Detective Comics #2: lesbiandade é problema com o papai?
Detective Comics #2 (maio/2017)
originalmente publicada em Detective Comics #936 (setembro/2016)
Roteiro de James Tynion, Desenhos de Alvaro Martinez, Arte Final de Raul Fernandez, Cores de Brad Anderson.
DE LILITH À EVA
A edição anterior de Detective Comics introduziu a equipe que estrela o arco: Batman, Batwoman, Robin Vermelho, Orfã, Spoiler e, o vilão regenerado, Cara de Barro. A contextualização focou no pedido que o Batman fez à sua prima, Kate Kane (Batwoman): treinar um grupo heterogêneo de jovens com grande potencial. O problema, como eu disse anteriormente, é que integrar a Batwoman à bat-família significa trair a motivação dela ao assumir o manto por conta própria, sem pedir permissão. Se nos Novos 52 ela era uma outsider, notívaga e solitária, que se rebelava contra a "lei do pai", personificada na figura do Batman, no Renascimento ela virou a matriarca.
Apesar disso, o sequestro do Batman em Detective Comic #1, abriu uma possibilidade narrativa para ela, tanto que a segunda edição começa com uma bela passagem sobre o passado dela como militar:
Apesar dos requadros nos direcionarem para a uma ideia próxima à da gênese dos Novos 52, em que foi expulsa da carreira militar devido à aplicação da lei "Não pergunte, não conte" (sobre a homossexualidade nas forças armadas), ela está apenas contando à sua ex-namorada, Montoya, sobre sobre as cobranças excessivas e assédio moral que sofria do Sargento de treinamento. Essa conversa acontece num clube noturno, aparentemente, para mulheres.
Kate está com um vestido que mostra os ombros e suas mãos estão à vista, acompanhando sua estranha tentativa de reconciliação. Como sempre, ela tenta se conectar, mas "não pode dizer o que está fazendo", ao menos, não agora. Apesar dessa tentativa soar sincera, Renee Montoya, tem uma postura distante, e demonstra indisposição para lidar com uma situação que parece repetida. Ela está com um grosso casaco e ambas as mãos nos bolsos, e, assim que sugere à heroína que "procure ajuda", deixa a mesa.
O fato de acompanharmos a história pela perspectiva de Kate, pode nos levar a julgarmos a atitude de Montoya como ressentimento injustificado. Mas não podemos perder de vista que Renee Montoya é uma mulher racializada e lésbica, e que exigir que ela seja mais compreensiva e não que Kate seja emocionalmente mais constante, responsável e cúmplice evidencia o que se chama de emotional labor, um esforço emocional, de compreensão e afeto não recíproco que, usualmente, pessoas brancas e/ou homens exigem de pessoas racializadas e/ou mulheres e tornam as relações trabalhosas, pesadas e tóxicas.
Esses momentos de desilusão, conjugados à vida de vigilante, mostram que Kate é uma pessoa com grave carência emocional, e uma ambivalente necessidade/dificuldade de se conectar afetivamente. Evidente que, essa continuidade retroativa (retcon), ou seja, alteração de fatos da cronologia de personagens, fez com que ela retornasse à estaca zero - e não porque ela não tenha orgulho de ser lésbica, ao contrário, ela abriu mão da carreira por isso - de buscar reatar com Montoya. Tudo porque a DC achou relevante apagar a progressão que culminaria no casamento com a policial Maggie Sawyer.
Embora muita gente possa argumentar que a sina do super-heroísmo é ter de abdicar do grande amor como prova de devoção à humanidade, há casais - fora Manto e Adaga - que funcionam bem. Agora falando mesmo da concorrente: atualmente, Peter Parker e Mary Jane vão muito bem, obrigada. O mesmo sobre Luke Cage e Jessica Jones e outros casais importantes e, curiosamente, heterossexuais. Aliás, eu li em algum lugar que, na época em que censuraram o casamento de Kate e Maggie, o Superman e a Mulher-Maravilha estavam se relacionando.
Na maior parte da conversa, a condução narrativa não propõe uma discussão real sobre a supressão de emoções que rege as decisões de Montoya, seja de se recolher, se afastar ou ir embora. Apesar disso, o recordatório de Kate deixa um gancho para o arco principal da história de heroísmo, sequestro do Batman e reunião da bat-família: A Ascensão dos homens-Morcego. Na primeira página, ao contar sua trajetória no exército, Kate nos informa que contou ao tenente que desejava ser igual ao pai, o Coronel Kane.
QUEM É A QUERIDINHA DO PAPAI?
