Malhação Viva A Diferença
Em
24 de abril de 1995 foi ao ar o primeiro episódio de Malhação, série da Globo,
que ainda se utiliza do formato telenovela e tem um conteúdo mais voltado para
o público adolescente. Já se passaram quase 23 anos desde então, inúmeros
atores passaram pelo folhetim, inúmeros roteiristas e eu acompanhei boa parte
deles.
Por Camila Cerdeira
Assisto
Malhação desde 1995 quando o programa ainda tinha como cenário uma academia,
justificando assim o título. Vi a transição para o Múltipla Escolha e a maioria
das temporadas que tiveram o colégio como cenário. A última temporada que de
fato acompanhei foi a de 2011, Malhação Conectados, depois disso via no máximo
um ou outro episódio e nada realmente chegava a me prender.
Até
que ano passado as chamadas de Malhação Viva A Diferença me deixaram curiosa.
Primeiro que a temporada não seria focada no romance do casal protagonista como
sempre era feito, dessa vez o foco seria na relação de amizade de cinco garotas
pertencendo a mundos completamente diferentes. O segundo motivo era que essa
temporada era assinada por Cao Hamburger.
Cao
Hamburger é um roteirista e diretor que marcou não apenas a minha infância como
a de muitas pessoas que hoje se encontram entre seus 20 e 30 anos. Ele é o
criador de Castelo Rá-Tim-Bum, Disney Club/Cruj, programas que marcaram
crianças e jovens na década de 90 e começo dos anos 2000. Ele também é o
responsável pela série da HBO Brasil, Filhos do Carnaval, e pelo filme O Ano
Que Meus Pais Saíram de Férias. Ele é alguém extremamente gabaritado para o
projeto e que sabe adequar o seu roteiro com perfeição para a linguagem do
público que ele quer atingir.
A
prova concreta disso são os 213 episódios que Viva A Diferença exibiu abordando
os mais diversos temas com propriedade e sensibilidade sem nunca parecer
exagerado, didático ou forçado. É uma série adolescente com roteiro de extrema
qualidade e que reconhece a necessidade de abordar temas tidos como tabu com
naturalidade, pois está tratando da realidade que o expectador vive
diariamente.
Se
passando pela primeira vez entre a Zona Sul e Leste de São Paulo a temporada
narra a história de cinco garotas, Lica, Bené, Tina, Ellen e Keyla, que por
obra do acaso ficam presas no mesmo vagão de metro devido a um apagão. A
situação se intensifica quando as meninas se veem obrigadas a fazer o parto de
Keyla mesmo sem estrutura. Essa situação inesperada acaba formando um laço de
amizade entre as cinco garotas tão diferentes.
Keyla
é mãe adolescente e não sabe o paradeiro do pai biológico de seu filho. Ellen é
uma jovem que mora na favela da Brasilândia e tem paixão por computadores. Lica
vem de uma família rica e está passando pelo conturbado divorcio de seus pais
ao descobrir que o pai não apenas traiu a esposa durante todo casamento como
ele também é o pai biológico de sua melhor amiga. Bene é uma jovem que se
encontra dentro do espectro autista e por isso tem dificuldade de sociabilizar
e fazer amigos. E por último Tina, uma descendente de japonês que está tentando
encontrar seu próprio caminho a contragosto de sua mãe.
Como
o próprio título releva o mote da temporada era sobre lidar com as diferenças.
E lidar aqui não estar no sentido puramente de tolerar, mas de aceitar e
compreender. Um excelente exemplo disso é a personagem da Bene, que possui
Síndrome de Asperger, uma forma de autismo. Daphne Bozaski, atriz que deu vida
a personagem, fez um trabalho brilhante na caracterização. Você sente empatia
imediata pela personagem e isso aproxima o espectador e faz com que perceba que
pessoas dentro do espectro autista não são anormais ou esquisitas, mas tem sua
própria forma de encarar o mundo, como todos nós.
Além
da questão do autismo e o bullying que muitas vezes pessoas sofrem por isso
também foram abordadas inúmeras outras questões sociais. Como por exemplo o
racismo a as diferentes formas de racismo que existem. Como havia uma
protagonista negra e outra asiática foi abordado como essas duas minorias
sofrem de forma diferente o racismo e como ambos tem questões históricas por
traz. Além de apontar que sim, uma minoria pode ser preconceituosa com outra,
não é por que um asiático sofre racismo que ele automaticamente está isento de
ser racista com um negro e vice e versa.
