Preta e Nerd: da invisibilidade à autodeterminação

Eu sei que toda a vez que eu falo sobre representatividade estou assumindo o risco de entenderem que estou falando sobre todas as pessoas negras, que eu formulando um teorema sobre a experiência negra e nerd a partir do particular, como se eu estivesse representando a multifacetada comunidade do feminismo nerd e, em especial, das feministas, Negras nerds. Não é nada disso o que tenho a dizer. Não sou aquela que oferece certezas, para o meu próprio bem de não sufocar na atmosfera de "parte pelo todo" ou tokenização. Espero ser fugidia o bastante para que todas e todos compreendam que não existe universalidade, e - sério - tudo bem. 


Na CCXP 2018 eu fiz um ensaio fotográfico no Projeto Preto Colore (@pretocolore), criado por Sheila Falcão e Henrique Oliveira. Todas as fotos deste texto foram feitas durante o evento.

Por Anne Caroline Quiangala

Quando assisti pela primeira vez o clipe da canção Pearl (escrita e performada pela Tamar-Kali) eu vi na minha frente a resposta para uma pergunta que me fizeram anos atrás. "Não faz sentido você ser Negra e ouvir metal. Você já viu uma guitarrista Negra?". Naquela época, o máximo do que o mundo das convenções - o mainstream - havia me mostrado, era a Bibi McGill, a guitarrista da Beyonce. O "porém" era que eu não conhecia absolutamente nada da carreira da Bey ou das Destiny's Child e que eu não era do tipo de adolescente Negra que rebolava e vestia roupa colada. 

Isso significa muitas coisas, dentre elas que eu não era "negra o bastante" para as minhas amigas negras e que eu era "garota demais" para os meus amigos nerds. As garotas brancas agiam "simplesmente" como se eu fosse contagiosa, cientes de que o mundo lhes pertencia - não a mim - porque eu era "negra demais". Tudo isso me dava certeza de que eu não pertencia ao mundo "real". Os meus quadrinhos, bandas e seriados favoritos também estavam cheios - e unicamente permeados - de pessoas brancas que diziam e faziam a coisa errada o tempo todo. As equipes multiculturais, como o Gorillaz, Capitão Planeta, Mortal Kombat, Street Fighter, Tekken, X-Men e Caverna do Dragão eram sempre experiências de apagamento, tribalhismo, sexualização e performance de gênero da qual eu fugia com todas as minhas forças. Ou seja: não havia lugar seguro mesmo na ficção e eu precisava administrar essa dor e lidar com as cobranças internas e externas sobre ser uma aluna excepcional, já na primeira série. Nesta idade, a escola já fez muito bem o seu papel de separar "aptos" de "inaptos", selar os destinos de quem sabe ou não desenhar, escrever, calcular e – por consequência – atribuir os estereótipos: nerd, bagunceiro, artista, princezinha etc. 

Com isso, já lhe adianto que raça, gênero e classe são determinantes na hora de calcularem nossas coordenadas rumo ao estereótipo. 

Foto: Henrique Oliveira (@pretocolore)

CALIBRANDO AS COORDENADAS 


Era absolutamente perturbadora a sensação de que não havia linguagem que descrevesse o que eu vivenciava, sentia ou vislumbrava. Não havia nenhuma personagem que me dava o conforto que as outras pessoas sentiam: ou a personagem era homem negro ou mulher branca e, pra piorar, o vocalista do Destruction - uma das bandas que eu ouvia àquela altura - disse numa das revistas de rock que ele era alemão e não racista, "afinal namorava uma asiática". Essa resposta que ele quis tornar categórica, reafirmou que o heavy metal era um campo minado e eu não poderia mais ignorar isso. O metal, enfim, não era mais apenas sobre demônios ou sobre "correr para as montanhas e salvar nossas vidas". Eu não podia mais me apegar a um álbum ou a uma banda sem pesquisar o histórico, as propostas, ideologias e práticas. Não mais.

