O Mundo Invisível Entre Nós e suas vivências marginais
por Camille Legrand
Confesso que não conhecia a obra de Caitlín R. Kiernan antes de ler a coletânea O Mundo Invisível Entre Nós da Darkside Books. Acontece que, além de já ter uma publicação pela editora no currículo – A Menina Submersa –, a autora é uma voz (re)conhecida no nicho literário de fantasia dark e ficção científica. Sua ficção, entretanto, deixa de lado os recorrentes temas espaciais pelos quais o gênero é reconhecido e se baseia em descrever e imaginar uma realidade fantástica possível. A autora não trata de futuro – de fato, todos os contos da coletânea foram escritos e se passam antes de 2005 – mas de possibilidades presentes e mundos reais que nos fogem aos olhos.
O título da coletânea já é uma dica do que vamos encontrar ao longo das quase 500 páginas de literatura. Kiernan oferece uma mistura de realidades humanas e fantásticas que apresentam, em igual proporção, conflitos passíveis de veracidade do mundo real e características sobrenaturais. Apesar de haver um gênero inteiro dedicado a esta união, ainda é raro encontrar autores que consigam juntar os opostos de forma a torná-los complementares. Esse aparenta ser o objetivo dos contos e da escrita de Kiernan.
Papel de Marginalidade
Parece, em uma primeira leitura, que os mundos criados por Kiernan trazem o sobrenatural como algo "peculiar porém aceitável", com uma fonte entendível e leve de curiosidade popular. Desde jornalistas a adolescentes bisbilhoteiros, os aspectos sobrenaturais dos mundos invisíveis aos nossos olhos é tratado como diferente, mas comum e, ainda assim, a conexão com a nossa simples realidade humana é plenamente capaz. O conto A Essa Água é um exemplo claríssimo da proposta de comunhão entre os dois mundos.
Através dos contos, em verdade, vê-se que o manejo poético de Kiernan na construção de suas narrativas é um dos mais envolventes e significativos. Em todas as páginas de sua coletânea, a autora transmite a ideia de que nos conta um segredo extremamente íntimo, mas essencial de ser contado. Os elementos de realidade que colorem cada texto, nos absorvem para as histórias e estabelecem uma identificação com o público capaz de fazê-lo aceitar as peculiaridades invisíveis de cada mundo e agarrar-se nos elementos de semelhança com o mundo em que vive, mas imaginar as possibilidades cabíveis, caso os fatos extraordinários contados fossem possíveis.
No caso do conto supracitado, por exemplo, a trama apresenta uma possibilidade fictícia à responsabilização de autores de violência sexual contra mulheres distinta do caminho usual (e humano) de processo judicial. No caso, a penalidade é resultado da própria união de forças entre o espectro humano e o sobrenatural, a qual vai além do mundo humano e apresenta uma versão fantástica da Lei de Talião.
A autora, Caitilín R. Kiernan (imagem: reprodução) |
No caso do conto supracitado, por exemplo, a trama apresenta uma possibilidade fictícia à responsabilização de autores de violência sexual contra mulheres distinta do caminho usual (e humano) de processo judicial. No caso, a penalidade é resultado da própria união de forças entre o espectro humano e o sobrenatural, a qual vai além do mundo humano e apresenta uma versão fantástica da Lei de Talião.
O que se expõe na maioria dos contos, entretanto, são os diversos graus de marginalidade atribuída àqueles que se domiciliam nesse mundo entrelinhas. A sociedade sobre a qual Kiernan escreve é, afinal de contas, a nossa sociedade real e finita. Uma sociedade que ainda, apesar de ações contrárias ao longo dos séculos, se alimenta (do) e reproduz o apontamento de diferenças de maneira excludente e estratificada. O conjunto de tramas, curiosamente, coloca – em grande parte – não apenas o meio sobrenatural como marginal, mas também os humanos não-brancos e imigrantes. A vítima do conto supramencionado, aliás, é uma mulher imigrante e da mesma forma em que foi indicado pela autora que a sua violência resultou de um sentimento de superioridade masculino, é certo que também decorreu da xenofobia latente na sociedade.
E Magda não grita, porque disseram que, se ela gritar, se ela chorar ou até falar, eles vão cortar a língua dela, vão cortar sua garganta imigrante de orelha a orelha, e ela sabe inglês suficientemente para entender as ameaças.
Mas e o mundo real?
As invisibilidade e marginalidade denunciadas na obra não são apenas fictas, referentes a histórias e seres sobrenaturais, mas também a indivíduos que fogem ao modelo branco e masculino. Nessa hipótese, a acusação de Kiernan é muito mais grave devido a sua realidade e veracidade quando em comparação a nós do que é demonstrado nos contos. Em contraponto, por vezes a linguagem utilizada pela própria autora reproduz racismos literários já reconhecidos e que se envolvem em cenários igualmente discriminatórios criados por ela.
Ora, é claro que eu não esperava um posicionamento especialmente distinto e “revolucionário” de uma mulher branca, mesmo que ela carregue a vivência sociopolítica distinta e marginal de uma mulher trans, mas a surpresa seria bem-vinda.
A crítica, entretanto, ainda é válida. O teor marginal dos contos de Kiernan se consagra em uma edição – além de linda – pensada para relacionar os seres desprezados do mundo real (insetos) aos segredos humanos possíveis de existir quando observam-se diferentes perspectivas. Ademais, consegue evidenciar verdades majoritariamente ignoradas pelo grande público através de máximas humanas de vida e morte, dor e prazer, amor e ódio etc.
Tanto a beleza quanto a maldição da obra de Kiernan se amparam no fato de seus contos, apesar de trazerem elementos de fantasia, não se afastarem muito da realidade de não-ficção, o que alimenta a proposta de sintonia narrativa da autora. A análise das tramas consegue demonstrar que o mundo invisível entre nós é aquele que ignoramos pelo individualismo e pelos sensos de comunidade e de humanidade mínimos. Afinal, é papel da ficção científica imaginar o que o mundo poderia ser, mas o papel primordial da literatura é o mostrar como ele é.
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