(Guest) NA NOSSA PELE: reflexões sobre o valor social das pessoas negras


por Adélia Mathias 

Iris Young diz que não é preciso que grupos sociais estejam em lados opostos e nem que tenham deliberadamente a intenção de oprimir uns aos outros para que a opressão ocorra, na contemporaneidade. Segundo ela, práticas cotidianas, corriqueiras, podem ser a própria opressão em funcionamento, sem que os sujeitos sequer saibam que a estão reproduzindo. 

O tempo de posicionamentos sociais marcados fortemente pelo binarismo polarizado, ao menos entre as/os pesquisadoras/es, passou. Com isso não quero dizer que o mundo deixou de adotar a perspectiva binária, as pessoas estão a todo o momento reproduzindo isso: homem x mulher, heterossexual x homossexual; negra/o x branca/o; pobre x rica/o novas/os x velhas/os e muitos outros exemplos.

Entretanto, praticamente todas as pessoas sabem que existem mais do que dois sexos, mais do que duas sexualidades, mais do que duas classes sociais, mais do que duas raças e mais do que duas idades importantes na vida. Ainda reproduzimos, enquanto sociedade, os paradigmas já ultrapassados nos espaços de pesquisas e produção de saber, mas há um tempo, um ciclo, para que esses paradigmas sejam substituídos e estamos exatamente neste momento de transição.

O que alguns ícones dos estudos sociais, como Bauman, chamam de Pós-Modernidade não é a simples prescrição do comportamento contemporâneo, é a observação das práticas de interações interpessoais, é a sistematização do que já vem sendo experienciado e vivenciado pelas pessoas sem que elas mesmas se deem conta. Digo isso para reforçar a minha crença de que o binarismo já tem cedido lugar para formas conscientes de viver e interagir muito mais plurais.

Diante desses pressupostos que carrego comigo, abordo agora uma situação muito corriqueira e extremamente danosa no Brasil, a desvalorização da produção negra.

De modo geral, as pessoas no Brasil pechincham e isso faz parte das relações propostas pelo sistema capitalista em que vivemos, nenhum demérito há em exercer o direito da livre negociação. 

Entretanto, observo cada vez mais pessoas negras reclamando que não são valorizadas em seus serviços: são empregadas domésticas que não tem seus direitos respeitados, pedreiros a quem empreiteiros exigem o máximo do primor e remuneram de forma irrisória/exploratória, trancistas que fazem desconto e ainda assim são tradadas como mercenárias por algumas clientes que recorrem à velha chantagem emocional da irmandade, “puxa, como uma mana pode explorar assim outra preta”? “Você sabe o quanto é difícil conseguir juntar essa grana, e ainda vai aumentar o preço”?

Esses são exemplos corriqueiros para ilustrar que as profissões exercidas por um grupo grande de pessoas negras, sofrem pressão cotidianamente pelo seu custo, seja vinda de outras pessoas negras, seja vinda de sujeitos não racializados. Não há exceção, todo trabalho negro ainda é menosprezado e subvalorizado. 

Para que não digam que eu falo apenas das profissões entendidas como subalternas por muita gente, darei um exemplo recente e famoso, as bolsas da Karol Conká que custavam um preço na média do que custam roupas e acessórios produzidos pela, e para, a classe média branca – o que em si ainda são mais baratos do que algumas outras roupas e celulares que em teoria a população negra não deveria ter acesso, mas na prática vemos negras e negros desfilando orgulhosamente suas aquisições (e não há aqui juízo de valor, sou do time que defende que cada pessoa deve ter o que pode e deseja, essa é apenas a exposição do quanto os objetos cujas/os autoras/es, idealizadoras/es etc. são negras/os são passíveis de maior crítica do que quando esses sujeitos são brancos) – foram motivo de charges acidamente críticas, alvoroço nas redes sociais, julgamento de que a cantora era mercenária e só visava lucro enquanto crianças morriam de fome em algum lugar do mundo.

O livro Na minha pele, de Lázaro Ramos também está passando por essa situação. Na internet, ele tem custado entre 20,00 R$ e 37,00 R$, segundo minha pesquisa para esse texto. O livro foi digitalizado e difundido gratuitamente para grupos em redes sociais com mais de 7 mil pessoas.

