Análise | The Acolyte - Temporada 1, Episódio 1: Perdido/Encontrado
“O mainstream jamais nos encorajará a ampliar as nossas discussões sobre como podemos advogar por uma cidadania inalienável a partir da solidariedade antirracista, antiespecista, multiculturalista radical e anticapitalista em que caiba gênero e anticapacitismo. Muito menos uma franquia sobre meritocracia espiritual que prevalece num futuro bem distante”
Por Anne Quiangala
*essa análise tem spoilers*
O CONTEXTO DE ACOLYTE
A série The Acolyte (2024) se passa cem anos antes da ascensão do Império, e, sendo assim, explora um território ainda pouco desenvolvido no universo de Star Wars (a Alta República), o que a torna uma excelente entrada para um novo público, assim como proporciona um olhar fresco para o público de sempre.
Além disso, a narrativa se passar no final da Alta República (período esse compreendido como o auge do poder jedi), escancara a cumplicidade da Ordem e de seus cavaleiros com a expansão colonialista, embora sua autoimagem reflita uma noção mais de "emissários da luz”, como diria minha amiga Kaoru. Sendo assim, a série tem um potencial interessante de exercício de autocrítica, até mesmo de quem assiste e nossas relações com as instituições que se propõem nos livrar das trevas de ignorância. O que em nossas formações preserva o seu oposto sem que nos demos conta? O que nos liga ao “lado de lá” da força?
Claro, não é o ponto aqui argumentar que os jedi e os sith são a mesma coisa, porque obviamente não o são. Reconhecer que cada um desses polos carrega o seu oposto, não é um exercício de equiparação desses usos da Força, apenas o entendimento de que um ponto de partida semelhante, isto é, uma noção de como o mundo deve ser (solar ou sombrio), se for rígida e excludente (e nem falo de acolher diferentes raças e espécies, pois SW é um mundo que se propõe pós-racial), direciona a uma totalização que ignora as partes que lhe compõem, e, Justamente por isso, os opostos de encontram. A passagem de Anakin a Darth Vader, e do próprio Baylan Skol ilustra bem essa ideia. Se a sua verdade falha, resta a eles se atraírem pelo poder, uma verdade que lhes parece mais estável e concreta. Não é por acaso que as lutas com sabres de luz são precedidas por lutas discursivas, em que o sith tenta convencer seu oponente de que não adianta lutar e que a sua vontade não é forte o suficiente
Nisso também reside o do poder da alienação, que nos desvia da nossa própria perspectiva, fato que a trajetória do Finn representa muito bem, exceto no anticlímax que frustrou a nossa expectativa de assistirmos ele se tornar um jedi.
Ao propor uma leitura dialética, acredito que a ferramenta nos possibilite compreender o processo de mudança política que desembocará na Ameaça Fantasma (Episódio I). O fim da Alta República é a zona limítrofe, e essa fratura mostra que os germens do autoritarismo já estavam presentes no modo como jedi toleravam o colonialismo, reprimiam os sentimentos, bem como presavam pela ordem e hierarquia. Por sua vez, Ascenção dos sith é uma negação de tudo o que é da cultura jedi pura, a partir de um profundo conhecimento de suas técnicas e a subversão delas, como o “envenenamento dos sabres”. Assim como os dois lados da realidade, representadas pelos usos da Força se mostram inseparáveis, as ibeji Osha e Mae são as duas faces de uma mesma moeda em um franco período de aceleração rumo à mudança, que exigirá uma síntese totalmente nova (que, é claro, não está no DNA da franquia).
COM CALMA: FALANDO DA SÉRIE
Seguindo a estratégia do Disney+ de lançar episódios semanais, e coroando a primeira semana com dois episódios, a série já nos apresenta no título do primeiro episódio um interessante índice para a nossa discussão: o par de opostos Perdido/Encontrado.
O episódio começa no planeta Ueda, com uma jovem Negra, encapuzada com vestes pretas entregando uma moeda dourada em troca de informações, bem na entrada da cidade. Essa breve transação vai se repetir em outras cenas igualmente breves, e isso dará o tom feiticeiro das relações de poder, naquele universo, além de sinalizar a correlação da personagem com o lado sombrio e o poder do dinheiro de mudar a realidade. Mas vamos por partes.
