REVIEW - Feminismo em Comum: para todas, todes e todos
Feminismo Em Comum é mais um dos livros necessários para esses tempos sombrios |
por Anne Caroline Quiangala
- Feminismo em Comum: para todas, todes e todos.
- Marcia Tiburi
- Editora Record (Rosa dos Tempos)
- 72 páginas [eu li a versão Kindle]
- 2018
Feminismo em Comum: para todas, todes e todos é um convite acessÃvel à reflexão, que inclui todas as pessoas (e identidades) dispostas e comprometidas com a ampliação da visão de mundo. Acredito que, por mais que o livro apresente reflexões introdutórias, indivÃduos em qualquer ponto da experiência feminista, em termos de leitura ou de ativismo, podem aproveitar a leitura. Seja porque sempre há conexões entre lutas as quais precisamos internalizar, seja porque em momentos de luta direta necessitamos de desenvolver um vocabulário mais amplo e crÃtico para denunciar as opressões.
EM COMUM OU INCOMUM
No evento Diálogos Contemporâneos (março a junho de 2018 em Campo Grande e BrasÃlia), Tiburi participou do primeiro debate, intitulado Vozes dissonantes e autoritarismo na internet (Museu Nacional: BrasÃlia, 13 de março de 2018). Segundo ela, o subtÃtulo Em Comum, diz respeito à ambivalência da sonoridade incomum e do propósito de contribuir para tornar o Feminismo comum, cotidiano, ou seja, uma teoria prática.
Pressupondo que o dialogismo é a convivência entre as diferenças, Filosofia Em Comum: Para todas, todes e todos parte de reflexões contemporâneas sobre identidades, se posicionando a favor duma democracia radical em que haja espaço para que todas as pessoas (por isso todas, todes e todos), possam se expressar, reinventar e reimaginar o mundo a partir do pensamento crÃtico.
Aliás, o dialogismo sempre esteve presente nas obras de Marcia Tiburi, tanto para nos ensinar que a filosofia é acessÃvel a quem se interessa por pensar, quanto para mostrar que pensar junto é a melhor forma de compreender a realidade, os fenômenos e experiências.
Destaco as minhas preferidas: Filosofia em Comum: Para Pensar Junto (2008), Dialogo: Desenho (2010) e Como Conversar com um fascista (2015). Com o intuito de propor uma reflexão dialética, o novo tÃtulo assinado pela filósofa enfatizam a importância de pensarmos alternativas para a ação, o modo de fazer e pensar que sejam libertários no âmbito do que é "privado" (micropolÃtica) e refletido na polÃtica partidária. O único detalhe que ela defende é que, por meio dos Feminismos, as pessoas podem se libertar da linguagem e prática estilhaçada, empobrecida e fechada para o outro que reflete a mentalidade fascista. Neste sentido, ela mais propõe caminhos e métodos para pensar o feminismo (ou os feminismos), do que fecha uma ideia.
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Marcia Tiburi, como uma intelectual comprometida com a democracia, está se posicionando de maneira fundamental nestes tempos de Golpe. Seja publicando livros acessÃveis (conceitos, linguagem e preço de capa), defendendo uma união estratégica das esquerdas e participando de debates pelo Brasil, ela inspira e combate a linguagem pronta e descomprometida com a verdade. |
FEMININA OU FEMINISTA?
A partir dos livros e palestras de Marcia Tiburi podemos apreender o processo de crÃtica concreta (aquela que analisa, demonstra e argumenta) e sua completa oposição à crÃtica abstrata (aquela restrita ao "gostar"). Essa perspectiva faz com que, paralelo à discussão a respeito do Feminismo, ela destrinche o patriarcado como dispositivo que difunde um programa de pensamento pronto, totalmente restritivo.
É a partir disso que chavões como "não sou feminista, sou feminina" são desarmados. Ela demonstra que:
O feminino é uma demarcação estético-moral para mulheres marcadas pela negatividade.
Posição 421 [Kindle].
ou seja, ser mulher é um marcador opressivo, que pode ser acrescentado a outras mais, como raça, classe, sexualidade e plasticidade para ser reduzida a corpo útil e para o trabalho, objetificação e outros tipos de exploração. Feminina, segundo essa perspectiva, é aquela que foi seduzida pela ideia de que pode tirar vantagem da relação com os arautos das opressões - e não estamos falando de performances per se, mas da negociação que inviabiliza a democracia radical.
