Ma: O que é horror para uma mulher Negra?
Por Anne Caroline Quiangala
“Traumas sempre deixam uma cicatriz.
Seguem-nos até nossas casas, mudam nossas vidas”
(Grey’s Anatomy, T5 E19)
Contém Spoilers
Ma (2019) é um filme de suspense da Universal Pictures/Blumhouse protagonizado por Octavia Spencer, uma atriz conhecida por interpretar personagens amáveis, encantadoras e engraçadas, que ganham destaque antes pela sua presença do que pelo que o texto propõe. Exemplo disso é Histórias Cruzadas (The Help, 2011) um filme que tem em comum com Ma a direção de Tate Taylor. Apesar disso, sejamos otimistas, pois Jason Blum (Corra, 2017) assina a produção e Spencer assina a produção executiva – já é algo. Adianto que o filme vale a pena ser assistido com atenção plena.
Em Ma temos a história de Sue Ann, uma mulher Negra, de meia-idade, solitária e funcional que tem a sua vida atravessada por uma adolescente branca e forasteira, Maggie, propondo à adulta que compre bebidas alcoólicas para "curtir" junto aos jovens amigos. Depois de comprar as bebidas, Sue Ann convida o grupo para beber em segurança no porão de sua casa, onde regras são definidas: alguém tem que ficar sóbrio, não podem cuspir no chão, não podem amaldiçoar, não podem subir as escadas e, naquele lugar, devem chamá-la de Ma (mãe). No porão, tudo pode ser feito, a diversão é garantida, então tudo parece “bom demais para dar certo”. Com a presença cada vez mais constante dos jovens, Ma começa a se tornar obsessiva, e a sua casa se transforma no pior lugar para eles estarem.
ROMPIMENTOS E CONTINUIDADES
Ma é um filme do gênero suspense que entrelaça três linhas históricas distintas, que se aproximam e distanciam. Em primeiro lugar, temos o presente, quando acompanhamos a mudança de Maggie, sua mãe e o cão Loui para Ohio, onde precisam se encaixar. O fato de Erica ser mãe-solo e ter um trabalho precário são índices da sua “falha” em se encaixar nas normas sociais, mas, aos poucos, à medida que vemos seus colegas de classe da adolescência vivendo de forma “desestruturada”, fica mais evidente a falência da normatividade e a persistência da opressão sistêmica.
A segunda linha é o passado próximo, no qual Erica e seus colegas de escola populares – pais do grupo de amigos de Maggie – aproveitam a vulnerabilidade e isolamento de Sue Ann para uma emboscada cruel e humilhante. Erica era popular líder de torcida, mas não se sentia completamente à vontade com os colegas, o que levou a assumir uma posição de isenção no desenrolar do incidente traumático para Sue Ann. Devido ao privilégio racial, Erica é uma personagem com grande potencial de transformação, mas sua escolha demonstra que não lutar contra a opressão é uma forma de compactuar com os opressores.
A terceira linha é a realidade traumática do passado colonial, que é reencenada no racismo cotidiano vivenciado por Sue Ann: com base em sua aparência física, gênero e idade, ela é retirada do presente e reinserida no cenário de uma casa-grande, subordinada, coisificada e associada ao feio, sujo e cruel. Ao aceitarem ir para a casa de Sue Ann para beberem, os jovens assumem que está estabelecida uma relação unilateral, na qual a anfitriã os serve sem cobrar nada em troca. Isto é marcado em diversas falas, em especial de Hailey (filha da adolescente que arquitetou a humilhação na segunda linha do tempo): “Aceito [entrar na casa] porque quero fazer xixi” e “Dá uma lista que ela [Sue Ann] providencia tudo”.
