O HUMOR MACABRO DE JULIA GFRÖRER
Mundane Grimore de Julia Gfrörer (2011) 1-Não tem nada divertido nessa tirinha. 2 - Você quer diversão 3- Olhe no espelho 4 - agora tem uma grande piada. |
Por Anne Caroline Quiangala
Quem fere mais quem[1]
Para quem pertence ou já pertenceu a alguma cena alternativa do metal, a tira acima pode soar familiar na junção de horror e terror no intuito de causar um desconfortante tom ambivalente (perturbador e humorístico) o qual chamo de humor macabro (não humor negro, como ela). Assim como apreciar uma banda de Heavy, Thrash ou Death envolve um infinito de exterioridades em relação à música, as zines produzidas por Julia Gfrörer demandam uma introdução ao seu imaginário sombrio permeado de plantas, monstros, alquimia medieval, ocultismo, sangue, sexo, tabus e dor. Respire fundo e EU CORTEI TANTA COISA QUE VOCÊ PENSOU QUE EU FOSSE UMA DJ: sexo versus morte, máquina versus homem, homem versus mulher, mulher versus sua mãe.
Pra isso, é importante aceitar a interpelação agressiva que não deseja nada mais que deslocar o conforto literalmente. Sem dúvidas, parte dos meus desconfortos (lá pelos dez, doze anos) estava ligada à percepção de que ser mulher implicava um tecido de violências especificas que não eram censuradas nem nas capas de álbuns nem nas letras de músicas. Num certo momento, eu pensei que dificilmente havia autoria feminina naquelas "artes de agressão" (pressupondo que ninguém depõe contra si) e que dificilmente eu seria surpreendida por desconforto instaurado por violações de valores cristãos (pela previsibilidade e meu não cristianismo). Cada Belzebu, Pazuzu, Capeta, Demônio, Eddie era mais um até que a década de 2000 trouxe capas até soft em que "havia um demônio e valeu". As faces do bizarro gfroferiano me abocanharam quando me senti paralisada sem ter o que dizer. Se a sensação foi de desespero, o quadrinho é, no mínimo, controverso. As ilustrações arrancam nacos da subjetividade de uma só vez. Quem é 666, quem é a besta quando Black is the color (2011)?
Preto em todas as obras de JG tem a conotação da literatura gótica, de exploração do inconsciente como modo de apreender o mundo que sobrepõe a razão. É por isso que vemos tantos súcubos, éguas da noite, sereias. Conceitos mais ou menos difundidos de Freud e Lacan são usados sem medida nas narrativas, a fim de checar a fragilidade humana e atualizá-la como uma piada a ser reiterada sutilmente e revelada.
To Dark to see por Julia Gfrörer [detalhe] |
Com sangue nas mãos você não pode estar limpa[2]
Há quem diga que o pior dano que cada uma de nós pode sofrer é o que nós nos causamos - acho que quem disse foi a Nomi, em Sense 8 (Netflix, 2015). É essa verdade que a maioria das pequenas narrativas roteirizadas e desenhadas por Julia Grförer instiga. O vazio e as pulsões que acompanhamos voyeristicamente[3] (na pele da personagem/em geral, o protagonismo é masculino) mostra o que há de mais assustador: a contemplação de todo aquele mal que habita o ser humano prenhe de si. Eu que não sou de psicanálise - como sabe minha xará psicanalista - não vi outra forma de ler aqueles símbolos místicos, medievais perturbadores.
Num traço realista inspirado pelas ilustrações e xilogravuras medievais, acompanhamos o descortinar de piadas sombrias e ironizações sobre o imaginário Romântico/Gótico. Num quadro ela está quebrando a quarta parede, olhando dissimuladamente para a leitora e sendo envolvida por uma entidade sexual que deseja possuí-la; ela responde: como eu poderia dizer não a você? Algo como bem vinda ao lado sombrio de Lilith que há em você; como no mapa astral, a parte escura, desconhecida é a que precisa ser conhecida. Não raro, esse conhecimento sobre si mesma vem do sacrifício de sua inocência, de valores intactos e da segurança sobre ser unicamente uma "boa pessoa", por isso que conhecer-se a si mesma é ter seu próprio sangue nas mãos. E, noutra perspectiva, não existe conhecer-se saindo incólume, de mãos limpas.