Eu sou a favor da difusão do conhecimento. Sou das pessoas que fazem tradução social quando isso é necessário e as teorias internacionais não são disponibilizadas em português pelos motivos raciais que já sabemos, mas confesso que é com grande tristeza que leio comentários pela internet como: “ser escritor não é a profissão primeira dele, ele não precisa do dinheiro dos livros para sobreviver”, ou “a população preta não tem essa grana para um livro”, ou ainda “não se pode ser academicista e querer que o saber fique apenas nas mãos de quem pode comprar livro, a gente mal tem dinheiro para pagar passagem” (trechos de comentários retirados do facebook).

Sobre isso, quero desenvolver 3 pensamentos muito importantes:

Primeiro

Nós, negras/os que lutamos constantemente para a melhoria das condições de vida das pessoas negras no Brasil, estamos mesmo utilizando o argumento de que só devemos ter ética no consumo e pagar pelo que outros negros produzem, se for para SOBREVIVER? Tudo que for para além de ter um teto, comida e necessidades básicas supridas, pode ou deve ser boicotado?

Eu faço parte do grupo de pessoas que luta contra o racismo institucional exatamente porque ele nos impede de prosperar, não posso aceitar o argumento de que apenas sobreviver basta para a população negra. Quantos de nossos ancestrais morreram em insurgências e rebeliões ao longo da história escravocrata nacional para que, hoje, nós reverberemos a ideia racialmente opressora de que negras/os devem ter o bastante apenas para sobreviver?! Sobreviver é o que nossos antepassados fazem desde que foram subtraídos de suas terras, comunidades, culturas. Sobreviver é o mínimo que pessoas têm direito. Qual é a nossa parcela de colaboração para o estágio do racismo atual, quando fortalecemos essa ideologia em que a prosperidade de outro negro nos ofende, nos maltrata, nos dói ao invés de nos orgulhar e nos encher de inspiração? O quanto boicotar a prosperidade dessas pessoas negras não é, em certa medida, boicotar a nossa própria?

Eu chamo cada leitor/a desse texto a pensar honestamente sobre essas questões que levantei, pois são essenciais para entendermos nossa parte de colaboração para o estado de subordinação negra que perdura até hoje. Afinal somos mais da metade da população brasileira e ainda assim encontramos dificuldades robustas, muitas vezes quase intransponíveis, de ascender socialmente e, pior, quando ascendemos temos sempre que empreender um enorme trabalho para não sermos boicotados por outras pessoas, sejam negras, sejam brancas, porque no imaginário coletivo não devemos ocupar posições sociais de destaque. Isso desgasta, não deixa as pessoas negras dormirem uma noite de sono tranquila, e é uma forma de violência silenciosa extremamente danosa à saúde psíquica da população negra.

Não ter direito à paz quando se está na miséria com medo de não ter o que comer e onde dormir adoece, mas não ter direito à essa mesma paz quando se luta pelo menos duas vezes mais para conseguir o que gente branca consegue com a maior facilidade, adoece do mesmo jeito. Há muito trabalho, muita frustração e muita revolta envolvidos nos dois casos, e é assim que queremos ascender? Mantendo os danos psicológicos exatamente iguais? 

Segundo

Todas as pessoas devem ter a cultura e o lazer como pontos de qualidade de vida a serem rigorosamente respeitados. 

Poder ir ao boteco tomar um litrão a 7,00 R$ deveria ser um direito essencial das pessoas trabalhadoras, se esse é o jeito de elas se divertirem; poder ir a uma balada com entrada que varia de 5,00 R$ a 2.000,00 R$ também deveria; do mesmo jeito, consumir literatura entra nesse campo de consumo de lazer e cultura, escolher com o que o próprio dinheiro pode/deve ser gasto é uma coisa muito boa, mas dizer que quem opta por uma coisa e deixa outra de fora não tem condições de comprar um livro que custa em média 35,00 R$ é um argumento muito difícil de aceitar. Livros acabam circulando por meio e empréstimos, compra e venda em sebos, e outras possibilidades. Não podemos é dizer que a falta de ética no consumo, especialmente das coisas produzidas por pessoas negras, é uma forma de resistência.