Primeiro, essa jovem adentra os portais da cidade em busca de uma Jedi, a Mestra Indara, a quem ela incita: “me ataque com todo o seu poder!”. A luta entre elas é dinâmica, e o ângulo da câmera reitera a diferença de poder e técnica entre elas; a princípio, Indara se recusa a lutar, mas incapacita a desafiante e a observa de cima, com a forma jedi de demonstrar equilíbrio, controle da situação e superioridade moral. O interessante dessa sequência é que ser jedi coincide com o fato da mestra ser uma mulher branca e impassível, ao passo que a personagem Negra – ainda não nomeada – presentifica o oposto disso; seu estilo de luta é emocional, sem foco e mais “físico”.
Embora numa primeira camada possa parecer que há um maniqueísmo simples, (bem/mal, alta/baixa, mais velha/mais nova e branca/preta) a contradição entre o que Indara diz (“Jedi não atacam pessoas desarmadas”) e a resposta (“sim, atacam”) revela sobre o que realmente aquela luta significa; trata-se de uma disputa discursiva, entre visões de mundo, e a jovem está em busca de uma verdade que ela deseja que a sua oponente admita. Existe muita raiva e desejo de vingança, que a série contorna muito bem. Em vez de reduzir a personagem ao estereótipo da “Negra raivosa” ela deixa elementos que nos levam a compreender que, a despeito de sua atitude violenta, ela tem um ponto.
Segundo, é importante destacar, que, apesar de pertencer ao grupo maior “pessoas negras”, a personagem ser “preta” (mais melaninada) significa que a série não negociou identidades; a maioria dos mestres por quem ela nutre o forte desejo de vingança, são pessoas indiscutivelmente brancas, e com imenso controle sobre a Força, além de prestígio e respeito. Existe, nesta cena, uma explícita luta contra a supremacia branca, que vai se confirmando ao longo do episódio; Indara não precisa dizer nada objetivamente supremacista, mas a sua atitude condescendente carrega um sistema de crenças de superioridade que são fortalecidas pela dominância da instituição a qual responde (KO, 2019). Durante a luta, poderemos pensar melhor a respeito daquela instituição a qual fomos treinadas por décadas a acreditar, sem questionamentos, que é constituída por heróis, éticos, que “levam” os malvados à justiça.
Como o senso de superioridade dos jedi, em grande medida, marcado pela isenção, foi muito reforçado nos filmes, então isso abre um espaço interessante de contestação a partir da presença de Indara em The Acolyte, sem recair numa ideia de anomalia e misoginia simplistas. Sabe aquela ideia de “a Ordem tem boas intenções”, mas os sujeitos desviam?”. A roteirista se saiu muito bem em desnaturalizar isso.
Em meio à luta, é mencionado que houve uma atitude da mestra, que resultou em injustiça, mas como para uma jedi não existe espaço para reconhecer o seu erro sem cair em sentimentos “menos nobres” como a culpa, ela ignora. E se a sua identidade é erigida a partir de uma noção de ego que atribui a si mesma tudo o que é positivo, enquanto regurgita e projeta em seu Outro social tudo o que é negativo (KILOMBA, 2019), então a única alternativa que a oponente enxerga como resolução do conflito é a morte. Nesse ponto, nós podemos empatizar com a morte de Indara, discordar dos meios, e, ainda assim, não desmerecer as emoções que motivaram a assassina.
A narrativa também consegue manter a complexidade figurativamente, com a sequência de luz e sombras durante a luta (o uso intencional do preto e branco encaixados é bastante significativo), e a demonstração de que a jovem é sim uma assassina, mas não maligna o suficiente para matar pessoas realmente indefesas. Essa demonstração de “jogo justo” é uma medida importante, mesmo quando sabemos que ela usou a ferramenta do opressor (LORDE, 2019), a aniquilação do Outro, supondo ser em benefício próprio.