A transparência da leitura (marcar o lugar de fala, interesse e objetivo) que os feminismos propõe tem em vista, não repreender a "feminilidade", mas refletir a respeito do sadomasoquismo que envolve expressar e defender a conformidade (e a destruição de corpos fora da norma) em detrimento da democracia radical. Assim, em toda a sua pluralidade de perspectivas, o Feminismo como método de reflexão é o real convite para uma coletividade que pensa pra além da "tolerância", da "diversidade" e da "inclusão", porque compreende a importância de dissolver o estigma da diferença, fazendo da pluralidade o comum.
Sobre a decisão de se filiar ao Partido dos Trabalhadores, Tiburi afirmou que este é o momento decisivo de deixar querelas para uma hora na qual a democracia estiver protegida. Por hora, ela defende que unir forças é a melhor estratégia e que isso deve ser encorajado pelas personalidades proeminentes. |
O QUE DEIXA A DESEJAR?
Acredito que a linguagem e a brevidade do livro já evidenciam o objetivo da autora de pluralizar ideias, reflexões e conceitos básicos a respeito da polÃtica, ética e teoria feminista sem impor verdades. É positivo que ela compartilhe histórias suas e de sua famÃlia para demonstrar a urgência de que todas as pessoas se informem e se comprometam com uma ética feminista, inclusive homens cisgênero brancos heterossexuais de classe média. É particularmente útil que ela ofereça orientações para que a leitora siga suas pesquisas, construa seu conceito e prática de feminismo e popularize ainda mais. Ela encoraja a leitora para que expresse, escreva, fale, discorde racionalmente e assim contribua para uma nova sociedade.
Apesar disso, o livro se demora em pensamentos que marcam a área de formação da autora, ao passo que ignora importantes teóricas mulheres, e, em especial Negras. A reflexão sobre Lugar de Fala e Lugar de Escuta, é simples e instrumenta uma leitora que nunca ouviu falar desses conceitos, mas grosseiramente ignora o livro O que é lugar de fala? de Djamila Ribeiro lançado em 2017.
Outra reflexão importante que ela elucida é a respeito de fardos históricos objetivos e subjetivos, que remetem tanto à Grada Kilomba, quanto a outras teóricas que não foram citadas. Uma vez que carece de referência, pressupõe-se que o pensamento é da autora, o que é altamente improvável.
Também é ultrajante o modo como ela usa a palavra "vodu", que diz respeito a uma religiosidade estigmatizada o suficiente para ser usada como simples metáfora. Isso aconteceu no seguinte trecho:
A autodesmontagem crÃtica do vodu do homem branco - muitas vezes encarnado em corpos de não homens e não brancos [...]
Posição 488 [Kindle]
Entendo que a polaridade polÃtica tem atingido as esquerdas de um modo problemático (inclusive de demonização do individuo, não da estrutura que social), e que isso leva a um julgamento que é reativo. O poder representado pela identidade do sujeito branco é realmente um modelo que representa a violência cotidiana, burocrática e epistemológica, mas é preciso ter em vista que deslocar conceitos desta maneira reproduzem o racismo epistemológico o qual tentamos combater. Por esta razão, acredito que ela poderia usar "espantalho" ou algum termo similar para o sentido que desejou transmitir.
Em suma, o livro é recomendável para todas as pessoas que estejam dispostas a compreender o caráter democrático, radical (na raiz) e plurivocal do Feminismo. O fato de apresentar com naturalidade a conexão entre marcações opressivas como sexo, gênero, classe e raça, e acrescentar plasticidade e espécie é absolutamente importante e, por essa razão, pode interessar também às feministas veteranas.
O fato de desnudar com seriedade a discussão sobre o sujeito do feminismo e a importância da colaboração de pessoas de todas as identidades (todes), é realmente um ganho para quem está interessada na expressão própria, na reinvenção da linguagem e, pra além disso, de se imaginar numa coletividade de pessoas exercendo o livre viver e pensar.
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