Estamos resistindo a o quê? Quando não pagamos apenas o serviço prestado por uma pessoa negra, estamos resistindo a o quê? Ao autor do livro que gastou 10 anos para pensar e produzir a obra da maneira mais acessível possível às pessoas negras? (no sentido monetário e também linguístico da produção).

Sim, eu sei que não somos um povo com o hábito de leitura, já que de modo geral a população lê cerca de 1,5 livros por ano, no Brasil, segundo a pesquisa do Pró-livro (2015). Mas essa mesma pesquisa demonstra que entre os não leitores, apenas 2% diz não ler porque acha que os preços dos livros são caros, a maioria declara que não lê por falta de tempo 32% e porque não gosta de ler 28%, números muito assustadores, mesmo que o número de leitoras/es em meios de transportes como o ônibus tenha aumentado consideravelmente.

Não estou apontando o dedo para todos os consumidores negros, não. Sou estudante, fui graduanda quebrada, sei que um livro a gente dá conta de pagar, mas mais um livro começa a pesar no orçamento. Daí eu mais uma vez volto ao assunto prioridades. Qual é a sua prioridade? 

Seria perfeito se conseguíssemos pagar a bebida, o show, o teatro, o livro, a exposição e tudo mais que quiséssemos, mas infelizmente essa não é a realidade da maioria das pessoas. Eu ouso dizer que em parte é por essa falta de valorização do que nós produzimos. Quando eu não posso pagar por alguma produção ou serviço alheio, fico muito triste, mas nunca, NUNCA choro para além da pechincha, porque sei que todo serviço merece ter seu valor reconhecido e respeitado, se não dou conta de pagar, eu me resigno e fico sem, a vida não é sobre ter tudo o que desejamos. 

Acho que está na hora de praticarmos o respeito e o reconhecimento que desejamos ter, é uma corrente que precisa começar em algum lugar. Esperar respeito quando desrespeitamos nossos pares, esperar reconhecimento quando fingimos não ver valor nos nossos iguais, esperar prosperar quando impedimos a prosperidade dos nossos... isso só mantém um ciclo ativo, o das decepções constantes.
O que você e eu podemos fazer para transformar essa situação? Eu tenho meus insights e estou fazendo minha parte. Qual é a sua?

A cantora e apresentadora Karol Conká tem

Terceiro

O fatídico ACADEMICISMO. Desde pequena escuto que a maneira mais sólida de melhorar de vida – intelectual, financeira, social, emocional – é estudando, lendo, avançando nas etapas do estudo formal.

É verdade, eu não acredito que as pessoas com estudo formal sejam mais inteligentes do que muita benzedeira, ou parteira que já vi pelo Brasil só por terem estudado. Entretanto, em uma sociedade onde o estudo formal é um diferencial, não podemos negar que terminar pelo menos a graduação realmente seja a forma mais rápida de reconhecimento e de transformação do saber em dinheiro.

Sempre me fizeram admirar as pessoas que estudavam muito, e só na pós-graduação é que o texto de bell hooks, Intelectuais Negras, bateu na minha cara com a força de uma verdade para a qual eu não queria olhar: para mulheres, especialmente negras, é esperto ser inteligente, mas não demais; ser estudiosa, mas não se destacar; ou seja, ser inteligente e fingir mediocridade para não ferir a masculinidade dos homens, sobretudo dos negros que não podiam estar na base da pirâmide social, como nós negras estamos, afinal seria muita falta de consideração fazer isso com os “nossos homens”. 

Passei muitos anos da minha vida tentando me enquadrar nesse lugar mas nem tanto por medo de ser rechaçada por ser uma intelectual. Até hoje tem gente que me acha preguiçosa por não entender como consigo ganhar a vida dentro de um escritório, ou da minha própria casa fazendo meus trabalhos, e muitas vezes não entendem também qual é o meu trabalho.

Interessante é que essas pessoas esperam que eu saia todos os dias de casa às 5h da manhã para pegar um ônibus lotado e volte pelo menos às 20h exausta, porque isso é o que gente preta deve fazer para ser considerada trabalhadora. Mas essas mesmas pessoas nunca param para se questionar por qual motivo eu ganhar minha vida sem a necessidade de passar por toda essa rotina que “mói gente” antes mesmo de conseguir começar a trabalhar, de fato, as incomoda. Enquanto isso olham para pessoas brancas que passam o dia sem responsabilidades, vivem de renda ou da exploração da mão de obra alheia sem o menor estranhamento.

