Tamar-Kali: A Deusa guerreira do Hardcore que você precisa conhecer
Dizer que Tamar-Kali é uma "alma divina e guerreira do hardcore negro" é insuficiente para descrever a revolução emocional e política que suas músicas me inspiram.
DEUSA MELÓDICA
Sem dúvidas, Tamar-Kali é uma das artistas / pensadoras contemporâneas que mais me representam à medida que norteia meu discurso e minhas práticas como Preta, Nerd mergulhada neste mundo em chamas - o Burning Hell. Não, ela não é uma badass, afinal empoderamento é uma estratégia de sobrevivência, não um fruto "exótico" ou show desumanizador para entreter o lugar político do indivíduo branco.
Sua voz é potente, e independente da forma ser melodiosa ou rasgada - porque todas as canções têm ao menos dois arranjos - sua sensibilidade e performance mesclam pedaços de imaginários para propor novas narrativas. Tamar-Kali é a junção de seu primeiro nome (Tamara) com o nome da deusa hindu de pele preta*, manchada de sangue e ornamentada com caveiras. Ela é a deusa da morte do ego, a transformação (morte simbólica) que destrói a maldade e, por extensão, a desigualdade social. Particularmente, gosto de pensar neste nome como a junção da contradição histórica, agridoce, em busca dum futuro livre e justo, isto é, totalmente sem medo (como disse Nina Simone).
A violência específica a qual estamos submetidas diariamente torna nossa experiência repleta de investidas desumanizadoras. O medo ao qual Nina Simone se referiu foi à uma sensação presente do trauma e a certeza de que ele se repetirá enquanto o racismo for um sustentáculo social. Contra a repetição sistêmica, a arte de mulheres negras possibilita um olhar que alcança toda a humanidade que atos racistas buscam apagar. A conscientização através da voz de Tamar-Kali, herdeira de Beth Smith e Nina Simone, tanto revela camadas de nós que precisam ser destacadas como canalizam a raiva e a impotência de forma seguramente propositiva e empoderadora.
No clipe do single "Pearl" um dos enquadramentos mais interessantes foca Tamar-Kali contra a luz com movimentos de dança-do-ventre que fazem referencia à deusa Kali. Junção, sobreposição e antíteses são recursos presentes em todas as suas composições.
Sua performance é uma presença que rasga o véu da ignorância, da negação e do ultraje e traz ao centro nossa existência como sujeitos, não apenas sensibilidades individuais, mas também como sujeitos sociais e históricos. A sobrevivência depende do entendimento de que a humanidade de pessoas negras é constantemente sitiada, mas que nossa individualidade é um ponto tão político quanto. Já dizia Audre Lorde, que nossas existências, nossa sobrevivência é um ato político em si. Quem vive, sabe - quem morre também.
Como mulher jovem e negra, nada me tocou tanto em aspectos racionais e emocionais do que quando ela diz:
"Eu definitivamente me identifico como uma feminista negra**. Eu vivo minha vida ciente do meu valor como uma presença humana neste planeta que jamais seria eclipsada pelo meu gênero - o que seria ridículo. Baseado na estrutura de poder em que existimos, caminho neste planeta na condição de "outro" e minhas letas refletem isso; minha raiva, minhas expectativas e desafios e tudo o mais que eu encaro. Não escrevo com uma intenção política, mas o fato de ser uma mulher negra contando minha história no contexto que estou é um ato político em si" (Tamar-Kali, via Urocyon Meanderings)
Apesar da óbvia relação entre o rock e as vozes marginalizadas, o gênero musical em si é imaginado como redoma masculina e eurocêntrica neutra, com músicas sobre guerreiros vikings, a Bíblia, heróis e dragões. Sem dúvidas, é preciso estar muito próximo do núcleo comercial para ter essa compreensão, mas mensagens como a de Tamar-Kali raramente circulam mesmo no underground. São muitas as fronteiras que deslizam à volta da identidade da cantora, que acaba sendo apagada numa cena que se diz empenhada em ouvir e veicular o discurso do "outro". Em todos os lugares, os inimigos são os mesmos.
A impressão duradoura de Tamar-Kali é tanto imagética quanto rítmica. Na maioria das letras, sua voz poderosa se dirige a uma igual e torna acessível tudo o que encontramos na prosa de Bell Hooks, Audre Lorde, Grada Kilomba, Abena Busia, Alice Walker, Angela Davis e tantas outras. Isso não é um fenômeno isolado, como descreve a socióloga estadunidense Patricia Hill Collins. Para a teórica, o fato de as questões que afetam o cotidiano de mulheres negras serem coletivas, faz com que uma forma de pensamento oposta à opressão emerja em resposta. É por esse motivo que o pensamento feminista negro permeia a produção artística e intelectual de tantas cantoras Negras.