Enquanto recorda os tempos do exército, Kate evidencia o quanto o Sargento a assediava moralmente por ousar desejar ser como o pai. Certamente, querer "ser igual ao pai", faz com que ela leve muito a sério a ideia de que deve ignorar suas próprias emoções. Isso faz com que ela se sinta culpada por não conseguir reprimir, incompleta por não conseguir se conectar a alguém e frustrada por não ser autossuficiente.
"Se por um lado, essa culpa de sobrevivente rege muitos dos valores e das atitudes de Kate, por outro, não ter uma referência feminina e ser criada por um pai mentiroso, manipulador e obcecado pelo poder, indica que problemas com pai ocasionam rebelião contra a Lei do Pai."
Logo após "o fora" de Montoya, ela é recebe uma ligação do Robin a convocando. Em algumas passagens, aliás, fica evidente que o "gênio do grupo" reconhece a autoridade da Batwoman porque "O Batman disse que ela estava no comando" e "confia nele", mas o morcego disse tudo como ele queria, de modo que o Robin continua sendo subordinado ao patriarca. Essa experiência de desempoderamento faz com que Kate Kane tente assumir o controle, independente da desvantagem posta (vide sua inserção no "mundo dos homens").
Quando descobre que o Batman está com problemas, Batwoman imediatamente após contactar sua equipe, usa sua última gota de confiança e liga para o seu pai, que pensa alto: "essa é a minha garota". Apesar de não termos acesso ao background completo dos dois, possivelmente Kate foi sequestrada junto à mãe e à irmã gêmea Alice por "terroristas", sendo que apenas Kate sobreviveu. Se por um lado, essa culpa de sobrevivente rege muitos dos valores e das atitudes de Kate, por outro, não ter uma referência feminina e ser criada por um pai mentiroso, manipulador e obcecado pelo poder, indica que problemas com pai ocasionam rebelião contra a Lei do Pai. Dentre outras coisas, isso também pode indicar identificação com a figura de autoridade, mas total distanciamento emocional, e sutilmente explicar a lesbiandade de Kate Kane. Essas são ideias tradicionais, ancoradas numa interpretação sexista e homofóbica da subjetividade bem iluministas, eu diria.
Em diversas passagens da edição, o Coronel mostra como sua ética militar, nacionalista e masculinista se alinham na direção de valores acima de sua relação familiar. Segundo seu discurso, ele acredita que depositar suas expectativas em sua filha resolve os problemas da nação e os dela, afinal ele diz: "[...] eu conheço você, Kate. Sei o que quer. Do que precisa". Apesar de, no final das contas, a Batwoman se retinar totalmente decepcionada com o pai, desde o inicio o Robin Vermelho avisou que "O Batman frustra as pessoas".
"Já me ouviu, Spoiler. Essa luta é minha.Nunca deveria ter envolvido vocês. Eu preciso encontrar meu pai. Eu preciso cuidar disso"
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A narrativa de Detective Comics #2, é centrada na subjetividade fragmentada da Batwoman. Se, por um lado, podemos identificar em sua personalidade uma fragilidade emocional que a humaniza e possibilita a conexão com o público, por outro, o fato de seu pai ser o perigo cíclico mais aterrador embora "preocupado com o bem-estar", metaforiza violências pra além duma toxidade parental (bem comum em Gotham, vide o Comissário Gordon). A representação do Coronel Kane encarna os horrores da homofobia e impedem o desenvolvimento da marca de Kate: a habilidade de "cavar seu próprio espaço numa estrutura que a exclui". Sem dúvidas, faz todo o sentido que a mitologia da DC - que tanto adora dramas familiares (vide Martha) - a maior fraqueza duma heroína seja seu pai. O problema é que a recorrência, associada ao fato de Kate Kane ser uma heroína porque é lésbica/não uma heroína lésbica, é bem suspeito que sua vida amorosa seja uma eterna bagunça e que sua referência de figura paterna seja tão ausente quanto abusiva.
O dia 28 de junho é o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Nessa mesma data, em 1969, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e drag queens se uniram contra as batidas policiais que ocorriam com frequência no bar Stonewall-Inn, em Nova York. O episódio marcou a história do movimento LGBT, que continua lutando por direitos e visibilidade. Em homenagem à data, durante o mês de junho, portais nerds feministas se juntaram em uma ação coletiva para discutir de temas pertinentes à data e à cultura pop, trazendo análises, resenhas, entrevistas e críticas que tragam novas e instigantes reflexões e visões. São eles: Collant Sem Decote, Delirium Nerd, IdeiasemRoxo, Momentum Saga, Nó de Oito, Preta, Nerd & Burning Hell, Prosa Livre, Valkirias. #wecannerdit #nerdiandade #nerdgirl#feminismonerd
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