Zombies, Musical da Disney – Metáfora Certa, Elenco Errado.
Eu
estava um belo dia passeando pelo Youtube como uma boa procrastinadora que sou
quando vi a propagando de um novo filme Disney Channel. Zombies, é uma comedia
romântica musical onde temos Zed, um zumbi, e Addison, uma humana que quer ser
líder de torcida, e os dois vão viver uma espécie de romance controverso. E meu
primeiro pensamento foi que desastre de ideia para um filme. O segundo
pensamento foi eu preciso muito ver isso.
Não
apenas por que eu amos musicais, mas eu amo um bom filme trash ruim. Então
juntar os dois é me fazer subir ao nirvana, transcender ao Valhalla ou qualquer
coisa similar. E aí que eu bem garota fui ver o filme. Os primeiros minutos
servem para situar o espectador naquele universo, já que eles não vão seguir
exatamente a mitologia padrão de zumbis e vão focar mais no processo de
reinserção deles na sociedade. O que não é uma abordagem original, a série In
The Flesh fez isso, a Disney só fez de outro jeito. Vamos a história.
Seabrook
é uma típica cidade perfeita norte americana com seus perfeitos cidadãos, onde
todos se encaixo e ninguém é diferente e por isso a cidade funciona em completa
harmonia. Até que um dia um acidente na fábrica de refrigerantes cria uma nevoa
que transforma quem inala ou entra em contato com ela em zumbis. Aí rolou
aquele apocalipse básico, foi construído um gigantesco muro (guarde essa
informação ela é importante para o texto) para manter os “monstros” afastados.
50 anos se passaram, a ciência evoluiu não a ponto de curar os zumbis, mas a
ponto de controlar os impulsos comedores de cérebro humano com um bracelete
eletrônico. Então quando o filme começa os zumbis são seres humanos normais,
que nascem, crescem, envelhecem e morrem. Tirando que são absurdamente brancos,
no sentido pele cor de parede, e todos têm cabelo verdes são pessoas totalmente
normais e funcionais.
E
aqui começou as minhas surpresas com o filme musical e eu percebi que havia
mais conteúdo nessa farofa trash do que eu tinha imaginado. Apesar dos zumbis
não apresentarem mais nenhum tipo de risco social, terem se passado 50 anos
desde o incidente havia ainda uma enorme segregação entre humanos padrões e
zumbis, eles ainda viviam do outro lado do muro, são proibidos de estudar em
escolas ou frequentar ambientes frequentados por humanos, são obrigados a usar
um uniforme que os identifica como zumbis, são proibidos de ter animais, tem
horário de recolher. Eles são fortemente oprimidos socialmente e muitos humanos
desconhecem a real vivencia dos zumbis e de suas comunidades, acreditando que
eles ainda são monstros que não podem ser confiados e que vão atacar
violentamente na primeira oportunidade.
Isso
pareceu familiar? Por que o roteiro da Disney codificou fortemente os zumbis
para representarem grupos de minorias raciais. Existe muitos pontos da história
que podem ser ligados a história norte americana do período de segregação
racial, o filme começa com o primeiro dia de integração dos zumbis em escolas,
algo que nenhum humano quer, seja a prefeita, mãe da protagonista feminina, a
diretora da escola ou todos os demais alunos, algo que acontecia quando
começaram a integrar negros em escolas brancas. Também mostram os zumbis tendo
aulas inferiores e sendo impedidos de participar de atividades
extracurriculares como clubes e esportes, outro paralelo real que aconteceu.
Lembra
do muro que falei que seria importante? Uma clara referência ao muro do Trump
contra imigrantes latinos, os zumbis têm sua língua própria e um dos
personagens coadjuvantes só se comunica por essa língua, não falando inglês.
Uma referência a latinos imigrantes. A relação deles serem sempre presumidos como
monstros pode ser comparado com pessoas do oriente médio que são
automaticamente considerados terroristas.
Além
desses pontos existe uma forte codificação dentro do contexto musical. Os
humanos normais são tons pasteis, cantam pop, coreografias mais tradicionais
dentro do estilo de teatro musical. Os zumbis fazem rap, tem festas em
ambientes periféricos, dança hip hop e tem essas coreografias mais associadas a
comunidade negra. Alguns versos eu diria até que beirão o plagio de Hamilton,
mas vai saber, a Disney pode ter comprado esses direitos autorais e a gente nem
viu.
O
filme inteiro é trabalhado na questão da aceitação, de como existe uma opressão
estrutural contra um grupo de pessoas. E como tanto zumbis como humanos lidando
com essa sistemática.