De qualquer maneira, o mainstream me ofertava uma gama de bandas de homens (brancos) e eu tive que mergulhar para encontrar, primeiro as bandas de mulheres (brancas) que nem eram de metal, pra só assim, me aprofundar mais e encontrar mulheres racializadas como a energética vocalista do Sinergy, Kimberly Goss. Em seu vocal rasgado inequivocamente "feminino" ela berrava em Violated [Violada]:

"Você me violou, mas agora estou mais forte. Eu tomei a minha vida de volta e assisto a sua queda".

Enquanto bandas como Metallica lamentavam relações conflitantes com o pai, a sensação de ser invencível e sua devoção pela estrada, as letras de Kimberly Goss falavam sobre o que eu sentia, o que eu temia e - o pior - o que eu poderia vivenciar. Ela não é Negra, nem fala a minha língua, mas ela tem aquela voz aguda que encarna a força duma sobrevivente e, desse modo, sua presença me empoderou mais do que qualquer outra até aquele momento. Isso perdurou até que eu ouvisse as letras que davam vida ao meu corpo e pensamentos, cantadas e tocadas pela Tamar-Kali, mas eu já estava na casa dos vinte e poucos anos.

Eu tinha quinze anos e nenhuma dúvida de que a mulher mais forte na televisão era "the chosen one" [a escolhida] Buffy Anne Summers, a caça-vampiros. Particularmente eu preferia a Willow, mas ela continuava tão branca quanto a personagem da Sarah Michelle Gellar. A Kendra continuava – gratuitamente- morta. Os quadrinhos, por sua vez, não mostravam alternativa, seja porque os Perpétuos eram todos brancos e um terrível e cruel Sonho aguardava a Nada; seja porque super-heróis protagonistas eram sempre homens, quando muito, mulheres brancas. Toda vez que aparecia alguém diferente disto, eu sentia uma meia-vitória vislumbrando o dia em que eu teria um acerto decisivo. 

Embora a Original Cindy, adjuvante em Dark Angel, não tivesse super-poder tal como a Max Guevara, sua presença foi um indício de que havia território pra além da linguagem corriqueira dos super-heróis, na qual ser mulher e negra equivalia estranhamente ao que eu não era (anciã, adulta, rainha, africana). Ela também não carregava o fardo de ser Negra "do jeito certo" (performando paradigmas associados à suposta negritude autêntica), de representar toda e qualquer pessoa negra, ou de se preocupar em parecer "respeitável" (presa aos valores tradicionais de embranquecimento, heteronormatividade e classismo). Original Cindy, sem sombra de dúvidas, foi meu primeiro acerto decisivo

Foto: Henrique Oliveira (@pretocolore)

QUANDO A DIFERENÇA É UM LAR? 


Ser mulher, negra, nerd, bissexual, vegana e o que mais tiver significado dentro da lógica "Um versus outro" que rege as relações sociais, significa que representação é a minha chave de compreensão de mundo primordial. E isso significa compreender que as minhas "identidades desviantes" (do padrão), são pares de coordenadas que fogem do que a linguagem convencional expressa. Na década de 1990 era particularmente difícil, mesmo sendo uma criança, não notar que o limite da linguagem era a minha experiência, a minha existência e as minhas sensações. Em cada brincadeira, jogo de videogame ou tabuleiro, filme ou animação, eu tinha sempre que optar por alguma parcela do todo que eu sou porque eu fui moldada na linguagem da interseccionalidade, isto é, das identidades minorizadas simultâneas. 

Lembro particularmente da minha odisseia e paixão pela Pocahontas, com direito a filme, relógios de pulso (um para o inverno e outro para o verão), festa de aniversário e horas a fio buscando versões e mais versões na locadora. Depois veio a Mulan, Sindel a Willow Rosenberg, Vampira e mesmo The Donnas. "E a Tempestade?", a maioria deve pensar. "E a Diana? como eu poderia esquecer de Caverna do Dragão e me julgar nerd?" 

