra explicar e para falar de racismo é tanto tokenizar quanto se isentar dá responsabilidade de pesquisar, ler e tentar entender qual o seu papel no mundo racista. Perguntar-se sempre o que é ser branco, ou como personagem X é construído na narrativa como branco é um bom começo. Por que há uma lacuna no entendimento de séries, poesias e ensaios produzidos por negros? É preciso enfatizar que racismo não é um problema negro, racismo é uma problemática branca. Por isso é necessário que pessoas brancas busquem refletir sobre suas atitudes, pensamentos e estratégias em vez de aguardar por interpelações e assumir a mea culpa.


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