Resenha: Indivisível (Marília Marz)
por Anne Quiangala
Você já parou pra pensar no porquê do bairro da Liberdade, em São Paulo, ter esse nome? Por acaso, sabia que existe uma história do povo negro literalmente abaixo deste bairro? Com o intuito de desenterrar essa história e trazê-la à luz que a quadrinista Marilia Marz produziu o quadrinho independente Indivisível.
Antes de tudo, cabe dizer que a autora tem uma ligação afetiva com o bairro muito antes de ter acesso à história, e segundo ela, foi ao escolher o tema do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na área de arquitetura e urbanismo que ela conheceu essa nova perspectiva sobre o seu lugar favorito em São Paulo.
Na edição especial, além do quadrinho, temos o TCC “Almas, Dragões e o Indivisível” (2017) diagramado como uma experiência teórica: nele, Marília Marz fala em primeira pessoa sobre o que a conduziu ao tema, as dificuldades que enfrentou pela falta de fontes unívocas, as perspectivas teóricas e o processo de analisar as possibilidades narrativas contidas no espaço urbano tão significativo na cidade de São Paulo.
A surpresa diante do "milagre" da corda estourada |
TEMPO ESTRUTURA
Indivisível foi pensada como uma reconciliação, o retorno ao passado pra recuperar o que foi perdido (no caso, um elo entre a identidade negra do passado e do presente no espaço urbano onde atualmente somos remetidas à etnicidade leste-asiática, nipônica em especial) e representar “a coexistência dinâmica das cultura negra e [amarela] no bairro e as várias cidades de diferentes períodos históricos associadas a elas nas narrativas criadas” [tanto pelo Estado quanto pela reiteração cotidiana] (MARZ, 2019)
Esse reencontro com o passado soterrado é observado na estrutura do quadrinho físico: você pode começar a ler Indivisível a partir de qualquer uma das capas e, independente do lado que escolha, uma narrativa vai encontrar a outra. Tal experiência nos coloca metalinguisticamente na situação de entender que o tempo não é linear, que passado e presente coexistem e destruir um significa destruir o outro.
Num contexto social em que o apagamento da identidade, perspetiva e presença negra são um fato, o resgate do passado é imprescindível para o empoderamento da população negra na construção de futuro. Assim, a obra contribui para uma nova forma de olhar a história, a cidade e a identidade racialmente marcada.
Embora escolher o ponto de início não seja possível na versão digital, as histórias inevitavelmente se encontram, e a ideia central se mantém. Um ponto positivo desta versão, além da acessibilidade é a beleza do vermelho digital, que é realmente maravilhoso.
Também cabe destacar que maneira como a obra é construída é um exemplo do porquê os quadrinhos diferem da literatura: uma história em quadrinhos que faz o uso da gramática própria (requadros, balões e diagramação) para contar uma história conduzindo nosso olhar e proporcionando uma experiência visual além do texto verbal, extrapola o que uma prosa pode mostrar. A organização gráfica do real focada em ângulos que normalmente não prestamos atenção, a exibição de sequências que representam a passagem do tempo durante uma caminhada pelo bairro fazem de Indivisível uma experiência de caminhar pelas diferentes camadas históricas e identitárias da Liberdade.
Marília Marz e Indivisível |
O ELO ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO
Indivisível é dividida em duas narrativas: a história de origem do nome do Liberdade e um dia no bairro. As duas identidades, negra e amarela, que protagizam cada uma das partes, são mostradas em tempos diferentes para representar as conexões invisíveis entre passado e futuro. É através da contradição visível que somos levadas aos questionamentos produtivos: há duas igrejas católicas (Santa Cruz dos Enforcados e a Capela dos Aflitos) nas quais os negros se reuniam que destoam do que é esperado duma região “japonesa”.
Além das igrejas, escavações com o intuito de construção de habitações trouxeram a tona ossadas que pertenciam a pessoas negras escravizadas no periodo colonial. O Cemitério dos Aflitos é uma concreta definição de diferentes camadas de tempo sobrepostas, que fazem parte do todo e não têm início ou fim.
No período colonial, a região conhecida hoje como Liberdade era habitada majoritariamente por pessoas negras. Naquele tempo, somos introduzidas à história do soldado negro Chaguinhas, que usava sua condição para ajudar pessoas escravizadas a fugirem. Em dado momento, ele foi setenciado à forca e, ao ser enforcado, a corda se rompeu três vezes. Esse fato criou uma aura que comoveu a população a ponto de gritarem “Liberdade”. Isso ocorreu em frente à atual Praça da Liberdade. Embora Chaguinhas tenha sido brutalmente assassinado pelo Estado, sua história foi imortalizada no nome do bairro da Liberdade.
“Os mitos oriundos de situações como essa – almas de escravos injustiçados que vagam pelo bairro – fortalecem o sentimento de resistência da população negra, mas enfraquece, para os outros 46% da população do Brasil, a conscientização da dívida histórica de um país que carrega um passado escravocrata, pois ao chegarmos na Liberdade enxergamos apenas o bairro oriental” (MARZ, 2019)
Além da pesquisa da arquitetura, vestimentas e hábitos da época como referências do romance gráfico e da historicidade do bairro, moldada por versões contraditórias recuperada através de entrevistas, Marz se valeu de uma camada mística, que faz parte do imaginário sobre pessoas negras injustiçadas (espíritos que vagam, assim habitam o tempo presente) e de símbolos xintoístas relacionados à temporalidade cíclica. As contradições e as lacunas presentes na história do bairro só puderam ser resolvidas e preenchidas por escolhas da autora e um exercício imaginativo, de modo que fica evidente em Indivisível que a ficção é uma possível ferramenta de desvelar enigmas.
Na segunda parte, acompanhamos um jovem amarelo pela Liberdade e temos a conclusão de que a “verdade” não é um ponto final duma reta. Identidade também é um elemento que se transforma conforme as trocas culturais, experiências e necessidade de adaptação. O universo desordenado do jovem que passeia pela cidade, se perdendo e se encontrado, questionando e sentindo as mudanças, envolto por colagens, fotografias, ícones e ãngulos não consciliaveis da cidade traz à superfície a memória que as instituições tentam esquecer.
A fragmentação e hibridismo notáveis na estruturação dessas páginas representa muito bem a contemporaneidade |
CONCLUSÃO
Marília Marz partiu do conceito de identidade para descobrir as diferentes camadas do tempo sedimentadas na história do Bairro da Liberdade. Seu olhar voltado pras mudanças urbanísticas abre uma importante discussão sobre como a estruturação e memória de uma cidade funcionam como substrato de práticas de exclusão social.
De uma forma poética, a quadrinista lança um olhar sobre o real que desnaturaliza as convenções sobre a Liberdade ser unicamente “um bairro leste-asiático” e nos oferta o belíssimo contraponto em naquim, retícula e colagens dando voz a edificações de grande importância para a população negra sem descolar dos elementos que fazem o bairro ser tão conhecido e apreciado hoje em dia. Depois deste quadrinho, certamente você verá o bairro da Liberdade de uma perspectiva completamente diferente - o que é maravilhoso!
Conheça mais trabalhos da Marília Marz em: www.mariliamarz.com
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