Mulher-Maravilha: Utopia, Representação e Alteridade
Totalmente poderosa |
BENDITA SEJA A UTOPIA
Quase todas as canções de Power Metal que elevam nossos punhos e vozes num coro involuntário e nos fazem sentir épicas são histórias de guerreiros em busca de dragões, honra, graciosidade e glória, ou seja, sobre tornar-se homem numa sociedade que os privilegia. Para nós, mulheres racializadas, elas não passam de negociações identitárias que precisamos fazer para nos sentirmos encorajadas a alcançar ápice de tudo o que for mais distante e brilhoso. Uma das negociações mais valiosas para feministas nerds racializadas é o centro da tríade DC: a incrível Mulher-Maravilha.
Pra mim, o tom musical épico sobre jornadas de heroínas que têm impacto semelhante, a despeito de serem tachadas de subcategorias, falam sobre estupro, vingança e justiça social: I spit on your grave (Sinergy) e a grandiosa Warrior Bones (Tamar-Kali) são exemplos magníficos disso. As vozes rasgadas e encorpadas de Kimberly Goss e de Tamar-Kali nos mostram o quanto somos humanamente fortes, apesar da luta incessante contra inimigos desleais. Suas vozes, em primeira pessoa, nos dão motivos para lutar apesar de tudo (inclusive aquela voz interior) dizer que o mais seguro é fraquejar e desistir.
Historicamente "ser mulher" significa ser vítima e, portanto, pertencer ao lado fraco, ser espólio (e esposa de alguém) e, sobretudo, renunciar devido à sensação de que somos fraude - consequência dos horrores da síndrome do impostor. Os produtos culturais, por sua vez, tendem a focar em imagens de desempoderamento para nos convencer de que somos um "segundo sexo": naturalmente ligadas às supostas fraquezas como esperança, afeto e compreensão. Por esse motivo, é comum que mulheres-cisgênero heterossexuais vejam mais prestígio em serem chamadas de esposas, do que de "mulheres". Como tudo isso é efeito de distorções contínuas, que nos perseguem antes do nascimento, não raro precisamos criar paradigmas "do nada" e compreendermos a totalidade da ideia contida na frase de Simone de Beauvoir: "Não se nasce mulher, torna-se".
Sob essa égide, na década de 1940, Diana de Themiscyra ou Mulher-Maravilha, emergiu como resposta às mulheres que ansiavam por referências de força e autoconfiança. O fato de ainda representar a utopia feminista mostra que ainda há muitos direitos a serem conquistados. Sim, ela ainda é o estandarte: luminosa, positiva e sempre disposta a elevar seus punhos em busca dum épico que abarca a todas as pessoas (e animais!) em sua plenitude. Seus valores são tão elevados que escapam à compreensão humana num mundo tão destruído, desencantado e sem sentido. Sua encarnação da Utopia - que compreende, mas não se resume à Themiscyra - aponta para uma nova ética do cuidado: cuidemos umas das outras e façamos sempre o certo, independente do resultado!
Diana nos inspira e eleva, porque seu desejo maior é o de que sejamos todas fortes, unidas e livres (ideias um tanto francesas embora ela esteja com os ingleses!) e, graças a isso, ela faz brilhar uma luz forte e insistente num mundo de pesadas sombras e mazelas paradas na década de 1980 - que é o próprio Universo Cinematográfico da DC. No fim das contas, um dos pontos mais valiosos do filme é que ele me parece uma enorme e potente metalinguagem. E, talvez a melhor palavra pra descrever esse épico contemporâneo seja: potência.
Gal Gadot, a Mulher Maravilha |
REPRESENTAÇÃO E METALINGUAGEM
Em nossa sociedade eurocêntrica, além dos valores positivos serem formativos da personalidade masculina-cisgênera, um vácuo isola as protagonistas femininas e nos distancia de seus corações e mentes. Essa sempre foi a minha sensação com protagonistas femininas: havia um silêncio sobre suas experiências, um distanciamento de suas ideias íntimas e perspectivas em si que me impedia de compreender os anseios profundos de Saori (Cavaleiros do Zodíaco), Misty, Policial Jane, Enfermeira Joy (Pokémon), Androide 18 (Dragon ball), Vampira, Jean Grey, Tempestade (X-Men), Misty Knight (Luke Cage), Rey (Star Wars VII) e a Mulher- Maravilha não tem sido diferente nos quadrinhos.