Spoiler: não esqueci de nenhuma delas e não tenho carteirinha nerd. Talvez por isso a Tempestade esteja marcada na minha pele, como a lembrança deste processo de me tornar Negra para além do corpo: de ser atravessada pela consciência e pela linguagem. Meu corpo sempre existiu, mas é a consciência e a linguagem que o materializam tal como é: preta, nerd em meio ao burning hell das identidades hostis. 

O burning hell é o terreno sitiado por aqueles que desejam refirmar supremacia, violência gratuita e a lógica reacionária. Como um ponto de encontro de identidades unidas pelo amor à cultura pop, poderíamos simplesmente esperar que "eles" desarmassem as bombas e dialogassem mais. O mesmo se dá com a massa de fãs do Demolidor do Frank Miller? Ou dos fãs de Star Wars? 

A diferença poderia ser um lar, mas para isso, um novo repertório de ideias e de políticas das redes sociais seriam necessárias. A diferença pode ser sim um lar, como atestam os Novíssimos Vingadores, mas diversas investidas do mundo real não suportarão ver Steve Rogers auxiliando seu ex-parceiro com mais veemência que a revelação dele ser da Hydra. 

Foto: Henrique Oliveira (@pretocolore)


O VELHO PROBLEMA IDENTITÁRIO 


Representatividade é um termo bastante em voga e, mesmo tendo seus próprios apreciadores e "odiadores" multiplicando hashtags, esta palavra talvez seja mais ponto de largada pra minha vida do que meu próprio nome. Isso significa que continuamos com o velho problema e – de modo geral – conformadas com respostas gastas dum velho problema identitário. Não existe neutralidade, mas sim uma estrutura social que tende a marcar tudo e todos a partir dum padrão eurocêntrico e sexista. Nesta lógica, são os "diferentes" aqueles que são vistos como "não eu" ou "outro", a partir da hierarquia social. 

É estranho observar que a representação seja o tecido permeável que atravessa duma ponta a outra a nossa sociedade, que é o recipiente no qual estamos todas imersas. Que a representação é o idioma, o léxico, a história e o uso das palavras, nós sabemos, mas dificilmente refletimos sobre o poder que ele tem de moldar o mundo, porque nos molda e nós o moldamos. As narrativas (ficcionais ou não), os objetos, as pessoas à nossa volta e as nossas relações são todas construídas a partir do que somos capazes de imaginar, de nomear e de enxergar. A representação é, portanto, a nossa capacidade de usar nosso repertório de palavras, de histórias e de sentidos para compreender a realidade e, em seguida, substitui-la

Uma vez filtrado o real, temos a representação que pode ser representativa ou não. Noutras palavras, substituir o real por uma interpretação pode, na melhor das hipóteses, fazer com que sintamos aquele "reconhecimento" do qual Aristóteles falava em sua Poética, ou sentir uma distorção, tal como aquele mundo real do ponto de vista platônico. Se no primeiro caso, o prazer do "reconhecimento" chamamos de representatividade e por si só, isso justifica "porque importa", o que o segundo ponto quer dizer? 

A cultura pop é perniciosa por lançar luz sobre a linguagem que materializa coordenadas ora pela raça, ora pelo gênero. Exemplo disso são os filmes de horror em que a ordem de morte é o negro (homem) e a branca (mulher), porque ser Negra significa, na maior parte das vezes, exclusão da gramática deste gênero. A distorção se torna regra em todo o território estruturado pelo racismo, no mesmo recipiente que é a sociedade a ponto de termos produções insensíveis às nossas questões produzidas por gente do lado de cá das trincheiras. Entendo que "lado de cá dos trilhos" está todo mundo que realmente acredita num mundo melhor e quando falo "insensível" me refiro ao quanto a linguagem não convencional é uma busca, é um querer entreposto por obstáculos, afinal de contas, mesmo a internet exige que saibamos onde e o que pesquisar. A representação estética distorcida, assim como racismo, não é um problema moral, é o líquido no recipiente social que parece deixar qualquer reagente se elevar e, ainda assim, muitos não se misturam e precipitam. E o que isso tem a ver com super-heróis? 