Explico, Toni Morrison tem uma célebre frase que diz: “a função do racismo é nos distrair”; a sequência final de Indara é uma demonstração invertida disso: a jovem encapuzada usa a ameaça de morte de uma inocente para fazer emergir o senso de heroísmo que distrai a mestra do que é importante ali, a sua própria vida. Um combate direto não daria a oportunidade de a pessoa em desvantagem vencer, então a quebra do “jogo justo” é a brecha que a assassina explora para alcançar o objetivo (que descobriremos não ser assim tão próprio). Se a diferença de poder entre as duas combatentes é um dado, haveria chances de um verdadeiro jogo justo?
A atuação de Moss é fundamental para transmitir o sentido que o público naturalizou na figura de Obi-Wan sem questionar. |
SUPERIORIDADE/INFERIORIDADE
Após a luta, nós somos levadas a outro lugar, onde uma moça, chamada Osha Aniseya, bastante semelhante à assassina – que mais à frente, descobriremos ser sua irmã gêmea, Mae Aniseya – é abordada por um cavaleiro Jedi e a sua padawan pedante. Ambos apresentam a conhecida superioridade moral e, por serem, respectivamente, um jovem negro e uma alienígena, amplificam a aparência daquela atitude supremacista, como se simbolizassem aquela mesma “presença” de Indara, porém metamorfoseada.
Osha é suspeita da morte de Indara, mas apesar de sua alegação de inocência é mantida sob custódia e transportada para Coruscant para um julgamento rápido e uma punição “sem alarde”, já que a Ordem pressupõe a sua culpa. A partir da acusação, tudo o que segue vai tornando a ex-jedi mais suspeita, como se uma força amorfa e invisível se movimentasse no sentido de interromper (novamente) e prejudicar a sua vida. Ela é uma vítima daquilo que Aph Ko (2019) chama de bruxaria zoológica: o termo metafórico descreve uma prática perseverante, que consome, invade e destrói física, emocional e culturalmente indivíduos minorizados a partir do controle de espaços, instituições e práticas. Noutras palavras: as injustiças evidenciam o caráter fetichizado daquele universo regido por uma Força que os sensíveis a ela (talentosos) moldam.
Em meio a isso, enquanto Mae aparece de uma forma ativa, Osha é o seu contraponto passivo, e assim, as gêmeas separadas no espaço, simbolizam a fissura do self, uma bifurcação no que tange às formas de enfrentamento do luto sem indícios de síntese, que formule um caminho de superação do trauma. Neste ponto, podemos compreender que perdida/encontrada é uma questão de perspectiva, assim como a nossa interpretação de suas “índoles” e de nossa identificação com o lado luminoso ou sombrio da força. Mas não podemos esquecer que “as gêmeas são uma”, sua forma separada é aparente.
No início, quando descobrimos que Osha é traumatizada por ter perdido toda a família no incêndio provocado pela irmã, em seu planeta natal, o seu antigo colega Yord, que a trata com distanciamento e inferioridade, lança as seguintes palavras de sabedoria: “o apego àqueles que nós perdemos são os mais difíceis de ceder”. Assim, além da hierarquia de ter avançado na Ordem, se tornado um cavaleiro com uma padawan, ele reafirma a sua condição de superioridade ao evidenciar que Osha sofre por algo que a enfraquece, bem diferente dele. É uma conversa superficial sobre mérito, à medida que é possível compreender que eles tiveram uma igualdade formal de oportunidades, mas que ela fracassou, por “sentir demais”... sendo uma mulher (Espero poder ver nos próximos episódios uma boa demonstração crítica do que os direcionou a caminhos tão diferentes).
Aqui temos uma outra hierarquia interessante: Yord é um homem negro. Suas identidades de homem e jedi se sobressaem no diálogo com uma mulher Negra que não é (mais) jedi e está em desvantagem porque é acusada de um crime. Até mesmo a forte crença em prender e julgar antes de encarcerar, representa um senso de superioridade (civilização) com raízes escravocratas no mundo fora da narrativa, como explica Angela Davis em Estação as prisões obsoletas?. A ideia de prisão é, basicamente, promover a morte social dos sujeitos, além do controle e da submissão. Portanto, ainda que Osha houvesse matado a jedi, sua habilidade poderia ser reconhecida e reabilitada em vez de suprimida. Afinal, a raiva leva ao ódio...