A temporalidade é um dos aspectos mais interessantes do filme, porque "tem gente que nunca muda, não é?" (Ben) |
Enquanto naquela primeira linha de futuro, cada personagem branco segue o curso de suas vidas fora da curva, e seus filhos dão continuidade à linhagem de privilégios sociais – inclusive de serem adolescentes, se divertir e cometer erros –, o foco do presente é a relação entre mães e filhas. A partir disso, podemos enxergar em Erica um ideal de maternidade saudável, nutridora, que apoia e se conecta com Maggie; ela e enfatiza: “eu confio em você” o que concede relativa autonomia para a filha. Já a filha de Sue Ann, Genie, é a cristalização de seu passado, a duplicação de sua dor, humilhação, isolamento e ansiedade, portanto, Sue Ann não se relaciona como mãe ideal, mas como uma Sue Ann do futuro que deseja proteger a filha do passado que ela viveu. Ao isolar a filha, pode parecer que Sue Ann é uma mera narcisista, displicente, mas a narrativa fílmica marca muito bem o quanto isso é reação ao trauma. Nada é essencial na relação entre vítima e abusadores, tudo é mostrado como processo, causalidades e consequências explicadas. Aliás, a reação também traz um tópico interessante para pensar: a mãe-preta era aquela que abria mão de cuidar dos próprios filhos para, "de bom grado" (visão colonizadora), cuidar dos filhos dos brancos, mas Sue Ann é uma atualização completa da mãe-preta?
Sue Ann é uma imagem que estamos acostumadas a ver na televisão e no cinema sempre refletindo uma condição mágica: com função de suporte emocional, servil para pessoas brancas e transbordando empatia por todo e qualquer ser vivo. A repetição dessa representação do corpo, carregado de ideias negativas, estereotipadas e racistas solidificou a Mãe Preta/Mammy como uma imagem de controle (COLLINS, 2019) que as classes dominantes usam para confinar os indivíduos, bem como definir como agem, como serão tratadas, vistas e, sobretudo, para manter vívida a relação de poder colonial no racismo cotidiano (KILOMBA, 2019). Assim, os jovens Chaz, Haley, Maggie e Andie não se relacionam com Sue Ann, mas com a imagem de controle da mãe-preta. Já Darrel, o único negro do grupo, não tem equivalente no passado recente, o que ironiza a "tolerância" e inclusão social que vivemos e a incorporação primeira de negros homens (um comentário sobre a ideia de que a intersecção de opressões é um fator importante pra entender as causas da violência contra Sue Ann).
Vale observar que Darrel funciona como alívio cômico, irrelevante, sempre tentando se conectar a Ma de forma inconveniente: “Tem pizza, Ma?” ou “É. Todos aqueles navios levando o nosso povo. Não é, Sue Ann?”. As estratégias para tentar invisibilizar a diferença e o desejo de pertencer são bastante conhecidas por Má, pois ela viveu tempos "mais extremos", então mesmo optando por perucas lisas (por exemplo) ela demonstra ter consciência de que ter a pele negra e usar máscaras sociais brancas não eximem ninguém de sofrer racismo, muito menos garante inserção real.
Este confinamento simbólico das imagens de controle (COLLINS, 2019) é um trauma para mulheres Negras, perpetuado pelos produtos culturais, e que deve ser reparado (também) através deles. É por isso que o estudo da representação é tão importante: o discurso da mídia, somado às práticas cotidianas, fratura cada mulher Negra em duas porções 1) o modelo de como ser, e 2) uma luta desgastante contra tais imagens uniformemente negativas (COLLINS, 2019). Deste lugar social, herdamos as memórias da plantação (KILOMBA, 2019), tanto quanto a visão de mundo de quem é marginalizada, mas está próxima ao centro o suficiente para apreender esta perspectiva. A partir do trauma, a Sue Ann presente demonstra saber exatamente quem é e o que quer, ao mesmo tempo, como é vista pelos outros. Na passagem em que ela está no salão cuidando das unhas, temos um índice de que o autocuidado faz parte de sua rotina tanto quanto o processo de reivindicar e desenvolver sua própria identidade. Sue Ann, portanto, borra as fronteiras da imagem de controle como aprisionamento e metodologia de ação a seu favor.
