Interlúdio | The Acolyte focar numa vilã Negra é o (real) problema?
“aos poucos, o mainstream nos lança de forma arbitrária a uma Era supostamente pós- racial. Star Wars, como um produto multigeracional que se renova, a fim de abarcar uma quantidade cada vez maior de consumidores, é um dos vetores mais importantes para a consolidação dessa crença que não vê nem cor nem gênero. Por que você chorou assistindo Rogue One?”
Por Anne Quiangala
Não é novidade para ninguém, que a consolidação da popularidade de Star Wars reside no investimento em uma mensagem ambivalente o bastante para que fãs cujas leituras de mundo são opostas (no mundo “real”) possam se relacionar em uma camada emocional profunda. Durante muito tempo, e especificamente antes da expansão do universo, as obras exploravam noções bastante maniqueístas através de personagens, muitas vezes, planos, que – traindo o interesse de quem produzia – acabavam representando uma imaginação colonialista como um problema irresoluto.
Nem todo mundo vai considerar que um homem branco, de sotaque britânico, roupas de tons claros, empunhando um sabre com a arrogância de quem acredita que está certo, significa o que significa: a visão de mundo que domina a sociedade na qual vivemos (por extensão, pra nós, um lacuna que também carrega a nossa crítica a ela). Portanto, nem todo mundo vai compreender que existe uma crítica (no sentido de crise, fratura) ao imperialismo intergaláctico diluída na mensagem dos filmes e animações mais recentes, para além de sabre vermelho, como subtexto, e tudo bem, acessar camadas significativas é uma habilidade que tem sido subestimada... embora seja o que alicerça a relevância de Star Wars; a vida replica as batalhas discursivas que a obra encena.
Além disso, há o fato de que a carência de complexidade de alguns personagens masculinos costuma ser compensada pela quantidade de personagens homens brancos com personalidades distintas lado a lado: o mulherengo, o heroico, o traidor, o vilão. Eles podem, num futuro distante – tal como agora – querer e ser tudo, e o que são não é presumido a partir de suas aparências.
Neste ponto, alguém pode tentar argumentar que a relação entre humanos com droids e seres vivos não-humanos reforça que raça não importa naquele universo. Há alienígenas que são mestres jedi, então qual o problema? Bem, o problema está disfarçado e em constante mudança. Por exemplo: se antes os imperiais eram, em grande parte, homens brancos que representavam a direita em seu auge burocrático, tecnológico e explorador cuja correspondência com a história é evidente, e a resistência, por outro lado, por ser marcada pela diversidade de raças (humanos e sujeitos de outros mundos) representava a visão de mundo oposta (embora seus escolhidos fossem, claro, humanos).
Aos poucos, uma noção turva de diversidade foi se espalhando à medida que o universo também se expandia. Primeiro a presença da diversidade no conselho Jedi trazendo aquela ideia de diversidade como o show de horrores que eu já discuti em outro texto. Não apenas qualquer pessoa poderia ser do conselho jedi, como a única pessoa negra seria uma das mais alinhadas com rigidez que mantem a instituição com o viés de justiça excludente. Nesse sentido, a representação do direito de oprimir não parece uma representação realmente positiva... mas era uma época mais simples em que um jedi negro poderoso já significava bastante.
Segundo, aos poucos, as narrativas no universo de Star Wars vêm se tornando mais complexas porque discutem de forma mais profunda o papel da subjetividade, da história do indivíduo e de suas experiências nos rumos de sua agência. Andor e Rogue One são exemplos que ilustram bem a ideia de que “todo mundo tem a sua própria rebelião”, seja fazendo parte de um todo ou processando a sua própria história e claro, ambos são partes de uma mesma coisa.
Diferente do que a franquia costumava fazer antes, essas duas obras tentaram tratar do grande tema da rebelião a partir de noções mais coletivas, comuns e concretas, sem um escolhido que vai mudar o mundo sozinho. Porém, isso vai até a página dois. Narrativas de sucesso são subsidiárias de uma mentalidade romântica que vai sempre atrelar a noção de heroísmo a alguém que representará “o melhor de todos nós”.