O paralelismo entre a barbárie (assassinato) e a civilização (instituição prisional) nos leva a outra camada de como a perspectiva jedi e da República (que vai se tornar um império autoritário e eugenista) se conectam como práticas que se pretendem civilizatórias, democráticas e justas, ao passo que suas injustiças mais visíveis são ocultadas abaixo de Coruscant e nos planetas da periferia, onde é visível a exploração de recursos naturais, desigualdade social, governos autoritários locais e ciclos de empobrecimento.
Claro, além do racismo, o sexismo atua de forma praticamente invisível naquelas relações mediadas pelo especismo (aliens e outros animais não-humanos por exemplo são classificados a partir do parâmetro “humano”). Podemos lembrar da rigidez do voto do mestre Windu contra Ahsoka, e rastrear um certo comprometimento dele com a matriz de opressões (LORDE, 2019), da mesma forma que Yord reifica através de sua firme suspeita. É como se a lei, o protocolo e o “certo” estivessem acima da vida, e essas crenças conferem um status humano a algo abstrato, à medida que desumaniza (na falta de palavra melhor) os seres vivos classificados como “menos civilizados”.
A suspeita de Yord é sentida por Osha como uma traição, o que podemos deduzir pela sua expressão de choque com a frieza dele; como a série nos conduz para a identificação com Osha, o novo parâmetro de “bem”, a armadilha discursiva é nos convencer a desgostar de Yord; felizmente, não demora para a série refratar isso, através dum comentário retórico, que mostra a insegurança e atipicidade dele, sem o traje, o que torna a sua performance de “superioridade jedi” uma espécie de “máscara branca”. Aí a série acena pra nós e diz: “olha aí, ele é um cara legal!”.
Isso é particularmente interessante, porque o estágio do ego branco representado por Indara revela a transparência do conceito de Negação discutido por Grada Kiloma (2019): a jedi não vai lidar não com o que fez no passado. E isso, simplesmente porque ela é branca e se identifica com os ideais brancos, os quais professa sem questionamento, ideais esses que só são úteis para não-brancos e não-humanos como resquícios instáveis de poder. Assim, nem o recalque, e nem a penitência são suficientes para chegar à reparação; para Mae, apenas a morte liberta Indara de sua identidade canibalista (afinal ela destruiu alguém e seguiu viva) e a própria Mae, da influência dos feitiços discursivos e fantasias executadas pela mestra.
Vale lembrar que a própria noção de Força invisível canalizada conforme a intenção e a índole, coincide com o tipo de efeitos no real que a feitiçaria branca zoológica exerce através da estrutura invisível de instituições e práticas, segundo Aph Ko (2019).
O DUPLO E A QUESTÃO DO PONTO DE VISTA
Uma vez acusada do crime e tratada, desde então, como criminosa, a vida de Osha cruza simbolicamente com a da irmã, que ela pensava estar morta, (como num enredo gótico, amo!). E a sua trajetória (desprovida de capital financeiro, social e de autoconfiança) é afetada pela suspeição dos jedi e pelas inverdades e difamações que a os sujeitos em conflito com a lei dispensam contra ela. Essa verdadeira teia de injustiças abstratas se acentua, quando, após o incidente com a nave que transportava prisioneiros pra Coruscant, sofre um acidente, e cai no planeta inóspito (Carlac). Neste ponto, Osha se encontra, de modo sobrenatural, com a irmã.
O retorno do passado é um ponto central em The Acolyte, porque o trauma é uma experiencia atemporal, sempre presente (KILOMBA, 2019), e por isso que Osha paralisa diante do fogo e é por isso que vê a sua irmã como uma criança.
Já o luto é o processo de aceitar o que se perdeu. Enquanto para as irmãs, o luto direciona as suas vidas em caminhos de vingança (olho por olho) e de reparação (mudanças éticas e institucionais), o luto dos mestres jedi em questão (ao menos, os que Mae está no encalço) é o processo de encarar o seu comprometimento com a maquinaria de injustiças as quais as suas atitudes “neutras” , e pretensamente justas, alimentam. Afinal, a Ordem Jedi, como instituições em geral (como as universidades), rejeita com facilidade as subjetividades dissidentes através de uma força negativa, indireta, que faz o sujeito sair por si mesmo devido ao desconforto, muitas vezes, indizível; Em The Acolyte, por mais que Osha, suponha que foi sua a escolha por desertar da Ordem, seu vínculo emocional, submissão e lealdade, indicam o contrário.