E, por falar em desbravar-se:
Black is the Color (2011) por Julia Gfrörer |
Preto é a cor
Em Black is the color (2011) um marinheiro é deixado à deriva num pequeno barco, para morrer. A passagem de tempo não é percebida por ele, que está em jejum e sem água potável há dias. Esta privação é um fator interessante de ambiguidade da história, porque determina as perspectivas de leitura.
Podemos atribuir a relação do marinheiro com a sarcástica sereia (Eulália) aos delírios ou mesmo às fantasias dele, mas também podemos ler a narrativa compreendendo que a sereia é um trickister, isto é, uma entidade cuja razão de ser é borrar as fronteiras da moralidade (induzi-lo ao adultério). Compreendo a presença do elemento fantástico como desdobramento da própria imagem psíquica de feminilidade do protagonista. Esta última possibilidade me interessa particularmente porque é possível identificar a figura da sereia (mulher das profundezas) que faz o donzelo experiênciar suas fantasias mais secretas. Essa imagem do rapaz imberbe também aparece na historieta Phosphorous. O orgasmo masculino como morte é evocado com frequência, enfatizando que a representação das mulheres é tributária duma exterioridade esdrúxula. A mulher-natureza, tão frequente nas histórias de JG que leva à questionar os papéis de gênero. Algumas perguntas podem surgir independentemente do comprometimento político de quem lê: Por que não sabemos o que essa mulher pensa? Por que ela parece tão instintiva?Por que todas as mulheres são criaturas e os homens são "sujeitos"?
A morte da inocência e a ironia do amor-romântico como alegorias funcionam muito bem com a estética escolhida pela artista para dar o efeito místico (afinal, quem tem fantasmas tem tudo) e, ao mesmo tempo, criticar a realidade cultural:
1 - Você é muito gostosa/ 2 - ah Kanye /3 - Eu só /4 - queria que você não tivesse dito isso. (Sobre sexismo de Kenye West ver Kanye West's Monster Misogyny) |
Embora os comprometimentos políticos da autora nem sempre sejam postos de forma direta, na maior parte das vezes, a ironia é tão exagerada, que gera ruídos nas interpretações que tendem a se fixar na literalidade do discurso. Quando um personagem (que parece o Edward de Crepúsculo) pergunta à JG se ela pensa no amor verdadeiro e no sacrifício (que são marcas presentes no discurso não verbal) ela responde que pensa em unicórnios, Jesus e contos de fadas. Tanto é mais cômodo para os homens, viver o amor-romântico (portanto esse amor é falácia), na concepção de Gfrorer, quanto Jesus é um tipo de conto de fadas.
Em suma, é obvio que ninguém sai da leitura de qualquer que seja o quadrinho de JG ilesa. Alguns ganchos das histórias engatam em pontos específicos do nosso imaginário e desnaturalizam, e perturbam e aterrorizam sutilmente, sem deixar rastros além dos "sulcos" no papel branco que fazem saltar as linhas de sexo, profundezas e muito humor macabro.
Julia Gfrorer autografando o Black is the color |
Referencias
- www.tcj.com/julia-gfrorer
- www.facebook.com/thorazos/photos
- ladyscomics.com.br/morte-horror-e-realismo-bizarro-julia-gfrorer
Notas
[1] Gfrörer tem um tumblr em que é possível acessar suas referências e muito do seu imaginário. Dada a desordem, a bizarrice e a aleatoriedade, sugiro mais como experiência estético-sombria.
[2] Verso da canção Black Veil da banda estadunidense Straight Line Stitch
[3] Aqui faço referencia ao voyerismo da catástrofe. Ideia que a filósofa Marcia Tiburi descreve num artigo sobre a "nossa dor e a dor dos outros". Basicamente, o prazer em olhar a dor alheia está ligado à certeza de que observar quer dizer que está ilesa daquela catástrofe. Obviamente esse gozo do mal estar alheio mostra em que pé está nossa solidariedade e compaixão
(compassio = sentir junto).
Comente!