Zed,
o protagonista zumbi, quer tentar entrar para o time de futebol americano da
escola. Inicialmente é proibido por ser zumbi, mas em outro ponto suas
habilidades de zumbi, ele é mais forte que um humano padrão e é visto como
forma de capitalizar vitorias para o time. E de fato Zed por um período se
torna a estrela do time e lidera eles nas vitorias e por isso ele é aplaudido e
de repente zumbis não são tão assustadores. Isso até que os vilões, que eu irei
comentar mais na frente, manipulam o bracelete não apenas do Zed, mas de todos
os zumbis relevantes no enredo. O que causa uma histeria em massa e uma
intervenção policial brutal, que é mais um ponto para a racialização como não
branco dos zumbis.
Isso
me lembrou muito o comentário do jogador de futebol Romelu Lukaku: “quando as
coisas vão bem eu sou o atacante da Bélgica, quando não, eu sou o jogador
descendente de congoleses.”. Enquanto nós pessoas racializadas pudermos ser
usadas como forma de entretenimento, seja ganhando jogos, fazendo piadas, sendo
sexualmente atraentes a branquitude nos “aceita”. Mas é uma aceitação falsa,
uma aceitação onde somos objetos e não pessoas, onde não devemos questionar o
status quo e no segundo que fazemos algo que as desagrade a aceitação acaba.
Como jogadores na Copa do Mundo que perderam e sofreram ataques racistas ou Zed
que aparentou estar em completo modo zumbi, mesmo se controlando para não
atacar ninguém.
No
quesito metáfora, Zombies tem um texto e uma metáfora muito bem colocados, não
está exatamente perfeito. Ainda é Disney, ainda tem resoluções fáceis demais, a
única personagem que quer lutar contra o sistema, Eliza, é considerada
extremista demais e é posto que ela trata humanos como eles tratam zumbis o que
é uma falsa simetria,
O
meu problema maior está no protagonismo. O filme fala de forma pesada, mas
alegórica sobre questões raciais e de racismo e os três protagonistas
principais. Zed, o zumbi, Addison, a líder de torcida, e Bucky, o vilão são
todos interpretados por atores brancos. Bucky é um dos personagens mais
interessantes e que o filme mais tomou riscos, ele é o chefe das líderes de
torcida, ele é extremamente afeminado, facilmente lido como gay e faz a função
de uma Regina George na história, ele é a Mean Girl racista que não tolera a
diferença de forma alguma.
E
por mais que a produção tente incluir personagens secundários não brancos.
Eliza, a melhor amiga zumbi, é negra, você reconhece todos os traços raciais
mesmo a pele sendo pintada de branco. A melhor amiga da Addison, Bree, é uma
garota negra retinta. Os minions de Bucky são 3 líderes de torcidas dos quais temos
uma garota negra com cabelo natural e um cara asiático afeminado. No entanto
nenhum dos protagonistas é de fato alguém não branco.
E
eu entendo que colocar um ator negro ou latino no papel de Zed poderia ser
ultra problemático. Afinal é posto que zumbis são predadores que foram
controlados pela ciência a ponto de serem pacíficos agora. Então eu entendo,
mas os humanos podiam ser protagonistas não brancos. Talvez o que fizesse a
Addison ser tão aberta compreender os zumbis e quebrar esse ciclo de opressão
pudesse ser por que ela é uma minoria racial e que negros, latinos e outros
grupos não brancos sofriam esse tipo de preconceito no passado desse universo.
No
final das contas eu terminei o filme achando que eles querem contar a nossa
história, mas eles não querem a nossa presença, o nosso protagonismo nela. A
melhor música do filme é uma canção sobre amor inter-racial, que foi algo
legalmente proibido nos Estados Unidos. A animação Tarzan também aborda o tema,
mas novamente não traz de fato personagens negros ou não brancos no geral.
Sendo que Tarzan é de 19 anos atrás e depois de todo esse tempo estamos fazendo
a mesma narrativa, a mesma metáfora sem a inclusão dos verdadeiros
protagonistas da história.
Sim,
é legal e importante que a Disney esteja abordando temas racismo institucional
em filmes voltados para um público pré-adolescente e adolescente, no entanto se
você de fato não incluir meios para que esses jovens façam a associação direta
do que a história quer dizer, a desconstrução desses preconceitos raciais não
vai ser tão efetiva. Steven Universe consegue ser bem-sucedido nas suas
mensagens para crianças por que apesar de ser uma linguagem apropriada ao público
infantil você consegue reconhecer aquelas questões na vida real. Ruby e Safira
são pedras vindas do espaço que se fundem em uma só, mas elas também são
visualmente reconhecíveis como do mesmo gênero e dentro do espectro feminino,
então aquilo é fácil para criança associar a relação amorosa de pessoas gays no
mundo real.
Enquanto
Steven Universe é bem-sucedido em passar sua mensagem dentro de uma alegoria
que a criança entende, Zombies tem a mensagem perdida a menos que o espectador
já tenha um conhecimento prévio para ligar os paralelos ou alguém que os
explique. Termina sendo um filme que poderia inicia uma conversa muito
relevante, mas que acaba não atingindo a todos como deveria.
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