Ou seja: ao longo desse episódio, Osha ainda é a fantasia de controle da Ordem, enquanto a irmã personifica o medo que exploradores têm da retribuição.
Então, o episódio nos oferece uma perspectiva complexa sobre a Ordem Jedi que se conecta, em grande medida, com eventos futuros exibidos na primeira trilogia e aprofundada na animação Clone Wars, devido à insistência de certos protocolos hierárquicos jamais questionados e, a reiterada negação dos erros. Esse aspecto da isenção dos sujeitos investidos de poder constituir/reiterar uma realidade cindida, torna evidente a necessidade de as gêmeas representarem mais do que caminhos opostos: uma noção de que negociar com aquele tipo de estrutura não é possível, porque não dá pra conciliar os sentimentos destrutivos, seja pra dentro (Osha se colocar em perigo voluntariamente) ou pra fora (Mae buscar a catárse através do assassinato de mestres Jedi).
É catártico ver a dissidência em ação, mesmo ainda tímida. Da esquerda pra direita, temos Yord (Charlie Barnett), Jecki Lon (Dafne Keen) e Sol (Lee Jung-Jae) |
ALTERNATIVAS
Contrariando as normas através de pequenos hábitos, o Mestre Sol busca lidar com seu sentimento de vergonha (KILOMBA, 2019) tendo em vista que “se não meditarmos sobre o passado, estaremos fadados a repeti-lo”. Seu desvio, somado à sua retidão de caráter e confiança inabalável na inocência de Osha (até que se prove o contrário), mostram uma alternativa aos estágios em que outros mestres ainda permanecem, estáticos como aparecem, e morrem. É dele que vem a contradição importante, a aberta à autocrítica que mobiliza a busca pela verdade. O que afinal significa ser um bom jedi? Para Sol, não o medo do erro, mas o reconhecimento de que um possível erro de sua ex-padwan é uma falha dele. E isso, embora possa parecer uma nuance egoica, na verdade, é um exercício de responsabilização. Quando indara pergunta a Mae “Quem te treinou?", ela não está apenas atribuindo culpa ao mestre, ela está rastreando o germem daquela raiva; e compreendo como algo próximo a “que tipo vazão de raiva você está respondendo?’
Mais tarde, o fato de o time que segue em resgate de Osha ser composto por um homem amarelo, um homem negro e uma alien fêmea é um reflexo tímido de que o feitiço da supremacia, mantido por hierarquias rígidas de poder e supressão da verdade, o sustentáculo da soberania jedi, pode ser questionado e visto de forma mais complexa que os binarismos possibilitam. E o questionamento é sempre diverso, uma soma de diferentes perspectivas em profundo diálogo. É uma compreensão desde dentro, que parte da autocritica honesta. É claro que verdade é um termo eternamente em disputa, enquanto os grandes beneficiários não renunciarem ao poder e controle da realidade de todos. Enquanto isso, Sol faz o que pode, empreendendo a investigação da morde de Indara, e não espera até que os privilegiados reflitam e se modifiquem. A medida que ele se modifica, modifica também a todos que têm a sorte de partir na missão com ele, inclusive, Osha. Ele tem uma fé nela, que nem mesmo ela parece ter em si mesma, e espero que a série explore isso, mostrando como se deu a conexão deles no passado; por que ela; “perder Mae” foi uma escolha ou um equívoco?.
No fim, a Osha do presente, revive o momento do trauma – talvez, um reflexo de sua culpa de sobrevivente – e escuta a irmã criança dizer: “você está comigo. Eu estou com você. Sempre uma, mas nascidas como duas”. Em inglês, o som da rima traz um aspecto interessante sobre Mae, que, além de reforçar que a perspectiva correta da série é a de Osha, representa a figura do trickster, quem domina a linguagem e derrota os inimigos pela inteligência. Aquela figura é lida na cultura dominante como “enganadora”, mas no caso de The Acolyte, possivelmente, seu domínio levará a uma “des-inversão” ou contrafeitiço – embora equivocado já que “acólitos matam um sonho” e utopia é o combustível de uma construção coletiva de cidadania inalienável.
