O que aconteceu à Miss Nina Simone?
Por Anne Caroline Quiangala e Edileuza Penha de Souza
O documentário What Happened, Miss Simone? (Estados Unidos, 101min, 2015) dirigido e produzido por Liz Garbus, com produção executiva e participação da filha de Simone (Lisa Simone Kelly) e coproduzido pela empresa de streaming Netflix associada à Radical Media, foi um dos dois documentários da Netflix indicados para a Academy Award na categoria 'melhor documentário.'
Em termos audiovisuais, 2015 recebeu o título de "ano das mulheres" por parte da audiência devido à divulgação de filmes e seriados televisivos focando uma representação feminina mais plural. O cânone cinematográfico de franquias como Star Wars bem como de Mad Max, além dos longas-metragens As Sufragistas (Dir. Sarah Gavron), Big Eyes (Dir. Tim Burton) e A que horas ela volta? (Dir. Anna Muylaert) focaram a narrativa em mulheres fortes de forma sensível e politicamente compromissadas, respondendo ao apelo do público. Na categoria seriados, destacaram-se, principalmente, Scandal e How to get away with murder e Grey's Anatomy produzidos pela Shonda Rhimes (chamados de Shondaland) e veiculados pela rede televisiva ABC e o streaming Netflix que, dentre as suas séries, a que mais se destacou, sem dúvidas foi Marvel: Jessica Jones.
Fazendo o recorte de raça e gênero, teremos, desde 2014, o imprescindível documentário Libertem Angela Davis, dirigido por Shola Lynch, no ano seguinte, a aclamada produção da diretora Ava DuVernay, Selma: uma luta por igualdade, American Masters: Althea (dir. Rex Miller) e a bela biografia da blueswoman Bessie Smith: Bessie (2015), estrelado por Queen Latifah e dirigido por Dee Rees. Salvo os julgamentos que qualquer obra submetida à audiência possui, os filmes e séries citados acima construíram um contexto de expectativas positivas sobre o documentário What happened, miss Nina Simone?, que foram frustradas pelo engajamento político colonizador no modo de Garbus representar Nina Simone.
What Happened, Miss Simone? pretendeu dar voz à história da cantora estadunidense Nina Simone por ela mesma. Sendo a diretora uma mulher branca, sua própria condição lança um desafio inicial: como não transformar o discurso sobre o Outro numa "peça concreta" de silenciamento? (Kilomba, 2016). Tomando a metáfora da máscara usada pelos escravizados que os impedia tanto de comer o que plantavam/colhiam quanto de falar, Grada Kilomba (2016) questiona: "O que o sujeito Negro poderia dizer se a sua boca não estivesse tampada? E o que é que o sujeito branco teria que ouvir?". Embora possamos pensar na obsolescência da máscara como peça, podemos considerar os mecanismos simbólicos que impedem que o sujeito negro fale por si mesmo e denuncie sua condição.
Quanto ao filme, apesar de ser composto por uma fortuna de materiais pessoais como: fotos, diários, entrevistas em áudio e vídeos que trazem Simone ao centro de sua própria história, é notável que sua complexidade identitária, bem como certos pontos de vista (a família e as amigas de Nina, por exemplo) e questionamentos acerca da biografia que explicariam relações de causa/consequência, resultam em deixar a protagonista fora do campo de enquadramento. Noutras palavras, a voz de Nina Simone não expressa o que o sujeito branco "teria que ouvir", mas o que eles se sentem confortáveis/querem ouvir. Evidentemente, quando me refiro à sujeito branco, refiro-me a uma posição política, a um modo de interpretar o mundo que está interessado em negar o passado colonial e de reforçar (sutilmente) a naturalização do discurso racista.