De modo geral, "nossos" heróis são cunhados em jornadas que incluem o "nosso" sofrimento ou morte para seu enriquecimento pessoal, seja lutando por uma causa, reafirmando seus próprios valores ou valores sociais bem naturalizados como a democracia, o capitalismo e o sistema prisional. A maioria de vocês deve concordar comigo que a ida de Nada ao inferno (Sandman), o fim de Tara Thornton (True Blood) e a morte da 355 (Y: o último homem) foram tão desnecessárias quanto a de Nakari Kellen (Star wars: o herdeiro do jedi); tais narrativas, tão distintas, se unem no ponto em que as garotas Negras se apaixonaram por protagonistas brancos e se tornaram dispensáveis, assim que a trama tencionou para o desfecho. Corpos dispensáveis, corpos abjetos, corpos que são descartados assim que a lição foi apreendida pelo herói não tomam decisões erradas simplesmente, elas morrem por ação do oponente dele. 

As identidades forjadas da cisão "eu versus outro" dão os valores das coordenadas que nos localizam num tipo de plano cartesiano e isso faz com que pessoas de grupos sociais distintos se identifiquem de maneiras surpreendentes. A empatia é um determinante nesta multiplicidade de identidades que modulam nosso lugar social, nosso modo de ver o mundo e de o representar. Invariavelmente, nossos primeiros passos são em busca do igual, mas o universo geek não é acolhedor o suficiente para a maioria dos "nós" aos quais pertenço e, por consequência, as personagens que nos representam. 

O mais terrível nisso tudo é que a ficção cria e reitera realidades, o que atesta que aquela dicotomia eu versus outro é tão longeva quanto parece. 


Foto: Henrique Oliveira (@pretocolore)

#NERDIANDADE E SOLIDÃO DA MULHER RACIALIZADA 


Muito antes dessa reflexão sobre ser Preta e nerd, a pensadora Audre Lorde já escrevia sobre seu lugar de fala convergir identidades conflitantes que a tornavam estrangeira onde fosse e que demorou para compreender que o seu lugar era esse, onde quer que fosse. 

Ser uma garota Negra, necessariamente implica em saber, desse muito cedo, tudo o que você não é. Não que haja um problema em si em ter consciência identitária - o fato do meu pai ser negro e angolano propiciou uma visão de dignidade sobre ser uma pessoa negra bem diferente do modo como a minha mãe, que é brasileira, enxerga os modos de viver a História. Aliás, independente da concepção de negritude e de racismo que ele tenha, não demorei pra perceber o quanto a exigência depositada em mim vinha daquela velha história de que "negro tem que ser duas vezes melhor", nas Américas ou na África. Era absolutamente inaceitável errar conjugação verbal ou concordância, bem como me expressar "como todo mundo", afinal, eu "não era como todo mundo". E não era mesmo: eu sempre representava a exterioridade das minhas experiências preponderantes nos ambientes privados e públicos. Podemos dizer então, que a diferença sempre foi um elemento central, desde a creche até a consciência da #nerdiandade.

Ser diferente - e não me refiro ao "ser" alternativo - implica em tratamentos horrendos, isolamento e a certeza definitiva de que ser você não é legal. Por esta razão, a sobreposição de identidades "diferentes" dum modo simultâneo me levou para uma área de comportamentos em resposta, empurrando de volta, saindo do que, já adolescente, eu entendia como estereótipos. 

Ora, não ofereceria a você um quadro completo acaso suprimisse as experiências familiares.

Enquanto nas séries iniciais eu já me destacava, devido às exigências parentais, e causava uma impressão impopular para a instituição e, igualmente, às crianças, o exagero das exigências foi me conduzindo à familiaridade. No final de contas, os quadrinhos catalizavam a minha atenção como um ponto de coesão com o real, quanto pra dar significado a tudo. Os quadrinhos funcionavam como matéria prima duma apropriação semelhante ao que Eric Novello descreveu em sua obra Ninguém Nasce Herói (2017), a "catarse criativa".

