Oito Mulheres e o Feminismo Soft de cada dia

ocean's eight
Sandra Bullock, Cate Blanchett, Anne Hathaway, Mindy Kaling, Sarah Paulson, Awkwafina, Rihanna e
Helena Bonham Carter se unem na aventura de ação Oito Mulheres e um Segredo.

por Anne Caroline Quiangala

Em tempos de Soft Girl Power, a Warner Bros resolveu apostar na revisita ao aclamado Onze Homens e um Segredo (Ocean's Eleven), com uma perspectiva feminina. Mantendo a estrutura narrativa, o ritmo e o senso de humor típicos da franquia, Oito Mulheres e um Segredo reúne figuras conhecidas (em especial a cantora Rihanna) e novas num roteiro mirabolante, que faz questão de esfregar na cara que passa no Teste Bechdel (duas personagens femininas com nomes, que conversam entre si sobre qualquer tema que não seja homens!).

A TRAMA


A protagonista de Oito Mulheres e um  Segredo é Debbie Ocean (Sandra Bullock), irmã do personagem vivido por George Clooney nos filmes anteriores. No início do filme, observamos a audiência de condicional dela, e somos introduzidas à habilidade incorrigível de dissimulação. Mais tarde, descobriremos que ela passou os últimos cinco anos, oito meses e doze dias planejando um roubo tão épico que não conseguiria sem uma equipe de especialistas.

A primeira convocada é a melhor amiga Lou Miller (Cate Blanchett), uma parceira antiga, que atualmente ganha a vida adulterando bebidas no seu próprio bar. Seu sarcasmo é, sem dúvidas, um dos elementos mais empolgantes, não apenas pelas falas, mas pelo olhar e a linguagem corporal como um todo, que expressam pura e simples pilhéria, com a quela pegada "elegante" e "rebelde", digamos... vintage. 

Imagem: Divulgaçãp
Além do par de amigas, foram recrutadas a joalheira Amita (Kaling), a golpista Constance (Awkwafina), a receptadora Tammy (Paulson), a hacker Nine Ball (Rihanna) e a estilista de moda Rose (Bonham Carter). Todas elas assumem uma função específica para o roubo de um colar de diamantes que valem 150 milhões de dólares e que estarão pendurados no pescoço da famosa atriz internacional Daphne Kluger (Hathaway). Aliás, Kluger em si é apresenrada como uma galhofa, o tipo de pessoa mimada e unidimensional, é glamour "de berco". Conhecia a personagem como o centro das atenções no evento do ano, o Baile de Gala do Met, mas sua virada é interessantíssima. O mais surpreendente é que o objetivo não se resume apenas a roubar aquela joia à vista, mas sair do evento com ela sem levantar  quaisquer suspeitas. Aí entra o gênero, a raça e a classe.


O FEMINISMO BRANCO E O SOFT GRL POWER

Com o esvaziamento de termos como "girl power" e "feminismo", que estampam livros, games, camisetas e moldam um nicho de mercado, nada mais natural que o cinema mainstream se aproprie, a seu modo: ora enxertando glamour, ora intercalando piadas perspicazes sobre a experiências adversas vivenciadas por corpos marcados pela mulheridade. 

E isso se dá, em Oito Mulheres, desde o início, quando acompanhamos uma protagonista forte em direção ao seu objetivo, sem um tutor, irmão ou relacionamento afetivo-sexual. Ela decide não só que roubará, mas "como" e guiará a equipe, gerenciado as especialidades. Além disso, unidas por um objetivo em comum, todas as personagens se relacionam de modo respeitoso e camarada, contrariando aqueles ditados populares cafonas, que buscam apagar séculos de solidariedade entre mulheres (sororidade).

Imagem: Divulgação
Assim, por mais que a tônica do filme não seja alegadamente política no sentido tradicional, ou mesmo feminista, o conjunto de imagens de mulheres autônomas, lutando juntas pelo que desejam, subverte a hipocrisia social de que "mulheres, naturalmente, são menos avessas a cometer crimes". Aliás, a ideia de "sexo frágil" é exatamente a cartada que a equipe usa para passar despercebida, ora como bibelô, ora como trabalhadora, mas sempre invisíveis no radar da matriz de opressões.