Segundo Tanya Steele (2015), as escolhas na composição da obra privilegiaram a narrativa do abuso sob a ótica do ex-marido abusador que, nas palavras de Simone, “apontou uma arma na minha cabeça, ameaçou-me de morte e depois me estuprou” (Steele, 2015). A maioria dos trechos dos diários - aos quais temos acesso simultaneamente via grafia e voz - são desabafos em que a cantora descreve as agressões, ora culpando-se, ora afirmando prazer naquele sofrimento. Esses trechos não são problematizados em nenhum momento dentro da narrativa, o que acaba fortalecendo o imaginário colonial de que o corpo negro, em especial, da mulher Negra, é uma “força indomável da natureza” e de que, portanto, é natural que o poder opressor se manifeste sobre ele a fim de contê-lo.
Esses trechos não são problematizados em nenhum momento dentro da narrativa, o que acaba fortalecendo o imaginário colonial de que o corpo negro, em especial, da mulher Negra, é uma 'força indomável da natureza'.
Para Steele (2015), o conjunto de escolhas que compõe a obra cinematográfica é totalmente irresponsável, porque erige a imagem de um gênio (em particular) a partir de aspectos que buscam deslegitimar essa genialidade (coletivamente). Para ela, Liz Garbus compactua com a continuidade no modo de representar gênios como “torturados, aflitos e abusivos” (Steele, 2015), ainda ensinando às mulheres Negras lições sobre si mesmas. A complexidade de Simone foi reduzida a “o que aconteceu ao bebê de Nina”, que não tinha maturidade para elaborar o relato além do ressentimento nem de compreender o universo adulto (Steele, 2015). Não há enquadramentos em que Simone quebrou a quarta parede ou mesmo em que mostrasse quem a está entrevistando. Essas imagens laterais dela falando “sozinha”, expressando suas angústias pelo canto e pela dança, acentuam traços estigmatizados de raça e loucura, já que desbotam a genialidade e lançam luz ao modo caricatural (retórica visual) de representar seu aspecto de mulher Preta (“dark skin”).
A representação de Simone, no documentário, é tributária do imaginário do século XIX, quando faz uso da ideia de que seu corpo negro está fora do lugar e que deveria ser mantido única e simplesmente no espaço doméstico. Ao construir a imagem da cantora de forma dicotômica (um eu-político radical público e o eu-condescendente com a violência doméstica), agressiva e estereotipada, nuances de sua personalidade são apagadas em prol do fortalecimento daquelas associações pejorativas sobre mulheres Negras.
A sucessão de frames em que ela demonstra emoções (tidas como) exacerbadas ou taciturnas encadeia conceitos como "infantilização", "vulnerabilidade", "incivilidade", "força física" e "sexualidade animalesca" (Kilomba, 2012) de modo que o corpo negro engendrado torna-se repositório desses significados negativos e, à medida que comprova, instaura uma "verdade social". O discurso veiculado pelo filme mostra-se, portanto, engajado na manutenção das relações violências. Em Plantation Memories, Grada Kilomba (2010) descreve a consecutividade da violência colonial como o "racismo diário" que é uma realidade histórica/contemporânea traumática que aprisiona o sujeito negro como um Outro exótico e subordinado.
A partir de encadeamento de conceitos pejorativos e da plasticidade, o discurso racista busca, por meio de “hierarquias de cor” (colorismo) disfarçar a desigualdade e desestruturar articulações e lutas por direitos nas comunidades e nas pessoas marginalizadas. A importância histórica de Nina Simone está - inclusive - na sua compleição física e na sua genialidade, que, juntas, desafiam séculos de afirmações negativas sobre mulheres Negras. Ao firma-se como cantora conhecida cuja arte é apreciada mundialmente, sua imagem passou a expressar uma retórica visual que transcende o imaginário convencional e, assim, corresponde a um contra-imaginário poderoso como o próprio feminismo negro.
Com essa compreensão, podemos afirmar que a trajetória musical de Nina Simone é um processo de encontrar sua própria expressão, sua voz, bem como é alcançar um lugar, uma chance de “expressar o que tem dentro”. Tanto a frustração quanto as violências sofridas diariamente, segundo a narrativa, foram transformadas em experiências que marcaram suas atitudes, afetos e escolhas, nem sempre de forma positiva. É preciso compreender que, embora as opressões tenham sido transformadas em estética, isso não pode ser explicado a partir da ideia de que mulheres Negras são mais fortes, e sim porque esta é uma característica humana.