Definitivamente gastei muito tempo tecendo um real particular, tateando o mundo sem o meu "amigo imaginário" - um indígena que morava dentro da garrafa - e com a plena noção do "faz de conta". Ambos os processos indicavam uma solidão "extrínseca à companhia", porque sempre estive rodeada de muitas pessoas, fossem do underground ou não.

A solidão tinha um caráter mais social, de ser a única em cada espaço, de ser a "inteligente demais" para ser estereotipada como "tadinha" e negra demais para ser "simplesmente inteligente". Como nada é inato, só eu sei o quanto as horas de estudo no fundamental renderam uma quebra na convivência junto aos sheldons (ou Pauls) predestinados à genialidade.

Nem tudo era tão horrível, é evidente, mas crescer numa família em que eu era a única garota, com a pele mais preta, com os interesses mais quadrinisticos, foi um ponto decisivo. Família de militantes negras e feministas que dava espaço para pensar de forma mais crítica sobre o que é ser mulher, as injustiças raciais e que nos conduzia pra fluidez de tudo - até da macrobiótica - me fez ser mais cooperativa do que competitiva (fora sofrer as consequências disto). 

As brincadeiras de faz-de-conta com meus primos me faziam pensar sobre como ser menino autorizava a identificação com tudo o que fosse homem, ao passo que era proibitivo o contrário, a meu ver. Não tinha a ver com qualquer coisa que eles tenham dito, porque privilégios é a dádiva de não pensar sobre alguma coisa; se eu dissesse eles não entenderiam.

Ah, eu criei o blog alicerçada na ideia de exigir pra ser incluída numa comunidade tóxica e fortemente excludente não era a solução para a minha vida, identidade e prática acadêmica e política. Havia temas, debates, interesses e questionamentos que estavam fora do campo da nerdice tradicional, que é uma perspectiva tão agregadora, quanto silenciadora. Eu não queria fazer parte da nerdice, principalmente porque meu interesse nunca foi o de catalogação, de testes "quem sabe mais" e volume de leitura em menos tempo, meu interesse era uma apreciação cavando o mais profundo dos sentidos da obra que eu desse conta de captar. Cultura pop nunca foi apenas entretenimento pra mim, porque minha experiência como indivíduo indica que a cor da pele é importante, é essa percepção se transporta para o game, a banda ou quadrinho, assim como o indivíduo não-minorizado pode focar na violência sem se incomodar com a vítima, desde que se identifique com o sujeito que bate. Noutras palavras: quem bate esquece e, quem apanha, não esquecer.

Diferentes experiências demandam diferentes conceitos, perguntas, paradigmas.

nerdiandade pra separar do jeito de ser nerd dos haters q se julgam mais nerds e recolhem carteirinha. Na real eles são mesmo, mas não quero ser igual a eles, quero propor algo novo em abordagem, consumo e jeito de ser. Neste sentido, cruzar a linha entre meus herois e heroínas "reais" e "ficcionais" foi imprescindível até mesmo para notar que falha crítica e acerto decisivo, no que tange à cultura pop são proporcionais aos mergulhos para além do mainstream. Foi dessa maneira que conheci o melhor das heroínas pelas quais me apaixonei por serem pedaços de mim (Batwoman Kate Kane, Kamala Khan e Miles Morales) e me reconheci (Monica Rambeau, Misty Knight, Lunella Lafayette, America Chavez). Talvez o mais emocionante pra mim tenha sido o oneshot da Capitã Marvel escrito pelo célebre Dwayne McDuffie na qual a heroína Monica Rambeau cita Audre Lorde do início ao fim.


