Jessica Jones: Segunda Temporada ou Onda?
Por Anne Caroline Quiangala
Jéssica Jones foi um dos destaques do ano da mulher (2015) no audiovisual. Isso porque a série discutiu com seriedade problemas enfrentados pela maioria de nós, destrinchando e dando nome a tudo: trauma, violência e manipulação (gaslighting).
Para muitas delas (brancas), foi libertador ver na tela uma mulher comum, forte, corajosa, imperfeita e - principalmente - uma sobrevivente a inúmeros abusos. Eu, que sou negra, já não posso dizer que sinto o mesmo, afinal, a série transborda racismo.
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Sem dúvidas, há grande mérito na obra como um todo. Jessica tem suas atitudes e escolhas próprias, além de fragilidades, contradições e tudo o mais que constitui o que chamam de natureza humana. Ela lançou a pedra fundamental no Universo Cinemático Marvel (MCU) vivendo a afirmação de que "não existe natureza feminina" e mais, "mulheres não são um tipo deformado de homem".
Feministas de segunda onda que sejam os discursos desta série da Netflix, fato é que Jones trata sua melhor amiga (quase irmã) Patsy como igual, mas se aproveita da boa vontade de Malcom, como já o fez com Luke Cage, mas também já tentou a sorte com a imponente Claire Tample. Há quem diga que Malcom é masoquista porque ele é o sujeito que se submete à amizade tóxica, mas será tão simples assim?
Meu feminismo não é sobre sentir catarse na vingança. |
A Segunda onda da Jessica Jones
A inspiradora relação entre Jessica e Patsy exemplifica o sentido de sororidade. Mulheres que se ajudam mutuamente, se respeitam e se tratam como semelhantes em todos os níveis. Afinal, elas são mesmo iguais no ponto de vista de direitos, então é até natural o adágio "uma sobe e puxa as outras" pra elas. Ainda que o tempo tenha consolidado a amizade, é importante observar o quanto existe um investimento emocional que não é transformado em marcadoria. Jessica não quer muleta emocional, nem dinheiro nem o corpo e nem a fama de Trish; seu único desejo é estabelecer a relação em si .
O mesmo ocorre com Luke? Malcom? Oscar Orocho? Fato é que ela diz para uma pessoa negra, supostamente um amigo que:
Só entra em pânico com a polícia quem já andou de camburão
(Jessica Jones: Temporada 2, Episódio 3).
Em que planeta ou em qual tempo ela vive pra nunca ter ouvido falar de Black Lives Matter? A falta de compreensão da personagem faz com que ela seja não apenas fruto de seus privilégios, como seus feitos mais ovacionados estejam ligados à violência física, má educação e insensibilidade. Essa compreensão rasa de que fugir dos padrões de gênero basta para ser feminista, marca um claro lugar de fala privilegiado, afinal, somente mulheres brancas, esguias e revoltadas são consideradas "belas com raiva". Entenda que o que está em jogo aqui não é a superficialidade da beleza, mas a catarse que as pessoas sentem com a performance feminista tão limitada a socos.
Num só episódio, ela objetificou um homem negro (again), que por acaso é objetificado posteriormente pela Trish e mandou o latino desentupir a privada tarde da noite, mas não esqueçamos do episódio piloto ser marcado pela violência física contra um homem de ascendência asiática. Sem dúvidas, estar cercada de homens não-brancos que sentem o peso do poder de agência dela ancoram a série numa espécie de feminismo anacrônico, que usa para agredir, humilhar e afirmar que falta de empatia é liberdade.
A ênfase na sororidade, somada à falta de empatia para com o ferimento de Malcom, por exemplo, enfatizam aquela crença de feministas dos anos sessenta de que os homens são todos iguais. Ora, eles todos têm poder, mas se estivermos falando de homens não-brancos, o poder é contextual. Isso significa que o racismo como estrutura social é determinante para que mulheres brancas se beneficiem e exerçam poder também.
Já no que tange a relação da heroína, e da série em particular com mulheres Negras, a palavra-chave é catástrofe. Na primeira temporada, Killgrave leva Jessica a destruir o corpo da Reva, companheira de Luke Cage (o homem que ela persegue, e, com quem se relaciona sexualmente "para sentir alguma coisa"). Quanto a Claire e Misty Knight suas presenças são tão infundidas de dignidade que ambas notaram o quanto não valeria a pena tentar estabelecer uma relação de amizade com Jones.
Na segunda temporada, aparecem exatamente duas Negras que só aparecem para serem assassinadas: a carcereira e Ruth Sunday (parceira do agente Costa). Enquanto a carcereira é absolutamente gentil com a mãe de Jones (Anisa Jones) e acaba brutalmente morta, Sunday - que já fora empurrada por Jessica - é usada como escudo e defenestrada por Anisa. Enquanto Ambas as personagens assassinadas tem o horror de seus corpos mostrados em tela por tempo maior que o de demonstrar sua desconfiança para com Jessica, os dramas pessoais dela se proliferam. Depois dessas mortes é evidente que o discurso da série gira em torno de fortalecer Jessica Jones, ao passo que retrata mulheres Negras como desconfiadas, agressivas e competitivas, tal como as narrativas brancas sobre história do feminismo.