Apesar de Gal Gadot ter construído o ímpeto da personagem com realismo e nos convencer de que Diana é dispositivo dum feminismo impecável, potencialmente interseccional e em favor de mulheres racializadas... ainda assim, sua voz não expressa o que há de mais profundo a descobrir sobre Diana, e o problema não é sua atuação. Mesmo nos breves e esplêndidos momentos em Themiscyra, ela é superprotegida e não responde, de modo que suas emoções não se conectam às nossas, exceto pelo que há de mais abstrato (o amor, a força e a confiança) e isso mantém o vácuo entre "nós e ela". Não estou certa, em absoluto, de que isso se deva ao fato de ela ser uma deusa porque esse é um recurso comum na cultura pop: mulheres são incompreensíveis "sangram e não morrem". Sabendo que o argumento ficou nas mãos de Allan Heinberg, Zack Snyder e Jason Fuchs, o que surpreende não é esse vácuo entre nós e a mente de Diana, mas sim a presença de espírito de diálogos que desnaturalizam a lógica sexista que rege o "nosso mundo". Diálogos que significam muito num mundo real em que a DC prioriza valores tradicionais, mesmo significando fracasso.
Nos diálogos entre Diana e Steve Trevor (Chris Pine), práticas que parecem muito naturais como casamento, monogamia e moralidade sexual, são desconstruídas de forma bem-humorada e conscientizadora. Neste momento, aliás, o estranhamento de Steve me fez pensar no quão distantes estamos da visão de mundo dela. Nos diálogos entre eles, fica evidente que a concepção sobre "o que é uma mulher" é restrita aos valores dominantes e ainda não há resposta definitiva a isso - aí está, mais uma vez, o valor da utopia da Mulher-Maravilha para pavimentar novos caminhos.
A direção de Patty Jenkins é vivaz mesmo quando seguiu à risca a mirada masculina (male gaze), pois sabotou de forma deliciosa certos enquadramentos objetificantes. Além disso, é necessário enfatizar o quanto as cenas de ação são vibrantes, épicas e conseguem propor uma real representatividade sobre ser guerreira e sim, uma mulher. Meu meu maior elogio no aspecto plástico do filme é o modo como se resolveu o problema do filtro. Ele ainda está lá, pesando as emoções, sendo DC, mas também difuso. Em toda a escuridão - mesmo durante o dia - há frestas de luz, que corroboram a sensação épica do otimismo de Diana.
Sua potência interseccional se limita ao que parece ser uma promessa silenciosa de que, quando uma sobe leva as demais, já que sororidade é um valor que norteia sua vida. Mulheres racializadas, então, "sentem e esperem". Apesar disso, a representação de homens racializados mostrou que representação também é uma questão de chave de leitura, já que apenas o pertencimento étnico-racial possibilitou entendimento pleno da representação do personagem nativo-americano, Chefe (Eugene Brave Rock). Eu particularmente amei quando ele descreveu sua situação na guerra, que não lhe cabe, e que está devastado e isolado graças ao povo de Steve. Também é interessante observar a linha tênue do estereótipo que Sameer (Saïd Taghmaoui) pisa para enfatizar o quanto o real se constrói socialmente: "eu queria ser um ator, mas nasci da cor errada [marrom]". É desagradável assistir à cena em que ele serve de motorista de Steve mimetizado como alemão, porque a cena é verossímil; não é a cena que é detestável, mas sim a realidade na qual ela se ancora. Até mesmo o escocês, Charlie (Ewen Bremner), revela um ponto de discussão válido: seu estresse pós-traumático é um comentário retórico sobre como um mundo desigual é tóxico para todos, salvando as proporções, até mesmo para quem parece estar em vantagem. É bonita a transformação do olhar de Diana sobre esses sidekicks desajustados, inclusive porque esse olhar visivelmente os transforma - isso também é empatia. É admirável o equilíbrio em relação à empatia, porque o filme não caiu no erro de criar um senso de superioridade em Diana, nem uma piedade egoísta e - graças à Deusa - não transformou os indivíduos racializados em monstros! Apesar do machismo inerente à condição dos ajudantes de Diana, a união entre Steve, Sammer, Charlie e Chefe foge completamente da ideia de fraternidade que decorre em misoginia, muito comum em filmes, séries e jogos sobre Roma, Grécia e Esparta, mas bem contemporâneo a nós.