Foto: Henrique Oliveira (@pretocolore)

"HEROI É AQUELE QUE LUTA PELA SUA CAUSA" 


Sem dúvida, heróis são aqueles que lutam por nós e nos inspiram. Isso significa que um Capitão América (Sam Wilson) tem coordenadas que se assemelham com as minhas e outras que destoam completamente, mas o resultado é que seu liberalismo e necessidade de parecer "respeitável" nos distancia bastante, do ponto de vista ideológico. A Miss Marvel (Kamala Khan), por sua vez, é de uma geração, etnicidade e interesses completamente distintos dos meus, e suas coordenadas convergem com as minhas porque suas histórias comunicam de forma descontraída e leve a importância da empatia, da amizade e do respeito, além do fato de ela vivenciar o desconforto de não pertencimento, o desconfortável entre-lugar. Por hora, isso pode parecer equivocado, ou um tipo de atestado de racismo internalizado, mas o meu ponto é que os opositores de iniciativas de diversificação das experiências e olhares como a Nova Marvel nos acusam de querermos apenas inverter o jogo, ao passo que eu adoro várias personagens que não se parecem comigo fisicamente. Representatividade é simplesmente o ajuste da balança. 

O problema é que, até então, nenhuma heroína parecia tanto comigo, quanto com vários outros grupos sociais. Foi preciso que a minha versão adolescente, fã de Buffy a Caça Vampiros esperasse dez longos anos para começar a ver representações de sua experiência, estética e política nos quadrinhos, cinema, música e televisão. Ainda assim, naquele "ano das mulheres no cinema" (2015), poucas pessoas celebraram o belíssimo Bessie, da diretora Dee Rees ou o álbum Winter da banda Oceans of Slumber, no ano seguinte. Em compensação Marvel: Luke Cage me proporcionou uma experiência única pelo fato de termos finalmente a representação duma Misty Knight complexa, autônoma e com voz própria. A metalinguagem materializada por Simone Missik mostrou uma Misty que refletia o melhor, complexo e real sobre mim mesma e, a despeito de não ter, na primeira temporada, o braço biônico ela era não apenas minha heroína como o fechamento dum longo ciclo de reconhecimento e catarse iniciado com o primeiro filme Blade: o caçador de vampiros, há anos. E, sem sombra de dúvidas, espero que haja convergência entre representação estética e a presença de profissionais no campo da criação e produção de cultura pop. 

Viemos de tão longe, vinte e oito anos atrás, que voltando ao presente, já começo a acreditar no possível e mal posso esperar para assistir a um novo acerto crítico. Qual será? 


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* Uma versão mais concisa deste texto foi publicada na Revista Obox do site Omelete, em fevereiro de 2018 (p. 46-49), sob o título "Somos.todos.geeks?" com ilustrações de Weberson Santiago.
** Confira o ensaio completo no Instagram @pretocolore, abaixo:




"Eu sou Anne Caroline Quiangala, idealizadora do blog Preta, Nerd e Burning Hell (@pretanerdburning). A criação do blog foi, dentre muitas coisas, o momento de exorcizar alguns demônios. Explico: nascer numa família que sempre prezou pela educação formal e pela construção da autoestima e conscientização propiciou ferramentas para sobreviver num mundo hostil e cruel, ao passo que não me preparou para a diferença dentro da diferença, que é o lugar de ser preta e ser nerd. Com o passar do tempo, essa parte solta da minha identidade foi deixando de ser um espinho e se tornou o que criou um espaço de convergência pra quem viveu ou ainda vive essa sensação horrível. Não é apenas um endereço na internet, é o nome pra uma experiência que nos orgulhamos. É essa convergência que me possibilitou conhecer Henrique e Sheila, que me trouxeram aqui neste local, neste momento de afirmar uma coletividade. E aí chegamos ao sentido deste ensaio: nós nos vemos umas nas outras e passamos a entender quem somos, o que podemos fazer e vislumbramos nosso poder. Desta forma, avançamos rumo à consciência e luta conjunta por justiça, igualdade de direitos e tudo o mais que merecemos." . Anne, 28, Professora, idealizadora do blog Preta, Nerd e Burning Hell - "Quando a estética é usada como ferramenta de autoconhecimento, empoderamento e autocuidado ela gera autoconfiança e possibilidade de conscientização." . #PRETOCOLORE #Fotografia #CCXP #PretaNerd #BlackGirlMagic
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