Você sabe como é ser Preta Nerd no Brasil?
Como é ser Preta e Nerd no Brasil? |
Hoje pela manhã, a youtuber Nataly Neri propôs em uma das stories que garotas negras alimentassem seus feeds com a hashtag #OcupeSeuCorpo. Com isso, ela reacendeu umas reflexões que tive assim que li o texto Corpo Utópico (Foucault): a consciência habita um corpo, mas não se limita a ele; não em totalidade; além disso, "de que forma habito e qual a grande narrativa que eu criei sobre meu corpo preto de mulher nerd?" são questões presentes no meu cotidiano e de muitas pessoas que se identificam desta maneira.
O racismo é um sistema desumanizador que limita a subjetividade a partir de hierarquização de diferenças físicas, interpretadas como psicológicas. Ele é o substrato social, que possibilita acessos e imagens de si diferentes entre brancos (que se entendem como neutros) e indivíduos racializados (entendidos pelos brancos, como tingidos ou coloridos). Nesta dinâmica, a dicotomia "corpo e alma" se estabelece da seguinte forma: alma é superior ao corpo, porque transcende a condição material, é criativa e ligada ao logos (conhecimento) ao passo que corpo é o limite da carne, restrito ao imediato e às sensações físicas. É evidente que separar tais características para compreender o humano não passa de equívoco, mas essa crença na superioridade da mente e da escrita, localiza brancos como naturalmente superiores, detentores das funções intelectuais e, por sua vez, população negra ao braçal, ao não produtor de conhecimento.
Podemos ser o que quisermos ser! Source: JPM / Getty Images |
Essa crença, levada à coletividade, constitui a imagem e representação do que os corpos podem ser. Nesta lógica, o corpo negro não pode ser consumidor de cultura pop, rock e tudo que fuja à ideia imediata de etnicidade. Como se rock não fosse de origem negra, como se não houvesse negro produzindo/consumindo cultura pop e como se não existíssemos.
O grande passo para a população negra nerd rumo à ocupação, apropriação e habitação de seu próprio corpo é a autodeclaração. Essa postura contra as "tendências de combinação", chacotas e a "sombra do cool", que afirma a legitimação do nosso corpo como suporte desta identidade (mal catalogada pelo Google imagens) é o verdadeiro passo contra o isolamento (síndrome de smurfette / tokenismo), contra o estereótipo de "negritude autêntica" e, ao mesmo tempo, contra a imagem única de que só podem ser nerds os clássicos clichês dos anos 1980.
Lunella Lafayette, a pessoa mais inteligente do Universo Marvel |
Sem dúvidas, reivindicação da "estranheza" é uma das formas de reivindicação de subjetividade, afinal, a função do negro numa sociedade racista é voltar sua atenção ao afeto para com os seus e para sua própria subjetividade. Não é mera questão de visibilidade num mercado (porque o capitalismo não é a solução para desigualdade social), mas de quebrar o silêncio, autodeterminar e compreender o potencial de seu próprio poder de agencia. Resumindo: a consciência negra e nerd é um ápice do empoderamento do sujeito que habita o corpo negro, fora dos padrões de beleza, fora dos padrões de consumo e de uso da tecnologia (comprar a mesma coisa não significa consumir, compreender e se entreter da mesma forma. Isso é socialmente marcado pelos indicadores/pertencimentos raça, gênero, idade, classe, morfologia...).
Curiosa sobre tudo isso, a jornalista Amabilie Mendes decidiu fazer do tema Black Nerds no Brasil o tema de sua monografia e documentário, defendidos em junho de 2017. Segundo Amabilie, "trata-se dum webdocumentário sobre o universo Nerd com um recorte de raça visando exibir os negros dentro dessa temática, seja na representação simbólica ou como são colocados nesse espaço pela mídia".
Militia Vox é uma das maiores vocalistas de Heavy Metal |
Segundo a jornalista, é essencial "relacionar essespersonagens fictícios e despertar a reflexão da inserção do negro neste espaço" o que ela fez a partir de entrevistas com pessoas negras que se identificam como nerds em diferentes estados brasileiros como São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro.
Amabilie me propôs a participação quando nos encontramos na CCXP 2016, exatamente na mesa "A etnia dos heróis importa?". Lançar um olhar sobre a população negra nerd, que é tão pouco destacada neste cenário já constitui uma mudança radical na forma como jovens negras, negros, pessoas negras identificadas como lgbts possam ter imagens inspiradoras de modo a confrontarem o constrangimento e o isolamento e se declararem nerds, geeks, alternativa ou o que for. A contribuição desta pesquisa, para a população negra é imensurável, assim como a sensação de sentir identificada com seu próprio corpo e identidade: a sensação de quem ocupa seu próprio corpo.
Jacqui Briggs é uma soldado que compõe o time principal de Mortal Kombat XL |
Em 2015, durante a entrega do Emmy, a atriz Viola Davis afirmou que não é possível a uma atriz negra concorrer a premiações por papéis que não são oferecidos. Da mesma forma, a epígrafe escolhida por Amabilie destaca:
Você não se sente tão real se não se vê refletido na mídia. Há algo muito poderoso em se ver representado.
Dwayne McDuffie, criador da Milestone Media
Quando você realiza que seu corpo preto, (atlético ou não), seu cabelo (crespo ou não), suas roupas (cool ou não) e seus gestos convergem com seus gostos pela leitura, games e filmes, você passa a ser sujeito de si e a procurar sua própria maneira de resistir, existir e assentar. Minha trajetória pessoal do não existir ao existir, culminou no feminismo negro nerd de corpo e alma tem como marco a criação do Preta, Nerd e Burning Hell.
Taraji P. Henson interpretou a matemática Katherine Johnson em Estrelas Além do Tempo |
Sendo assim, é com imenso entusiasmo que compartilho com vocês Black Nerds: Representatividade negra em produtos nerd, o webdocumentário produzido pela Amabilie Mendes. Ele tanto dá voz e visibilidade à pessoas negras dentro de uma cultura nerd (produtoras de conteúdo, críticas e artistas), quanto evidencia que a representatividade negra nerd existe sim, no Brasil.
Confira o site aqui: Black Nerds Brasil e o webdocumentário abaixo.
Capítulo 1 : O Nerd
Capítulo 2: Representatividade
Capítulo 3: Preta, Nerd & Burning Hell
Capítulo 4: Black Cosplayers
Capítulo 5: O Batman
Participação: Anne Caroline Quiangala (Preta, Nerd & Burning Hell), Lucas Felix (Black Cosplayers), Márcio Macedo (Mestre em Sociologia) e Mariana Santiago (Publicitária).
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