A todo o momento, a narrativa de Simone é interrompida pela fala de Lisa S. Kelly (quando não do ex-marido agressor), que a compara com "um peixe na água". É possível perceber o discurso animalização de Simone em diversos momentos através de expressões despretensiosas como essa. Enquanto a cantora descreve a solidão em termos sociopolíticos (isolamento como segregação racial, como musicista que opera na diversão dos outros), o ponto de vista da diretora, Liz Garbus, se projeta (tanto do ponto de vista fílmico quanto psicanalítico) privilegiando a alteridade acrítica. Isso formata um conteúdo político ancorado em sua branquitude, que mascara a dramaticidade visceral sob a pretensão documental. A voz do sujeito branco, desde o passado colonial, localiza o discurso negro às margens, como um tipo de ideia incompreensível e um conhecimento desviante, enquanto seu discurso se mantém ao centro como norma e objetividade.
A representação de Nina Simone em What Happened é, portanto, uma redução dos fatos por meio do discurso emitido por uma perspectiva interessada em manter as desigualdades discursivas. Desse modo, as forças deformantes que atuam sobre a psique humana, a experiência traumática de escravização, segregação racial e racismo cotidiano que ocasionam uma experiência coletiva de sofrimento virtualmente invisível, indescritível e inaudível ao indivíduo branco é transformada em espetáculo e açoita simbolicamente.
É um filme ancorado numa perspectiva política branca que não superou o mecanismo primário do ego: a negação. Por esta razão, ao descrever a individualidade de Nina Simone, o sofrimento mental dela é reduzido à representação da "loucura" e sua naturalização.
Cabe ressaltar que essa descrição redutiva é usada como epíteto de uma população inteira e essa é um questão pouco discutida em se tratando de celebridades Negras que entram em conflito com a lei ou agem de forma agressiva como Naomi Campbell, Lauryn Hull, Azealia Banks. Desse modo, a imagem ambivalente de um contingente negro descrito como "disfuncional", "louco" e "animalesco", pode tanto servir como legitimação do discurso racista quanto de problematização dos mecanismos que produziram a "loucura" conforme a abordagem. Interpretação não é fonte de verdade, mas exercício de poder e, nesse sentido, o as estratégias retóricas que construíram Nina Simone como uma mulher Negra e louca não pode ser vista como isolada e, menos ainda como ação inconsciente ou "não proposital".
É importante frisar que o lugar social de Liz Garbus é investido de poder, e que o próprio fato deste filme ter sido aprovado, distribuído e premiado, evidencia o quanto o racismo é naturalizado, político e nada individualizado. Não é uma questão moral, de culpar Liz Garbus por esse filme desastroso, mas é preciso evidenciar que artistas devem sempre se responsabilizar pela obra, pesquisar e sair desse lugar de "genialidade" e "inspiração". Se comprometer com a equidade. E se responsabilizar pela arte que produz. Sempre.
[*] Esse texto é uma versão do artigo acadêmico publicado sob o título Gênero, Raça e Loucura: O que aconteceu com a Miss Nina Simone? no livro AVANCA|2016 da 7ª edição da Conferência Científica AVANCA|CINEMA que ocorre no distrito de Aveiro (Portugal). O livro pode ser adquirido neste link: Avanca Cinema.
REFERÊNCIAS
KILOMBA, Grada. Plantation Memories: episodes of everyday racism. Budapeste: Unrast, 2010.______. Grada Kilomba Interview - Part VI. (2012) In Philipp, Carolin; Kiesel, Timo. "White Charity" (2011). Acesso em: 16 abr. 16.
______. “Descolonizando o conhecimento”. Uma Palestra-Performance de Grada Kilomba. (2016). Trad. Jessica Oliveira. Acesso em 16 abr. 16.
STEELE, Tanya. The Irresponsibility of 'What Happened, Miss Simone?'. Acesso em 14 abr 16.
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