Talvez, neste mundo dos homens, o único elo que mantém Diana ligada à Themiscyra é a dulcíssima e bem-humorada Etta Candy (Lucy Davis), secretária de Steve. Sua consciência crítica possibilita uma relação de sororidade com Diana que, em parte, amenizou a minha frustração de não ter mais tempo de tela da heroína entre as amazonas, para compreender aquele universo utópico e ter respostas concretas às minhas hipóteses.
ALTERIDADE ATÉ ONDE NÃO ESTÁ
Representar significa emoldurar experiências do mundo real numa obra. Historicamente, Diana simboliza o feminismo liberal branco da primeira onda, até que a conquista de direitos civis possibilitou a emergência dum tipo de Mulher Maravilha, conhecida como "Núbia, a irmã negra da Mulher Maravilha". Esse antagonismo social necessariamente está no filme mesmo que a personagem não esteja. Afinal de contas, um reino fictício governado por uma dinastia de mulheres brancas, cercadas por negras que não tem nomes, não conversam entre si e não existem para além de seus cargos e de Diana, evidencia que a racialidade foi um tópico pensando pelas equipe realizadora do filme. A interseccionalidade, especificamente não foi, mas esse não é um mérito exclusivo de Mulher-Maravilha, e sim da DC e sua questão de negatividade em sua face snyder cinematográfica.
"Mas não, Mulher-Maravilha não é uma grande vitória para todas as mulheres. E estaríamos fazendo um desserviço a todas [nós] se pretendêssemos que fosse" (KADEEN GRIFFITHS via BUSTLER)
Dito isso, a jornada de Diana e o crescimento de sua autoconfiança simbolizam o devir pelo qual devemos aspirar. Sua crença incorruptível no fim da guerra e de todo o mal mira um único ponto de alteridade: Ares. Apesar desse típico "problema com o pai" parecer uma investida da DC-negativa, ela retira a vilania de Dra. Veneno para impedir a perpetuação da ideia de que o problema das mulheres são as mulheres e, ainda dizer, sutilmente, que o sexismo é debilitante para mulheres leais a ele (tal como a química é a Ludendorff - Danny Huston).
Neste sentido, o grande de mérito de Mulher-Maravilha é o avanço em relação à Viúva-Negra (Scarlett Johanson) de Joss Wheadon e os anos-luz do Universo Cinematográfico da DC. Isso não invalida o fato de que o filme constrói cenários humanos com pessoas negras e ignora a relevância de outras mulheres que atuaram na Primeira Guerra Mundial, por exemplo, como soldados ou enfermeiras. Essa imagem da "mulher diferente das outras" de "única mulher num grupo de homens" pode transmitir aquela mensagem capciosa que a maioria de nós - mulheres nerds - já vivenciou, mas sem uma mensagem clara a respeito para as mais jovens.
Além de destacar que o filme falhou em termos de interseccionalidade de raça e gênero, como grande fã da Batwoman (Kate Kane), eu não poderia deixar de apontar como a questão LGBT+ foi muito bem representada nos quadrinhos num arco que justapôs as duas personagens sáficas mais relevantes da DC: Diana Prince e Kate Kane. Nas edições #12- #17 da revista da Batwoman dos Novos 52, acompanhamos a missão em que elas colaboram, mesmo que simbolizem luz e sombras respectivamente. Apesar de acompanharmos a perspectiva de Kate - que é tão humana quanto a gente - e ficar claro o distanciamento que há entre o background da Deusa e da humana, fato é que desconhecer os códigos da nossa sociedade não impendem que nos aproximemos de sua grandiosidade, como se aquele vácuo que a escrita masculina sobre mulheres, cria em volta de protagonistas fortes não existisse. Apesar do comentário sobre a - óbvia - bissexualidade de Diana, o mais próximo de representar uma personagem LGBT+ incorreu num tropo comum, que é o da morte que faz a protagonista mais forte: Antíope (Robin Wright). E quando falo de representação LGBT+ não significa enfatizar a dimensão sexual-afetiva de Diana, porque uma personagem como ela conhece o além do amor eros, ágape e fraterno e faz dele matéria prima do máximo que uma grande produção pode permitir. Depois do excelente filme da Mulher-Maravilha dentro do péssimo Batman Versus Superman, não poderia esperar menos que excelência.
