Shun, Mudança de Gênero E O Que é Representação
Existe uma piada recorrente entre meus
amigos que eu simplesmente odeio animes e mangás. O que não é verdade, durante
minha infância e adolescência eu consumi produções animadas vinda do Japão. Eu
fui da geração que crescer vendo a TV Manchete com Sailor Moon, Shurato, Yu Yu
Hakusho e obvio, Cavaleiros do Zodíaco.
Por Camila Cerdeira
Porém, a medida que minha adolescência ia
passando eu fui me distanciando do universo da cultura japonesa, animes e
mangás já não me representavam tanto, mas isso é assunto para um outro texto em
outro momento. O que importa é que eu acabei me distanciando, porém alguns
animes ou mangás ainda me são queridos, quer eu os ache produções ruins ou não.
Cavaleiros Do Zodíaco era um anime que eu
sempre tive muito apreço quando criança, cheguei a fazer cosplay da Shaina com
direito a armadura e tudo, no entanto eu reconheço que os traços do anime e do
mangá estão longe de serem bons, assim como seu roteiro é fraco, incoerente e
sua ligação com qualquer parte da mitologia grega se resume a utilização dos
nomes para alguns personagens. Mas tudo bem, ninguém disse que algo tem que ser
perfeito ou mesmo bom para se gostar, a gente pode gostar do que quiser.
Netflix então anunciou que iria fazer um
reboot para a animação em 2019, como eu já estava numa fase não me importo com
animes não dei bola, até ter saído o primeiro teaser em novembro, acredito, ali
a hype deu uma pega, as memorias de infância começaram a surgir e bem, eu achei
aquela animação muito bonita.
Então saiu o primeiro trailer e a polêmica
estava instaurada nessa internet sem deuses. Shun, cavaleiro de Andrômeda e
irmão de Ikke de Fênix, agora será Shaun, uma personagem feminina.
E vejam só, eu normalmente adoro quando
existe a troca de gênero ou raça/etnia de um personagem que é de uma maioria e
vai para uma minoria dentro daquele grupo. Por exemplo eu sou extremamente a
favor de que 007, James Bond, seja ou um homem negro ou uma mulher, se for uma
mulher negra então seria algo espetacular. A verdade é que nossas produções por
muitos anos ignoraram mulheres, pessoas não brancas e LGBT, então em reboots
feitos é natural que os produtores revejam conceitos e valores da sua produção
e modernizar adequando aos tempos atuais, One Day At A Time era originalmente
na década de 70 feito com uma família branca de italianos, hoje é uma família
cubana, Os Caça Fantasma ganharam uma versão recente com protagonistas
mulheres.
Em 2018/2019 não faz sentido continuarmos
contando histórias apenas com protagonismo branco, hetero cis e masculino e
aparentemente Eugene Son, principal roteirista dessa nova versão de Cavaleiros
do Zodíaco, compreendeu isso. O problema é que a execução deixou muito a
desejar e ficou parecendo apenas uma saída preguiçosa que acabou causando mais
danos que de fato sendo uma boa representação feminina como eles inicialmente
tinham a intenção.
Quem é Shun de Andrômeda? Irmão mais novo
do cavaleiro de bronze, Ikki, Shun é o mais novo dos 5 cavaleiros de Athena,
seu irmão se “sacrificou” escolhendo ir em seu lugar para treinar na Ilha da
Rainha da Morte, considerado o local com o mais difícil treinamento e de onde
ninguém saia vivo, então ele foi relocado para treinar para receber a armadura
de Andrômeda, que vejam é originalmente uma armadura dada a mulheres. Shun
sempre foi o mais sensível, gentil, delicado cavaleiro sendo muitas vezes
considerado frágil e afeminado e de fato ele tem traços bem femininos, muito
mais próximo do desenho de Saori do que dos demais personagens masculinos.
Camila, então faz todo sentido do mundo
ele ser transformado em uma personagem feminina, ele sempre foi próximo da
feminilidade. Justamente por essa proximidade, por ele mostrar que ser homens
não precisa ser aquele padrão tradicional de masculinidade que, infelizmente, muitas
vezes é toxica que o transforma de vez em uma personagem feminina é um
equívoco.
É preciso entender que a masculinidade não
precisa se basear em força bruta e física, truculência, violência,
agressividade para existir, você pode ser sensível, delicado, todas as
características que Shun sempre teve e representou e ser um personagem
masculino muito bem construído, incrível e forte.
Além disso, considerando o ponto de vista
da representação feminina os roteiristas da série se pronunciaram e disseram
que as características da personagem não serão mudadas do original. No original
Shun é uma donzela em perigo que constantemente é salva pelo irmão mais velha,
não haviam problemas por que eram dois homens que estão socialmente em pé de
igualdade, mostra que homens também precisam ser “resgatados” e que podem pedir
ajuda. Na primeira saga de CdZ, a saga das 12 casas, na casa de Libra temos uma
cena bastante tocante que muitos fãs lembram quando Shun está disposto a se
sacrificar por que isso é a única coisa que ele pode fazer pelo Hyoga,
Cavaleiro de Cisne, e ajudar com que os cavaleiros de Athenas continuem a luta
para salvar a deusa. Quando você coloca uma mulher nessa posição que Shun
sempre esteve você cai nas velhas trupes misóginas de donzela em perigo, mulher
que se sacrifica por que um homem tem a vida mais importante e é mais capaz de
completar a missão que ela.
Sem contar que Cavaleiros do Zodíaco
possui um número considerável de personagens femininas. O protagonista, que no
título japonês dá nome ao anime, Seiya é treinado por uma amazona de prata,
Marain, além de ter uma relação complicada com outra amazona de prata, Shaina.
São duas mulheres guerreiras de personalidades completamente diferentes,
poderosas, mas que infelizmente temos pouquíssimo tempo de tela demais.
Existem outras personagens femininas
também como Miho e Shunrei, mas a cima de tudo temos Saori, que na nova
adaptação atendera por Sienna, nome usado na versão americana do anime. Ela é a
reencarnação da toda poderosa deusa Athena a quem os cavaleiros juraram
proteger contra as forças do mal, no entanto seu papel nas sagas basicamente é
de se auto sacrificar e ficar estática narrativamente numa posição onde ela só
pode esperar que os seus cavaleiros de bronze salvem o dia. Por que não desenvolver
essa personagem? Por que não a colocar em ação desde o começo, coloca-la para
lutar, mostrar o pregresso do seu poder junto de seus cavaleiros e não deixar
que ela seja apenas mais uma donzela em defesa?
Ou já que queriam mesmo transformar o Shun
numa personagem feminina, por que não transforma o Ikke junto, tendo um duo de
irmãs dentre os cinco protagonistas, evitando um efeito smurfette. Fora que
manter as características básicas do cavaleiro de Fénix numa personagem
feminina poderia ser um bom twist na construção de personagens femininas no
geral.
Infelizmente nada disso foi feito e
terminamos com uma tentativa de fazer representação feminina que parece apenas
uma ideia preguiçosa de um grupo de homens que não sabe realmente o que o
público feminino ou em geral quer quando pede por uma boa representação
feminina.
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