Quando Osha entende que a irmã está viva, ela se torna um reflexo criança da outra, embora o globo ocular de Mae fique totalmente preto, e o encanto da sincronia se desfaça rapidamente. A diretora e roteirista Leslye Headland contorna a oposição preto/branco o quanto é possível, mas existe um limite no universo de Star Wars, então os olhos pretos de Mae se tornam um índice de sua "possessão" e nos dá outro sinal de que luz e sombras são forças indissociáveis na aparência e em disputa, como em qualquer conteúdo Star Wars- Star Wars.
Bom, o problema da ordem Jedi não é o sonho, a utopia, mas sim a fantasia que professam e blindam, de que representam um heroísmo puro, universal, num mundo longe da justiça e equidade com o qual eles nada têm a ver. Marcar isso é importante, porque seu senso de superioridade e distinção, sua tolerância à miséria que encontram, passa a pavimentar o seu próprio aniquilamento e a ascensão do Império. Eis a lição que aprendemos: esse maniqueísmo não é concreto, na verdade, os Jedi carregam em suas práticas a lógica excludente e ordenadora sith, e os sith, muito rígidos em sentir as suas emoções, presos ao ordenamento e às certezas, carregam o luto da decepção com a promessa civilizatória dos jedi.
Se, por um lado, um acólito mata sem arma porque “mata um sonho” (que nós chamaríamos de fantasia), por outro, o modus operandi dos jedi concretiza “o sonho” a partir da neutralidade/tolerância diante das injustiças. Assim, ambos compartilham um tipo de sonho civilizatório hierárquico e colonialista.
Ainda assim, vale lembrar que direita e esquerda não são a mesma coisa.
A alternativa a essas práticas é a Aliança Rebelde e sua proposta libertária, diversa e coletiva que só virá depois, quando a oposição acirrar. Ela é potente porque é o mais próximo do que foi mostrado até agora de resistência ampla e multidimensional. A Aliança, portanto, ensaia um ativismo que, nos termos de Aph Ko (2019) seria uma resistência afro-zoológica, ou seja, uma forma de ativismo antirracista que compreende a noção de que a animalização é uma forma de hierarquia que atravessa raça, classe, gênero e revela as estruturas de poder que ancoram a noção de humanidade, civilização e cultura elevada (branquitude). Por enquanto, outras sínteses se formam “nos cantos escuros da Galáxia”, oscilando entre noções absolutas de bem e mal e nos fazendo pensar profundamente sobre como e por que nos relacionamos com essa franquia...
Em suma, o elo entre gêmeos crescidos sob circunstâncias diferentes já foi bem explorado em Star Wars-Star Wars, mas ainda preso sob a ótica de fantasias puramente heróicas (em geral, masculinistas). Nesse sentido, é possível que a desmedida de Mae, que parece ser a tentativa de desmontar a casa grande usando as ferramentas da própria casa grande, nos ensine a diferença entre o grave erro (“um sonho que eles compartilham”) e um grande equívoco (tentar destruir um sistema sozinha).
Por hoje é só, mas veremos como isso tudo se desenlaça no próximo episódio!
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REFERÊNCIAS
DAVIS, Angela (2018). Estarão as prisões, obsoletas?. Rio de Janeiro: Difel. Tradução: Marina Vargas;
KILOMBA, Grada (2019). Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó.
KO, Aph (2019). Racism as Zoological Witchcraft: A Guide to Getting Out. New York: Lantern Publishing & Media. E-book.
LORDE, Audre (2019). As ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande in Iirmã Outsider. Belo Horizonte: Autêntica. Tradução: Stephanie Borges.
AGRADECIMENTO
Obrigada à Tainá Elis pela generosidade das conversas e do compartilhamento/empréstimo de sua criticidade ede seu "saber enciclopédico" (palavras minhas) sobre Star Wars <3
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