Quando ela abre mão de tudo o que considera importante e decide ir ao mundo exterior, sua mãe, a Rainha Hipólita (Connie Nielson), demonstra o quanto a ama, e esse amor-fortaleza é agente de mudança e salvação do mundo. Dentre muitas coisas, o corpo e mente Utópicos que Diana encarna, representam uma experiência de mulheridade que, podemos negociar e sentir como avanços, força e poder - passos a frente dum Power Metal cantado por homens brancos. Sem dúvidas, eu me diverti e me emocionei: sem dúvidas, valeu a pena ter assistido mais de uma vez. Apesar disso, sinto que o distanciamento extremo causa a estranha e perturbadora sensação de buscar a voz de Diana por duas horas no vácuo. Após a experiência metalinguística de Diana, na Dc-negativa, a despeito de frustrações, retorno ao real inspirada e confiante, pronta pra desvelar mais camadas da Utopia que é tornar-se mulher neste mundo por desconstruir - e reconstruir.
Neste sentido, o grande de mérito de Mulher-Maravilha é o avanço em relação à Viúva-Negra (Scarlett Johanson) de Joss Wheadon e os anos-luz do Universo Cinematográfico da DC. Isso não invalida o fato de que o filme constrói cenários humanos com pessoas negras e ignora a relevância de outras mulheres que atuaram na Primeira Guerra Mundial, por exemplo, como soldados ou enfermeiras. Essa imagem da "mulher diferente das outras" de "única mulher num grupo de homens" pode transmitir aquela mensagem capciosa que a maioria de nós - mulheres nerds - já vivenciou, mas sem uma mensagem clara a respeito para as mais jovens.
Batwoman #13 - Novos 52 (Dez. 2012) J.H Williams III e W. Heden Blackman |
Além de destacar que o filme falhou em termos de interseccionalidade de raça e gênero, como grande fã da Batwoman (Kate Kane), eu não poderia deixar de apontar como a questão LGBT+ foi muito bem representada nos quadrinhos num arco que justapôs as duas personagens sáficas mais relevantes da DC: Diana Prince e Kate Kane. Nas edições #12- #17 da revista da Batwoman dos Novos 52, acompanhamos a missão em que elas colaboram, mesmo que simbolizem luz e sombras respectivamente. Apesar de acompanharmos a perspectiva de Kate - que é tão humana quanto a gente - e ficar claro o distanciamento que há entre o background da Deusa e da humana, fato é que desconhecer os códigos da nossa sociedade não impendem que nos aproximemos de sua grandiosidade, como se aquele vácuo que a escrita masculina sobre mulheres, cria em volta de protagonistas fortes não existisse. Apesar do comentário sobre a - óbvia - bissexualidade de Diana, o mais próximo de representar uma personagem LGBT+ incorreu num tropo comum, que é o da morte que faz a protagonista mais forte: Antíope (Robin Wright). E quando falo de representação LGBT+ não significa enfatizar a dimensão sexual-afetiva de Diana, porque uma personagem como ela conhece o além do amor eros, ágape e fraterno e faz dele matéria prima do máximo que uma grande produção pode permitir. Depois do excelente filme da Mulher-Maravilha dentro do péssimo Batman Versus Superman, não poderia esperar menos que excelência.
Quando ela abre mão de tudo o que considera importante e decide ir ao mundo exterior, sua mãe, a Rainha Hipólita (Connie Nielson), demonstra o quanto a ama, e esse amor-fortaleza é agente de mudança e salvação do mundo. Dentre muitas coisas, o corpo e mente Utópicos que Diana encarna, representam uma experiência de mulheridade que, podemos negociar e sentir como avanços, força e poder - passos a frente dum Power Metal cantado por homens brancos. Sem dúvidas, eu me diverti e me emocionei: sem dúvidas, valeu a pena ter assistido mais de uma vez. Apesar disso, sinto que o distanciamento extremo causa a estranha e perturbadora sensação de buscar a voz de Diana por duas horas no vácuo. Após a experiência metalinguística de Diana, na Dc-negativa, a despeito de frustrações, retorno ao real inspirada e confiante, pronta pra desvelar mais camadas da Utopia que é tornar-se mulher neste mundo por desconstruir - e reconstruir.
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