Cannon Busters: sobre anime com pretos humanos
por Camille Legrand
Cannon Busters é o novo anime original da Netflix e que entrou no catálogo em 15 de agosto. Talvez pelo fato de ser proveniente da adaptação da história em quadrinhos de mesmo nome de LeSean Thomas (presente na equipe do famosíssimo The Boondocks e de A Lenda de Korra), lançados em 2005, a presença e representação negra, além de ser majoritária não possui nenhum tipo de estereotipia racial. Na trama, acompanhamos a saga da androide especial S.A.M. e do robô de manutenção Casey Turnbuckle, juntamente com um possível fora da lei imortal, Philly the Kid, em direção a cidade de Nara e em busca do príncipe herdeiro do Reino de Botica.
Uma sinopse bem comum, mas a proeza da história vai além. Thomas se utiliza da ampla liberdade que uma animação traz para explorar e criar um mundo completamente novo que se faz por elementos de diversas regiões do nosso planeta, bem como por diversos seres, sejam humanos ou não. A narrativa fantástica do anime mistura o real com o ficcional da melhor forma possível, permitindo a identificação da telespectadora com e das situações propostas e retratadas.
A inspiração trazida da HQ de três volumes de Thomas, que está em um hiato indefinido desde 2009, se traduz na tela em uma animação extremamente dinâmica e colorida. A escolha dos roteiristas foi de não fazer uma narrativa completamente estática, estando presentes ocasiões de flashbacks, e com a telespectadora acompanhando tanto a saga do trio principal quanto a do príncipe Kelby.
A diversidade dinâmica de personagens
A quantidade de personagens e histórias que se cruzam é grande, mas o que nos impressiona e encanta, por certo, é a diversidade de personagens e backgrounds de cada um.
Não é exatamente pela quantidade de cenários e distintas regiões presentes na animação, mas a adaptação da Netflix é uma das poucas que não falha em representar a diversidade étnico-racial em suas personagens. Saindo do clichê de estereótipos direcionados aos corpos negros recorrente em animes estado-unidenses e de potências do segmento no leste-asiático (Japão e China), a animação não poupa em representar como a multiculturalidade é algo presente, ou será presente, se considerarmos a história como uma futurista, em todas as regiões e classes sociais. Na verdade, além da simples diversidade entre humanos - percebida na cor de pele, nos traços, no sexo e no gênero - a presença de seres não humanos (alienígenas?) permite ampliar ainda mais o alcance da representação dos personagens na trama.
O que atrai - ou não - a telespectadora, porém, é que os protagonistas são claramente não-brancos, sendo que pode-se ler S.A.M. e o princípe Kelby, pelo menos, como jovens negros, estando Philly em um espectro mais ambíguo, mas evidentemente com a pele mais pigmentada. Talvez essa característica, inclusive, seja o que faz o “problema raça” não ser uma questão nunca minimamente tratada na história ou mesmo até percebida.
Além das questões de amizade e de representações de poder colocadas na trama, esta última sendo retratada tanto pela óbvia monarquia quanto em dimensões menores como as armas, nessa primeira temporada no anime o tema racial não foi explorado em nenhum momento. Na verdade, distintamente do que a premissa fazia parecer, a magia foi a grande descoberta trazida, podendo ser tanto o início quanto o fim de tudo.
O criador LeSean Thomas |
A cultura de animes ainda não é uma, particularmente, inclusiva e diversa, sendo Cannon Busters a mais recente adição a pequena lista de animes nos quais os personagens pretos ocupam posições de protagonismo e/ou não são retratados de uma forma racialmente estereotipada. Isso se atribui, principalmente, a seu criador que faz parte da nova geração de fãs de animes que não mais se satisfazem em apenas assistir, mas buscam participar da criação da mídia historicamente japonesa.
A coprodução entre Japão (produção: Satelight Inc.), Estados Unidos (criação: LeSean Thomas e streaming: Netflix), Reino Unido (financiamento: Manga Entertainment Ltd.) e Taiwan (financiamento: Nada Holdings Inc.), para além da diversidade de equipe que se traduz e mantém na animação, dá um show de criatividade ao fundir elementos clássicos de animes japoneses (como os robôs gigantes, mecha) e da cultura urbana norte-americana, sendo o melhor exemplo a impecável trilha sonora.
