Perguntas Frequentes
Simone Missick |
Essa semana participei dá palestra "Qual a importância de pensar gênero e raça no mundo dos games?", na Campus Party BSB e da mesa Adaptação de Quadrinhos para o Cinema (33ª Feira do Livro). Em ambos os eventos, me deparei com perguntas e comentários que se repetiram também em outros ambientes ao longo da semana, independente do lugar social dos sujeitos, bem como o grau de escolaridade e familiaridade com o tema. Assim, suponho que parte da nossa comunidade de leitoras e leitores possam ter dúvidas sobre os mesmos pontos.
- As mudanças na representação são forçadas?
Curioso que a Nova Marvel já passou de fase algumas vezes, inclusive, títulos como Moongirl and Devil Dinosaur e Black Panther: World of Wakanda já foram cancelados. Apesar dessa reviravolta, a maioria dos questionamentos parte da ideia de que "as mudanças não se justificam narrativamente", e de que "em vez de mudar o perfil étnico-racial, gênero, orientação sexual etc" deveriam criar personagens novos. O mercado de quadrinhos é marcado por um ciclo de altas e baixas vendagens, modulado por estratégias sensacionalistas como "inédito", mortes, zeramentos e reboots que bagunçam cronologias há mais de oitenta anos, portanto, a mudança faz parte da própria dinâmica histórica da Marvel. Assim, a mudança faz parte da história da mídia - ninguém inventou nada agora. No que se refere à mudança de status quo dos personagens, podemos citar o Capitão América Steve Rogers, o Homem-Aranha Peter Parker, que são personagens que têm mais de quarenta anos de publicações mensais, de modo que o esgotamento de suas premissas, origens e mortes é natural. A ocasional mudança de personagens que assumem os mantos - afinal, os valores ligados aos uniformes são mais duradouros que pessoas -, desde que seja feita de forma coerente, ou que o background já seja conhecido pode fazer grande sentido e ainda engajar leitoras e leitores. A Kamala Khan, nova Miss Marvel é uma personagem tão carismática e tão icônica para a atual geração, quanto foi Peter Parker foi na década de 1960.Leia também: Diversidade nos quadrinhos
- Essa história de empoderamento não entra na minha cabeça.
A primeira coisa que precisamos ter em mente é que nenhuma de nós é igual, e que pertencer ao mesmo lugar, raça, religião não significa sensação de pertencimento ou de unanimidade (que bom). Sendo assim, dois valores são essenciais: o respeito (a capacidade de ouvir, sem interromper) e a empatia (se colocar no lugar do outro como ser). Em vez de perguntar "fulana, como é se sentir negro?" você pode SE QUESTIONAR "como é ser o que eu sou? Que dificuldade ou que facilidade isso me dá? Quantas vezes eu penso sobre essa minha "vantagem" e sobre o quanto ela causa desvantagem no outro?" Privilégio é resultado de mecanismos como sexismo, racismo, capacitismo e etc, para compor (e recompor) o arranjo social tal como é e, assim, manter a desigualdade/ naturalizarem as opressões. Se você possui privilégios, empoderar - ou seja, conseguir poder - seja estranho porque você já possui. Neste sentido, os meios os quais as minorias se identificam ou mesmo, os meios dos quais se apropriam para se empoderar (como o funk, rap e outras manifestações de origem no geral negra - e não se esqueça que capoeira já foi a estigmatizada da vez) podem parecer antagônicos, mas isso não se trata de você compreender, concordar ou aderir. Se fosse, já poderíamos caracterizar como paternalismo, por exemplo. Em vez de elucubrações, talvez conversar com os indivíduos, ler o que escrevem e ouvir o que dizem como alguém do nosso tempo (não um olhar iluminista) seja o suficiente para entender o que eu disse.Leia também: Apenas (mais) um pensamento inocente
- Por que vocês gastam tanto tempo criticando parceiros (ex: homens de esquerda, feministas brancas...)?
Há uma célebre frase da ativista negra Sueli Carneiro que sintetiza a resposta: "Entre direita e esquerda, continuo preta". A maioria das pessoas brancas e/ou homens que se ofende com críticas a suas práticas interpretam de forma pessoal e, como crítica à pessoa, sem dúvidas, a interpretação de quem se sente alvo é sempre a mesma: "sou uma boa pessoa, só quero ajudar". Ora, o racismo e o sexismo não são problemas individuais; o racismo estrutura a sociedade e os indivíduos se apropriam dos mecanismos para manterem os privilégios. A negação ("Não sou racista, não") em si já identifica a dificuldade do individuo de lidar com a questão, e não porque ser racista é nocivo, mas porque "ser racista parece feio", "significa ser uma pessoa horrível" no sentido moral. Bem e mal são aspectos religiosos que não são úteis para discussões sobre racismo, e se você já leu algum sermão do Padre Antônio Vieira, já deve entender o porquê. Caso não, é o seguinte: o maniqueísmo (bem versus mal) tem sido usado por todo o tempo histórico registrado, como estratégia de hierarquização e - portanto - de criação/manutenção da hegemonia. Tendo em vista que o discurso da hierarquização da diferença já é naturalizado, potenciais parceiros que estão em posições mais favoráveis na pirâmide social, são incentivados ao longo de suas vidas a exercerem poder sobre indivíduos racializados e isso é passível de crítica. Dizer-se parceira ou parceiro é bem diferente de realmente ser; além do mais, o silêncio nunca nos salvou de nada; assim, nada mais justo que ter o direito de quebrar o silêncio, denunciar e criticar sempre que for necessário.Leia também: DENTE POR DENTE OU O PARADOXO DAS ALIANÇAS
-Sua interpretação já foi além da obra/ já errou?
Interpretação é uma questão de poder, afinal só é autorizado a falar quem usa os métodos e estruturas legitimadas. Vale lembrar que, como um ser marcado pela linguagem (que é uma interpretação do real) o ser humano interpreta o tempo inteiro o real para tentar compreender. Também cabe lembrar que a arte é uma mediação, o que significa que as obras são escritas a partir dum olhar socialmente localizado e interessado, assim como o meu olhar. A diferença entre feministas é que não nos julgamos "neutras" ou "corretas" - diferente dos herdeiros do cientificismo do século XVIII. Como não acredito em verdades, mas de interpretações, também não concordo com o paradigma de "distanciamento" ou "neutralidade" de quem analisa um fato, método ou obra - independente da área do conhecimento. Eu parto de uma epistemologia concorrente da hegemônica e tenho um escopo de leituras/teorias das quais você pode respeitosamente discordar, apresentar argumentos "da vida" inclusive, mas isso não passa duma encenação do antagonismo social. Acredito que um dos maiores ganhos do pensamento mais à esquerda é a autocrítica, então eu procuro sempre ter isso em mente.Leia também: AUTOCRITICA E RUMOS PRA UMA MICROPOLÍTICA FEMINISTA NEGRA
- Você não acha errado julgar o autor?
Nosso método de análise - alicerçado no feminismo nerd - privilegia leitoras de obras. Assim como optamos por "força de trabalho" em vez de "mão de obra", escolhemos sempre considerar o imaginário, a perspectiva, enfim, as lentes usadas para produzir uma obra. Não existe "a coisa em si", mas a coisa em relação ao sujeito que enxerga o mundo de determinada maneira e tem objetivos, poder, legitimação que definirá como interpreta e como representa este mundo. Então, nós não analisamos o autor, como pessoa, mas como individuo que faz parte da sociedade e tem valores fundados nela - normalmente valores racialistas e racistas desde uma identidade branca.Leia também: O que é Branquitude?
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