Olhos d’Água: Multiplicidades da existência negra feminina na escrevivência de Conceição Evaristo.
“Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto,
ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe
tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha mãe
trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a
enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água.
Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla
a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum”.
Por Jaqueline Queiroz.
Esse trecho extraído do conto que dá
nome ao livro de Conceição Evaristo é uma boa síntese para explicar o que senti
com a leitura da obra. Tal como as águas dos rios, os contos e personagens que
nos são apresentados em Olhos d’água são por vezes calmos, límpidos e serenos e
são também profundos, intranquilos e, sobretudo fortes. Tão fortes que é quase
impossível ficar indiferente após ler contos como Ana Davenga, Maria e Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos. Tão
fortes que arrisco dizer que não há como uma pessoa negra e brasileira não se
identificar com algum dos contos ou personagens e muito disso tem a ver com a
forma com que Conceição Evaristo define a sua escrita: Escrevivência.
Escrevivência, essa mistura de escrita
com vivências e as múltiplas experiências que são tão comuns entre as mulheres
negras, principalmente entre aquelas que fazem parte das classes sociais menos
favorecidas. Experiências estas que com certeza Conceição Evaristo enquanto
autora negra, nascida numa favela na zona sul de Belo Horizonte, que precisou
conciliar os seus estudos com o trabalho de doméstica até concluir o ensino médio
em 1971 quando já tinham 25 anos e que hoje é doutora em Literatura pela
Universidade Federal Fluminense conheceu e conhece muito bem.
De tudo o que me chamou atenção e me
tocou durante a leitura de Olhos d’Água acredito que o ponto mais importante
para a minha interpretação foi perceber como a autora explora bem a delicada
teia que envolve a multiplicidade da
existência negra feminina. Nós, mulheres negras apesar de termos em comum o
racismo estrutural como um elemento negativo presente nas nossas vidas,
vivenciamos esse efeito de formas distintas e criamos ao longo das nossas existências
narrativas e experiências únicas que não podem ser homogeneizadas apenas por
conta da condição de raça.
Nos contos de Conceição Evaristo aparecem
mulheres negras jovens, de meia idade, idosas, meninas. Domésticas e pobres, outras que são de classe média. Lésbicas, heterossexuais, solteiras, separadas,
viúvas ou envolvidas afetivamente com parceiros que estão na criminalidade. Mesmo
dando destaque as personagens femininas, a obra traz contos que são protagonizados
por homens e meninos negros, o que reforça o intuito da autora em apresentar
uma variedade de experiências negras. Fica perceptível em todos os contos o
quanto as opressões de classe, raça e gênero estão presentes e influenciando a
vida das personagens, mas nem por isso elas deixam de ser protagonistas das
suas vidas e sujeitas ativas no transcurso das suas próprias histórias.
Enquanto feminista negra não pude deixar
de admirar duplamente alguns contos específicos como Quanto filhos Natalina teve? A partir dele somos levadas a fazer
uma reflexão sobre a maternidade e a escolha de interromper ou não uma
gravidez. Tema caro ao feminismo negro, a ilegalidade do aborto no Brasil ainda
afeta, sobretudo as mulheres negras e pobres que não podem pagar para fazer o procedimento
de forma segura. Em Maria conhecemos
o desfecho infeliz de uma empregada doméstica, mãe de dois filhos e cujo ex-marido
era assaltante. É histórica a racialização do trabalho doméstico no nosso país,
assim como as condições precárias e a desvalorização enfrentadas pelas
trabalhadoras deste ramo.
No Cooper
de Cida temos uma narrativa leve sobre a dureza do cotidiano quando
priorizamos apenas o trabalho e esquecemo-nos de cuidar do nosso bem estar
emocional. O cuidado com a saúde mental precisa ser prioridade na vida de nós
mulheres negras, pois existe um Sistema que contribui para nos deixar doentes e se a
mente não vai bem, não tem militância que dê jeito. O livro tem ao todo dezesseis contos e corro o
risco de ser aqui injusta ao destacar apenas alguns. Leiam e escolham os seus
favoritos, garanto que vocês não irão se arrepender.
“Se é direito quero concorrer”. Essa foi
a frase dita por Conceição Evaristo sobre a sua possível nomeação para a
Academia Brasileira de Letras este ano, no qual a autora poderá ocupar a cadeira sete
que já pertenceu ao poeta Castro Alves e teve o cineasta Nelson Pereira dos
Santos como o seu último ocupante. Nas redes sociais está sendo grande a
torcida e apoio para que a autora seja indicada e consiga merecidamente quebrar
um pouco com a dinâmica ainda masculina e branca que impera na ABL. Essa seria
uma conquista importante para ressaltar e dar mais visibilidade para uma obra de
uma escritora tão importante e necessária quanto Conceição Evaristo. Nós da
Preta, Nerd and Burning Hell seguiremos na torcida por ela!
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