Estamos colonizadas/os. Ser acadêmica/o sempre foi uma profissão pouco compreendida, sei dos desafios históricos disso, mas não aceitar que pessoas negras não façam parte do modo tradicional de operação da máquina de moer gente embrutecedora de subjetividades é assimilação e pensamento colonizado, inclusive porque não sair de casa todos os dias para cumprir horário não significa que estou em uma situação diferenciada, eu trabalho de verdade. Também sou moída pelo capitalismo porque vendo a minha mão de obra do mesmo jeito, apenas a faço de maneira diferente. 

A forma de resistência de muito trabalhador que mal consegue dormir é fazer o mínimo possível no horário de expediente; tem trabalhador que não consegue mesmo render porque não dá para fazer isso quando se tem uma rotina tão pesada; tem gente que está em casa e trabalha por mais do que as 8h/dia e recebe menos por não ter direito a auxílio transporte e gastar sua própria luz e internet, por exemplo, e os casos são tantos que só é possível exemplificar alguns aqui. Então a questão que fica é: como mensurar o trabalho alheio?

Nunca na história desse país se criou um termo pejorativo para quem vive a vida acadêmica e/ou intelectual. O termo academicismo vem com um peso racial e de gênero surpreendente! Desde quando fazer parte da vida acadêmica e falar como um acadêmico é algo a ser combatido? Desde quando querer, e de fato ser, intelectual é um defeito que precisa ser exterminado? 

A linguagem ajuda a organizar pensamentos e forma de ver e estar no mundo, então existem conceitos complexos aos quais só é possível alcançar com determinadas ferramentas linguísticas e conceituais que somente algumas instâncias de trabalho sobre o pensamento conseguem nos dar, usar termos acadêmicos não significar necessariamente esnobar quem não os domina, embora muita gente faça isso.

Até hoje homens brancos acadêmicos falam besteiras horripilantes de se ouvir/ler (a vontade de citar os nomes é enorme) e praticamente ninguém os questiona, mesmo sabendo que estão completamente equivocados ou agindo de má fé para a manutenção de um sistema excludente, racista, machista e/ou homofóbico, por exemplo.

Eu tenho minhas ideias sobre o uso pejorativo da palavra “academicismo” e honestamente acredito que essa matriz de negação ao que é bom nos chega fortemente junto com as ações afirmativas de raça, no Brasil. 

É uma lindeza sem fim que estejamos acadêmicas/os, isso não é motivo para vergonha, segredo ou medo. Estamos transformando as coisas boas em penas pesadas a cumprir e aí voltamos lá para o ponto 2 em que pesamos a mão com nossos pares porque não conseguimos aceitar que eles, e nós mesmas/os, merecemos uma vida melhor, com qualidade de vida, com descanso, paz. Estamos exercendo o papel de quem primeiro nos oprimiu e livrando essas pessoas de lutarem até por esse privilégio. 

Enquanto isso, sem a necessidade desse embate, pessoas brancas nadam nos seus privilégios, e têm tempo de pensarem em estratégias como as que nos fazem retroceder política e socialmente a tempos em que pessoas negras eram completamente miseráveis e sucumbiam à fome. Sabe aquele ponto primeiro sobre sobrevivência? Então, estão nos tirando até isso e não estamos sequer percebendo. E isso (o retorno a tempos piores vividos pela população negra) às nossas custas, porque estamos preocupadas/os demais em não deixar o trabalho dar prosperidade àquele negro que acreditamos ter mais do que merecia.

Esse texto é sobre o Lázaro, sobre a Karol Conká, sobre empregadas domésticas, pedreiros, trancistas... esse texto é também sobre mim e você, e eu me aproprio do livro do Lázaro Ramos e ouso dizer que Na nossa pele é que toda uma ideologia colonial racista se consolida, mas é também sob ela que está a possibilidade da transformação de como escolhemos lidar conosco e com nossos pares.

Adélia Mathias é uma Mulher negra, filha de mãe solo, doutoranda de Literatura na Universidade de Mannheim
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