Para reiterar a abjeção por pessoas não-brancas demonstrada ao longo de duas temporadas de Jessica Jones, até Jeri Hogarth, que é lésbica, tem o seu momento de exterminar Shane, um charlatão que roubou bens materiais que ela inclusive conseguiu reaver.
Noutra ocasião já expliquei que "Transar com gente negra não é antirracismo". |
Na segunda temporada, aparecem exatamente duas Negras que só aparecem para serem assassinadas: a carcereira e Ruth Sunday (parceira do agente Costa). Enquanto a carcereira é absolutamente gentil com a mãe de Jones (Anisa Jones) e acaba brutalmente morta, Sunday - que já fora empurrada por Jessica - é usada como escudo e defenestrada por Anisa. Enquanto Ambas as personagens assassinadas tem o horror de seus corpos mostrados em tela por tempo maior que o de demonstrar sua desconfiança para com Jessica, os dramas pessoais dela se proliferam. Depois dessas mortes é evidente que o discurso da série gira em torno de fortalecer Jessica Jones, ao passo que retrata mulheres Negras como desconfiadas, agressivas e competitivas, tal como as narrativas brancas sobre história do feminismo.
Para reiterar a abjeção por pessoas não-brancas demonstrada ao longo de duas temporadas de Jessica Jones, até Jeri Hogarth, que é lésbica, tem o seu momento de exterminar Shane, um charlatão que roubou bens materiais que ela inclusive conseguiu reaver.
"SEJA GENTIL, EUGENE PODE SER UM BABACA" (T2 E3)
Mostrar o vilão Killgrave como o mau absoluto encarnado no corpo masculino, branco e europeu, destrinchando o vazio espiritual que ele tenta preencher usando as pessoas é, sem dúvidas, uma jogada inteligente. O problema é que, na ausência do "homem mau" (que é cheio de contrapontos) temos a "mulher branca heróica" capaz de se entregar ao racismo incidental. Derrubar Malcom na primeira temporada (podemos pensar no que o nome simboliza, na condição física e mental, na racialidade na qual vivemos...), evidencia, no mínimo, a falta de lealdade à amizade.
"Ah, mas a Jessica não é leal a ninguém. Ela não tem ética nem causa porque está estraçalhada".
Não devemos usar o sofrimento de alguém como medida para comparação, afinal, não existe hierarquia de opressão. Entretanto, vivemos um momento histórico no qual o feminismo (branco) racista não será mais chamado para conversar e nem considerado avanço. É preciso que mulheres brancas reconheçam que enaltecer ícones como Jessica Jones não passa de manutenção de violências que ferem muito mais corpos de pessoas racializadas no geral e Negras em particular. É irônico que ela envie Malcom para convencer Eugene, o antigo síndico do seu prédio que é gay e tem um gosto por homens racializados. Aliás, curioso e bastante racista que todas as pessoas homossexuais da série se interessam sexualmente por indivíduos racializados de forma objetificadora. As heterossexuais, também.
Uma substancial mudança na representação de mulheres na ficção tem se consolidado desde 2015, o "ano das mulheres no audiovisual". Dentre as mais destacadas estão Furiosa, Jessica Jones, Rey, a Mulher Maravilha e note: são todas brancas. Ora, a tônica dos rompimentos e continuidades é que para cada suposta heroína ~branca~ sempre haverá uma clara exibição dos corpos que a lógica supremacista entende como pesando menos.
Jessica Jones, Cap. Marvel Carol Danvers, a Batwoman (Renascimento) e, em certos casos, até a Princesa Leia, constituem um hall de mulheres fortes, inspiradoras, que agem de forma heróica, "até se relacionam" com pessoas não-brancas ou droides, mas me causam desconforto pela relação que estabelecem com as "diferentes".
O desconforto é uma ansiedade fruto da indução, isto é, o ato de prever cenas (que são experiências) de violência em que uma pessoa branca violenta física ou emocionante quem é diferente delas, dada a reiteração em cada obra. Isso vai desde ignorar, demitir diversas vezes, desmerecer e usurpar até empurrar a pessoa para ganhar tempo. E quem faz isso apenas enfatiza com a naturalidade de quem tem poder.
Enquanto essas cenas são inúteis para a narrativa, elas funcionam como subtexto, ensinando à observadora que é natural ignorar, silenciar, desprezar quem tem marcador social de "não-pessoa" por ser negro, pobre ou adicto.
Com o fim da segunda temporada de Jessica Jones podemos ter certeza de que a vontade de poder do feminismo branco voltou com toda a força e comercialização pronta pra destruir nossos corpos. Dilemas de mãe e filha e o aprisionamento da "feminilidade" não justificam a violência gráfica nem o show de brutalidade conosco. A ameaça é real, mas se você não viu, eu sinto muitíssimo.
Com o fim da segunda temporada de Jessica Jones podemos ter certeza de que a vontade de poder do feminismo branco voltou com toda a força e comercialização pronta pra destruir nossos corpos. Dilemas de mãe e filha e o aprisionamento da "feminilidade" não justificam a violência gráfica nem o show de brutalidade conosco. A ameaça é real, mas se você não viu, eu sinto muitíssimo.
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