CARREIRA
Apesar de Tamar-Kali estar na cena do Brooklyn desde a década de 1990, seu primeiro EP Geechee Goddess Hardcore Warrior Soul (OyaWarrior Records) só foi lançado em 2005. Apenas em 2010 estreou seu álbum Black Bottom com as marcantes "Pearl", "Boot" e "Warrior Bones". Todas as letras são composições de Tamar-Kali e o álbum foi coproduzido por ela, de modo que suas ideias e ethos não foram limados em prol de aceitação do "mercado". Entre o EP e o álbum foram lançados singles e sua agenda de shows se manteve frequente.
Singles esses que foram lançados em versões diferentes, desde o hardcore e remix até o arranjo clássico para o show em homenagem a Betty Davis e Nina Simone em 2009. Sua incrível voz também foi emprestada às produções da cineasta negra e lésbica Dee Rees: primeiro no premiado "Pariah" (2011, Focus Films) e na recente homenagem "Bessie" pela HBO, em 2015, estrelado por Queen Latifah.
A LÍRICA FEMINISTA NEGRA
No clipe de Pearl desmorona a ideia de neutralidade do hardcore ao mesmo tempo que questiona as generalizações racializadas. A letra descreve a jornada de autodescoberta duma menina de pele negra que, a principio não sabe, mas "Ela é uma pérola" encrustada na urbanidade. Aliás, em entrevista a Jen Williams, ela afirma que Black Bottom é uma referência à experiência coletiva negra, principalmente em Detroit. É necessário usar essa expressão porque, segundo Kali, não é possível pensar em sobreviver sem relacionar ao que acontece externamente, sobretudo pensando nas grandes cidades. A menina ansiosa e insegura, não sabe, mas ela precisa se atentar às próprias respostas para perguntas como "O que é liberdade?" e "O que é o amor?" e assim, descobrir o quanto é valiosa.
Já em Warrior Bones, um trecho me chama particularmente a atenção: "Eles tornam pior quando eles dizem que é para a liberdade / E você acredita neles/ Imperialismo, genocídio, nunca um plano B/ Algum dia/ todos nós assistiremos ao Armageddon na TV pay-per-view" (tradução livre)***. Essa letra é uma poderosa ode à revolução e se refere ao antagonismo social como uma realidade que conhecemos e precisamos desafiar, sobretudo quando poderes políticos e simbólicos insistem em manipular: guerra às drogas sempre foi uma política de genocídio da população negra; Imperialismo não é uma forma de possibilitar liberdade, mas a invasão do território geográfico, intelectual e emocional do outro. É preciso buscar por alternativas novas, um novo plano, para liberdade plena.
Pra fechar, o emblemático cover de "Fire With Fire" que adquire outra mensagem na voz de Tamar-Kali. A letra é uma mensagem duma garota que já passou por todas as dificuldades e procura fortalecer uma mais jovem. A voz de Kali empresta um tom específico e poderoso à letra do "The Gossip" por fazer parte da trilha sonora do brilhante longa de Dee Rees: "Pariah". A mensagem central emprestada à letra é a de que é preciso ir contra o mundo para encontrar um lugar nele, e, para isso, "levante e combata fogo com fogo". Não há como correr, nem como esconder o que se é, opressores estão sempre à espreita: " Levante, resista, e mantenha a cabeça erguida". Em Pariah a mensagem central é para que jovens garotas negras lutem pra viver, pois apesar da homofobia, sexismo e racismo, muitas outras vieram antes delas e quanto mais erguida a cabeça, mais "dura na queda" (Como diria Elza Soares).
Enquanto as experiências de mulheres e jovens negras são continuamente negadas nas camadas mainstrem bem como nas comunidades underground, Tamar-Kali irrompe como a presença que nos inspira, constrói e reivindica tudo o que é nosso, como a maravilhosa Ialodê que é.
NOTAS:
*Assim como Shiva é usualmente descrito como azul escuro, há quem traduza a cor da pele como "negra".
**no original "feminist/womanist" pode causar dúvidas para quem teve contato com teorias feministas negras, mulherista e mulheristas africana. A identidade política de Tamar está alinhada a questões espirituais e tradicionais, mas a combatividade e visão de mundo se alinham às teóricas feministas negras como Audre Lorde, Abena Busia com traços do Mulherismo de Alice Walker.
***Letra original: "They make it worse when they tell you it’s for freedom/And you believe them/Imperialism, genocide, never a plan B/Someday we’ll all watch Armageddon on pay-per-view TV"
Originalmente publicado no Delirium Nerd em: 8 de maio de 2017.
Pride!
Thorough article/essay by Brilliant Brasilera ANNE CAROLINE QUIA @delirium_nerd Obrigada! for the diasporic love. https://t.co/bvW7zy15E0— Tamar-kali (@Tamar_kali) 9 de maio de 2017
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