Ao contrário do pensamento comum e retrógrado de que animações são para consumo exclusivo do público infantil, Cannon Busters é evidentemente voltada aos mais velhos. Além da figura do protagonista Philly the Kid ser um fora da lei extremamente desbocado, recebendo coro das demais personagens que xingam e ofendem com a mesma intensidade, as cenas de violência - com Philly morrendo praticamente uma vez por episódio - podem ser muito intensas para alguns.
Tal essencialidade do anime, entretanto, não impede que ele se apresente como uma obra que merece ser vista e aproveitada, trazendo muito mais pontos positivos do que negativos, além de ser surpreendentemente divertida.
Triplo Feminino: Protagonismo, Quantidade e Qualidade
O pôster principal da animação não mente, apesar de nos enganar um pouquinho: o protagonismo e a presença majoritária na história são femininas. De pronto, no primeiro episódio, aparecem como protagonistas a androide S.A.M. e a robô de manutenção Casey, as quais se farão presentes em todos os demais episódios.
É com certeza curioso e divertido ver como duas droides claramente acostumadas somente com uma situação social de, no mínimo, etiqueta elitista constante, têm que se virar em meio a situações muito mais perigosas e brutas do que o usual para as mesmas. O fator cômico da trama, inclusive, se faz pela chocante ingenuidade de S.A.M. ao tentar fazer amigos nas mais diversas e peculiares situações, ignorando completamente os ares de inimizade até ser quase fatal.
Afinal, como é mostrado na trama - incrivelmente rápido até, não havendo nem tempo para dúvidas - o título do anime se dá unicamente (pelo menos até a presente data) por S.A.M., estando toda a história envolta e evoluindo em razão dela.
A robô Casey, no mesmo sentido, também externaliza suas percepções das situações em que se encontra de um modo que se torna impossível não rir. A obsessão dela por uma atualização que garanta sua relevância, bem como pelo constante melhoramento da Cadillac Eldorado chamada Bessie - que, para sorte do trio, também se transforma em um robô touro de ataque - é tão unidimensional que chega a ser caricata. Além disso, quando a robô abandona essa obsessão em favor de seu amigos (tomodachi na romanização em japônes, palavra que é incessantemente repetida na animação), a sutil evolução da personagem faz da série ainda mais cativante.
Diferentemente do racismo, que como já dito não é muito explorado na trama, o machismo está presente em diversas das interações entre as personagens masculinas e femininas. Em uma narrativa que se apoia principalmente em elementos de sci-fi e (talvez) cyberpunk e em um mundo primariamente desconhecido em que se mistura o velho oeste com tecnologia e monarquia - especificamente do período Edo japonês, poderia ser utópico pensar que as já conhecidas falhas humanas não existissem.
Apesar das máquinas e armas futuristas, além dos robôs, parece que a história é construída em uma esquizofrenia histórica, em que, dependendo da região retratada, há uma característica temporal diferente. Nada que seja especialmente distinto de como a maioria das histórias de entretenimento fantástico se utilizam do trunfo da ficção, mas ainda assim interessante de se assistir, principalmente já que isso não é em nenhum momento citado pelas personagens.
O machismo, principalmente caracterizado pela objetificação do corpo feminino, embora não muito retratado no cenário “de elite”, se repete contra as diversas personagens femininas da animação, sendo reproduzido até mesmo por Philly the Kid. Em conjunto inclusive com a insegurança de uma das personagens, o machismo é a causa da morte de uma das personagens femininas por, supostamente, ter chamado o outro de “baixinho”.
Isso, entretanto, não impede que a trama apresente as mais diversas personagens femininas, desde mercenárias de beira de estrada até soldados de um ditador megalomaníaco, trazendo ainda mais vantagens a animação.
De tanto que há para comentar, observar e gostar, é claro que 12 episódios é pouco. A Netflix ainda está para confirmar uma segunda temporada do anime, mas pela nota média da crítica especializada - algo em torno de 7 - e com a mesma renovando séries muito mais, digamos, polêmicas, aposta-se que a animação terá sua segunda temporada confirmada mesmo não sendo particularmente apropriada ao público infantil.
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