Se, por um lado, todas as personagens assumem sua condição de "mulher", imposta previamente pelo patriarcado via sistema sexo-gênero (isto é, seu gênero é moldado a partir do sexo biológico), por outro, a presença de mulheres racializadas de ascedência africana e asiática (amarela e marrom), tensiona essa ideia naturalizada, uma vez que o racismo molda a experiência de gênero bem como de classe. Enquanto as mulheres brancas, inscritas no sistema capitalista como privilegiadas, circulam na festa sem problemas, as racializadas se camuflam nas funções "invisiveis" de subalternidade. Eis uma crítica social software o suficiente pra ser notada pela maioria de nos, e não espantar aquelas que estão muito bem na Caverna Platonica.

Isso que pode ser interpretado como uma pincelada no conceito de interseccionalidade, é reforçado no comportamento criminoso de Debbie que usa seu privilégio de mulher branca (e presumivelmente honesta, segundo um ponto de vista racista), para aplicar golpes com naturalidade.

Sem dúvidas, o comportamento de Debbie também é um comentário sobre o capitalismo selvagem ser construído a partir da anexação de bens e força trabalho alheios. Fica bem evidente no filme que acumulação de bens, pra quem parte do zero, é incompatível com trabalho. Ao mesmo tempo que a critica à meritocracia é pincelada, ocorre uma naturalização do senso comum a respeito de feminilidade vitoriana como o ideal (as que não se encaixam são toleradas razoavelmente, mas com a marca de "nao-mulheres").

Imagem: divulgação 


A liberdade de todas as Oito Mulheres - macérrimas, inscritas numa feminilidade padrão, exceto as personagens da Awkwafina e Rihanna, racializadas e com fortes marcadores sociais de  privação material - é uma tentativa de acomodação de múltiplas vozes femininas numa história que se quer transgressora, mas que se apropria de demandas feministas e as transforma numa mercadoria  que reafirma o imaginário racializadas.

Por exemplo, o choque de Debbie com Nine Ball gerou humor na sala de exibição de forma desnecessária, ao fazer uso de uma questão moral (que é a diferença do peso dum crime de  furto e uso de narcóticos) enfatizando que Debbie rouba, mas está "limpa".

Nine Ball, por outro lado, carrega estigmas de raça, gênero e classe e seu caráter unitário na história, faz com que represente a ideia de que usuárias de MUITA maconha sao negras e usam dreads. A analogia é simples de entender do ponto de vista convencional e serve como um suporte de piada, mas isso só acontece porque a abordagem do filme não se ateve às especificidades duma experiência, mas sim do lugar de fala mais próximo da Ocean. 

Camuflado de poder feminino, ciente de que é preciso dar certo para "inspirar as meninas de oito anos que desejam ser ladras", o discurso tradicional (racista, classista e forcando uma performance de gênero convencional) se infiltra por meio de jogos de poder discursivos que entendem e fazem uso dos privilégios para sabotar o Poder. Assim, por mais escancaradas que estejam esses comentários como crítica, o foco na liderança de mulheres brancas impetuosas e diferentes torna cada mulher racializada sinônimo de representação de um povo inteiro, diminuindo assim a radicalidade do discurso "feminista" em tela e  homogeneizando numa experiência antes de tudo, branca, livre, leve e soft.

Oito Mulheres e um Segredo é um filme que destaca temas sociais bastante debatidos como o "direito de ir e vir", ironizando o fato de que a aparência modula a autoconfiança e possibilita que indivíduos brancos transitem sem grandes problemas, ao passo que indivíduos racializados são trancados fora disso tudo. Oferece exemplos positivos de representação feminina, ao passo que a manutenção das performances tradicionais impedem um discurso mais libertário.

Em suma, considerando a ambivalência discursiva, o filme é recomendável para quem está ávida por ver mulheres comandando seus destino com humor, sem culpa ou resignação, e se propõem a sorirs sem cair no encanto hipnótico do feminismo glamourizado da moda perpetrada pela mídia mainstream.



O filme estreia hoje, 7 de junho de 2018.
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