REVIEW| Capitã Marvel: Mais alto, mais longe, mais rápido de Liza Palmer




"Aconteça o que acontecer, 
lembre-se sempre de quem vocês são. 
Não do que eles dizem que vocês são"
(PALMER, 2021, p. 177)


MAIS ALTO: DENVERS NOUTRAS MÍDIAS


Assistindo ao filme Capitã Marvel você se perguntou sobre como a amizade entre Danvers e Rambeu frutificou? Aquela passagem de tempo acelerada que mostra o quão árduo foi o treinamento militar, mesmo a sequência em que as duas amigas fazem sinal, e tomam seus lugares nas aeronaves, nos dão um plano geral sobre Carol Danvers, mas muitas perguntas ficam no ar. E é justamente com o intuito de nos fornecer mais detalhes, que Liza Palmer construiu a linha geral do romance Mais alto, mais longe, mais rápido, publicado no Brasil pela editora Excelsior em 2021.

Nesta história, que se passa na década de 1980, acompanhamos Carol Danvers em seu primeiro ano na escola de vôo na Força Aérea dos Estados Unidos. Grande parte dos acontecimentos são experiências desproporcionais que servem como plano de fundo para um discurso feminista embrionário, sobre como as instituições favorecem os homens, especialmente porque eles são socializados para se apoiarem apesar de discordâncias. 

Assim, Danvers se sujeitará a toda a sorte de situações de testes físicos, que evidenciarão que ser igual ou melhor, ainda significa ser insuficiente para aquela instituição. Neste processo de lapidação, Danvers precisa reconhecer o peso da hierarquia e se convencer de que argumentar, desafiar superiores ou questionar ordens - por mais irracionais que lhe pareçam - é só mais uma forma de justificarem que ela seja punida. Seu objetivo, junto à amiga, Maria Rambeau (no filme, interpretada por Lashana Lynch), que mostra uma nova camada de experiência de exclusão, de serem as primeiras mulheres pilotos de elite Flying Falcons, mas Maria sofrer por ser Negra, é a trama principal e proporciona uma grande lição para a jovem personagem que tem ideais de igualdade bem genuinos.

Não vou te enganar: o romance pode ser classificado como um filler, porque ao longo de um pouco mais de duzentas páginas não há nenhum desdobramento, nenhum evento disruptivo que cause impacto na trajetória da protagonista. Entretanto, isso não é demérito, já que a função do filler é apresentar detalhes sobre a história, especialmente aquelas que são sagas longas, focadas em ação, cheias de personagens. Em uma obra focada em mostrar todo o percurso da personagem, muitas detalhes são suprimidos para privilegiar o grande momento de resolução, então filler tem sua função de ser.

Enfim: Carol Danvers, a atual Capitã Marvel, é uma personagem com uma longa história na Marvel, então temos sua história de origem pulverizada em quadrinhos, como o encadernado Capitã Marvel #1 (Captain Marvel #1-#6 - 2012), mas a sua juventude na Força Aérea é uma parte de sua vida geralmente pincelada. Portanto, Mais alto, mais longe, mais rápido cumpre bem a função de mostrar detalhes sobre como Danvers é uma pessoa obstinada, mas isso não significa que tudo dá certo pra ela. Ao contrário, sua história de origem mostra exatamente como sua personalidade é firmada em valores rígidos, além de apresentar certa inabilidade social. Acompanhar tudo isso em primeira pessoa, a partir da perspectiva elaborada pela personagem, é uma experiência interessante que contrasta com o que podemos depreender da observação de sua presença tão confiante, em outras mídias.


MAIS LONGE: TRANSPOSIÇÃO/ TRADUÇÃO 


Diferente dos romances de Star Wars, que trabalham a transposição exata da experiência audiovisual, que é a primeira camada daquele universo, a transposição em Capitã Marvel: Mais alto, mais longe, mais rápido não é tão comprometida com esse formato (também não é demérito). Ele é um romance com linguagem simples, sem atrito na leitura e encorpado com um discurso feminista muito evidente: Carol e Maria se apoiam e se tornam uma célula que também empodera outros colegas. Nesta interação, a heroína se torna uma pessoa melhor, capaz de observar a complexidade que reside entre privilégios sociais e afinidade, já que ela mesma se torna amiga de um arquirrival que poderia ser Flying Falcon com mais facilidade, só porque é homem e branco.