Esta posicionalidade da mulher Negra consciente de si e do outro, não tem sido explorada no cinema como ponto de vista – não o suficiente. Em Histórias Cruzadas há o mais puro complexo do salvador branco revestido de diversidade cosmética (KO, 2019). Em Corra, a policial – interpretada por Erika Alexander!!! – é a primeira a desacreditar o fato de que pessoas negras são sequestradas ou violadas de formas sórdidas cotidianamente. Já a Georgina, aparece muito mais servindo do que se expressando. No fim das contas, Estrelas além do Tempo, Beloved e Ma são raridades no mainstream e, apesar dos avanços, focam no agonizante sofrimento, mesmo quando há transcendência.
SUBVERSÃO DO CÓDIGO DO HORRORÍFICO
Nos filmes de horror tradicionais, os eventos sobrenaturais geralmente são arquitetados numa lógica maniqueísta, assim, é fácil determinar as posições de vítima e assassino, certo e errado. Geralmente, a assombração é o mal, os encarnados são o bem e fim de papo. Para pessoas negras, a experiência de racialização é um trauma tão concreto, que mistura tempo e espaço, e evidencia o quanto a realidade, regida pelas leis naturais, são tão horrendas e desestruturantes do eu (self) como uma assombração – senão mais! Vimos em Corra (Get Out, 2017) o quanto é relevante a metáfora do monstro como o outro racial, o racista, para discutir o modo como negros definem seus monstros sendo monstros para os brancos (BROOKS, 2017).
O filme brinca com os pressupostos sobre bem/mal e humano/monstro da audiência em cenas nas quais máscaras africanas são presumidas por Maggie e Haley como presenças malignas sobrenaturais. A riqueza da discussão sobre horror em Ma reside nestas sutilezas: não há nada de sobrenatural no modo como Sue Ann atua, suas atitudes dela são tão concretos quanto as dos monstros sociais. Os sustos com a chegada repentina dela indicam que não estamos seguindo o ponto de vista dela simplesmente. Já sua filha, Genie, é uma personagem com pouco tempo de tela, mas ao assustar Maggie e Haley com uma máscara e elogiar a brancura de seus dentes, deixa uma marca considerável na história porque reforça o quanto o medo é socialmente localizado (pessoas negras sabem o que elogio aos dentes traz de memória da plantação e que as máscaras não são ameaças).
Enquanto Ma é vista como um monstro para os jovens e seus pais, e até mesmo para aqueles que são mortos ao longo do filme, para nós, esse lugar do monstro que ela ocupa para os monstros dela nos interessa por revelar que essa ambiguidade redefine a experiência comum ao nosso repertório de filmes de horror (COLEMAN, 2019). A violência sofrida por Sue Ann, não justifica seus atos, mas na narrativa, entendemos que foi suficiente para ela se transformar em uma pessoa que mata, tortura e mostra sua letalidade de modo cruel, e arquiteta uma vingança contra aqueles adversários do passado e os do presente, "pois algumas pessoas não mudam".
O modo como a figura de Ma embaralha noções do que é perturbação, monstruosidade e medo põe em xeque o código tradicional do horror (COLEMAN, 2019). Isto ocorre porque os temas são definidos pelas posições sociais próximas aos valores normativos (sujeito branco, homem cisgênero heterossexual, normopata) e isso é reiterado na maior parte dos filmes populares. Embora haja aspectos problemáticos na maneira como ocorre o desfecho de Sue Ann e sua filha, isso revela a realidade histórica de que não há solução real e estável para pessoas negras no mundo em que vivemos.
O final presumido de morte não é uma solução plena, e não poderia, porque o fim do racismo é uma proposição de futuro distante. Assim, a vida segue seu curso para quem sobreviveu à história, mas pra quem estava do outro lado da tela, a quebra da quarta parede (quando Ma olha pra gente) é um ponto de partida precioso para pensarmos sobre o que significa horror do ponto de vista social das mulheres Negras.
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