Devido
ao elenco ser tão diverso, foi possível que diversas cenas acontecessem sem a
participação de um ator branco. Algo extremamente raro na televisão brasileira,
haviam cenas de famílias inteiras apenas com negros o que é algo do cotidiano
dos brasileiros, mas que raramente é visto na televisão nacional. A avó da
Ellen segue uma religião de matriz africana e isso era falado abertamente e de
forma respeitosa.
Pela
primeira vez eu pude ver a minha realidade retratada na TV. Eu sou neta de uma
umbandista e fui uma aluna bolsista em escola particular exatamente como a
Ellen. Eu sei o que é estudar numa escola onde só tem gente branca, o que é
sofrer racismo dentro da escola, o que é não ter o mesmo poder aquisitivo que
os demais colegas de sala, o que é ter que se esforçar o dobro para ter o que
todos os outros alunos têm. E tudo isso foi abordado, uma das cenas que mais me
emocionou foi depois de ataques racistas vindos tanto da direção da escola
quanto de colegas de sala a Ellen chora falando que está cansada de ter que ser
tão forte o tempo inteiro.
Pela
primeira vez Malhação teve uma protagonista não hetero. Lica ao longo dos
episódios explora sua sexualidade, primeiro ela decide ter um relacionamento
aberto com MB e depois que os dois terminam ela engata um romance com Samantha.
Infelizmente em nenhum momento foi dito por nenhuma das personagens que Lica e
Samantha são bissexuais, ainda que tudo dentro da novela indique isso. Apesar
disso, foi discutido muito sobre lgbtfobia, tanto através das duas quanto
através de Gabriel, um rapaz abertamente gay e meio irmão de Keyla. Incluindo
sobre o processo de aceitação dos pais e tivemos os mais diferentes tipos.
Martha, mãe de Lica, aceitou com naturalidade, Edgar, o pai de Lica, tem
preconceito velado e disfarça sua homofobia com discurso de querer preservar a
imagem da escola que é diretor. Já Roney tem uma jornada, primeiro por não
saber que era pai de Gabriel, depois descobre que o filho é gay assumido e tem
um namorado e não sabe como reagir a informação procura orientação do amigo e
diretor pedagógico Boris.
Tina
logo nos primeiros episódios se envolve com o irmão mais velho de Ellen,
Anderson. Os dois se conectam através da música e precisam enfrentar ambas as famílias,
Ellen e a mãe do rapaz tem medo que a diferença de classe social coloque
Anderson em perigo. Já Mitsuko, mãe de Tina, não aceita que a filha não apenas
não namore alguém que também é descendente de japonês, como um rapaz negro, de periferia
e que trabalha como motoboy.
Além
dos temas envolvendo as 5 protagonistas. Ainda foram abordadas questões como
assexualidade, através do personagem Guto, que apesar de não ter em nenhum
momento se declarado assexual ou ace, explicou sobre não sentir interesse
sexual em diversos momentos. Abuso de drogas, através do pai de Tato, que é alcoólatra
e devido a isso chegou a viver na rua. MB e Lica usaram drogas ilícitas,
levando Lica a ter uma overdose e MB a bater o carro. O ex-namorado de Lica
chegou a ter uma trama onde o pai, um poderoso empresário se envolve em escândalo
político e lavagem de dinheiro, foge deixando o filho para trás e o rapaz sente
a necessidade de se drogar para lidar com a situação e até cogita suicídio.
Clara, a meia irmã de Lica, tem um arco de cutting, onde ela usa automutilação
como válvula de escape para depressão e problemas familiares. Tanto no caso de
Lica quanto no de Clara o programa enfatiza sobre as personagens terem ido para
terapia.
Também
foi discutido sobre violência contra a mulher. Em um arco Edgar, pai de Lica,
dá um tapa na filha na frente de toda a escola e a questão foi levada ao
conselho tutelar. Já a personagem K1 revelar ser assediada pelo padrasto e o
caso é encaminhado e resolvido na delegacia da mulher.
Eu
poderia continuar a lista de questões relevantes socialmente que foram
abordadas, mas a minha intenção é realmente que o máximo de pessoas possíveis tentem
ver essa temporada. Em muitos anos não via um roteiro tão afiado e um elenco
tão entregue em cena e não estou falando apenas do universo de Malhação ou das
demais novelas da Globo, estou falando como um todo. Considerando séries
estrangeiras, Malhação Viva A Diferença não ficou devendo nada a ninguém e
conseguiu representar muito bem a realidade brasileira, seja na escola pública
ou na particular, independe de qual classe ou raça você faz parte haviam histórias
que representavam a todos e que naturalizavam vivencias de quem nunca pode se
ver na televisão. Certamente será uma temporada que vai deixar saudades.
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