É positivo o modo como personagens secundários, mesmo os privilegiados, assumem uma posição mais complexa do que imagens de controle e expectativas sociais. A própria Danvers é cheia de traumas de experiências injustas vivenciadas na família, o que justifica o ímpeto que ela demonstra diante de situações desafiadoras. Ela tem muita dificuldade no controle inibitório, e um senso de justiça apuradíssimo, embora norteado por uma perspectiva, em certa medida "infantilizada", porque também privilegiada, de como a discriminação institucionalizada funciona em camadas.

Captain Marvel #1 (Setembro/2012)


Tive que pesquisar sobre piruetas de voo para ter uma ideia geral nas passagens em que Carol e Maria pilotavam aviões, apoiadas por uma geração de pilotos anterior. Tais descrições não impedem a compreensão de leitoras leigas, porque existe um cuidado em equilibrar a linguagem técnica, nomes de modelos e a centralidade na narrativa em si. Além disso, a compreensão mais histórica a respeito da conquista de direitos e ampliação de acessos mostra a importância de jovens ativistas não reiventarem a roda, ainda mais sozinhas: a geração de pilotos mais experiente passou por obstáculos semelhantes e conhecem ferramentas ainda válidas. Isso vale tanto pra gente!

MAIS RÁPIDO:


Há uma certa magia no modo como a narrativa é permeada de um certo otimismo da vontade, apesar da força social contrária se sobrepor aos individuos obstinados. Não há mais o que fazer, quando Carol e Maria percebem que nunca foi sobre suas habilidades. E, nessa jornada elas não perdem a esperança, mas passam a valorizar mais ainda o senso de integridade e o autovalor:

Sou uma boa pilota. - A voz de Maria ressoa pela sala. Forte e orgulhosa. Um sorriso largo surge no meu rosto. Eu sei o quão difícil foi pra ela dizer, porque eu também precisei dizer a Jack hoje cedo, de  uma maneira ou de outra (PALMER, 2021, p.123)

Muitas cenas de companheirismo, que poderiam ser contemplativas, como no exemplo acima, são melhor aproveitadas por experienciarmos Mais alto, mais longe, mais rápido na perspectiva de Danvers. A reciprocidade manifestada entre as amigas é muito superior às atitudes mesquinhas do comandante e injustiças, e uma sensação que fica após a leitura é que nós lutamos demais pra alcançar metade, às vezes, até nada, mas isso não é sobre nós, nem sobre quem somos, nem sobre o que estamos fazendo. A própria Danvers diz:

Aprendi que eu não precisava cortar partes de mim e oferecê-las a outras pessoas para que elas pudessem debater e determinar seu valor. Sou eu que decido. O que sifnifica que finalmente vou enfrentar este dia como um ser completo e poderoso. Inteiro! (PALMER, 2021, p. 155)

Essa consciência de Carol é um amadurecimento essencial para todo mundo que "está além dos trilhos". Muita gente pode argumentar que é um livro simples, leve e repleto de clichês, e não posso discordar sobre isso, o livro é o que é. Mas reitero que é uma proposta, não apenas válida como necessária: ele aborda temas relevantes para "nós" e mostra que, às vezes, uma mulher - estamos sempre sendo obrigadas a lembrar de que não somos homens - só quer se divertir. Às vezes, pra gente, ir mais alto, mais longe e mais rápido é sobre apreciar uma boa aventura, na perspectiva duma heroína imperfeita, lutadora e cheia de coisas pra aprender, como nós.






*Liza Palmer é autora do best-seller Conversations with a Fat Girl, bem como outros romances. Ela foi indicada ao Emmy e mora em Los Angeles.

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