Vamos lá: contrastando Andor às narrativas protagonizadas por mulheres (Ahsoka e The Acolyte), porque o número de episódios das destas juntas é próximo ao daquela, poderemos compreender melhor a questão da diversidade pós-racial em sua “nova” skin. Em Andor, pessoas negras e, especificamente homens negros, têm acesso ao aparato de opressão imperial (como o ex-stormtrooper e o tenente), mas não ao conforto e a dignidade. É claro um comentário retórico interessante, não fossem os dois geralmente tão mal-iluminados, em contrates com as cenas iluminadas, que reforçam a brancura na pele e o azul nos olhos dos personagens melhor delineados.
Por que alguém se identificaria com algum desses homens, que demoram tanto pra mostrar as suas nuances e... bem, a morte. É, Star Wars usa muito o recurso da marca da morte em pessoas racializadas; a letalidade do Império é geralmente sentida na carne de quem não é branco ou homem, a menos que haja uma noção sacrificial em volta do sujeito branco (voltamos a Rogue One). Então é evidente que a história é coletiva, mas existe um herói com quem a nossa empatia deve conectar. E sempre vai ter, enquanto a cultura for burguesa, nada demais, gente.
No caso de Andor, existem armadilhas que nos mantém engajadas: o tenente é mais complexo do que parece (mas depende de nós olharmos o ator e buscarmos ali as nuances que o roteiro não entrega de imediato). Além disso, não sei se você notou: durante o dia, o povo do planeta.... parece europeu, os elementos visuais também reforçam isso, porém, à noite, o grupo parece diferente; há várias pessoas muitas não-brancas ali, cujas presenças são cosméticas e desprivilegiadas pela iluminação (questão técnica orientada pelo interesse do que se deseja mostrar, já que The Acolyte tem cena noturna em que pessoas pretas são bastante visíveis).
No fim, a identificação é direcionada sob o falso pretexto do coletivo, e reforçando a elasticidade de personagens masculinos e os enredos épicos feitos para eles, sob medida mesmo que não sejam escolhidos de forma sobrenatural, parece que algo em seu destino, delineia o seu lugar relevante no universo. Jyn Erso, coitada, tem que ter um romance, então parece que Andor não poderia ser Erso.
Assim, os olhos e a pele de Diego Luna não remeterem ao ideal de brancura dos personagens “do lado de lá”, o que acaba fazendo caber um discurso generalizante, capaz de 1)fazer os brancos se identificarem, 2) atenuar o fato de que os homens negros são planos, e 3) capturar a identificação de sujeitos que poderiam se identificar com as pessoas da equipe “diversa”. No acampamento, enquanto há três homens brancos diferentes, uma mulher branca forte serve para reforçar a variedade humana, por um lado; por outro, um homem negro turrão e uma indiana calada, mesmo lutado no lado certo, são apenas parte do cenário, em terceiro plano.
Já Ahsoka e Acolyte apresentam uma forma diferente de contar histórias do universo de Star Wars. apesar dessas narrativas serem e molduradas por uma noção de destino espiritual, o ponto é a exploração de questões subjetivas e a tentativa de resolver problemas de forma mais pacífica e menos interrompida por outras narrativas, diálogos rápidos versus cenas longas de paisagens e relativizações. A grande questão desses seriados é que eles proporcionam o desenvolvimento das personagens a partir das ferramentas disponíveis no gênero. Assim, a diversidade em Ahsoka é real porque pessoas diferentes, de raças e fenótipos diferentes são convidadas a participar da ação não como mártires, elas importam e a sua sobrevivência também importa. Ouvir a criança “meio humana” importa. E eu amo que a Sabine é uma mulher amarela rebelde, cuja existência e força física mandaloriana já põe abaixo a exigência de corresponder a um ideal de feminilidade “modelo”!
Claro, a série falhou em como construiu a relação que poderia ter representado melhor uma reciprocidade antirracista, enfatizando a relação saudável entre mulheres e focado menos em agradar aos fãs enciclopédicos. Mas, ainda assim, é uma série protagonizada por uma alienígena complexa, mais velha, honrada, mas que tem suas questões emocionais a serem resolvidas como qualquer pessoa. A atriz é uma mulher Negra, a Rosario Dawson e a complexidade que ela conferiu à personagem evidencia que o ponto não é apenas inserir algo além de pessoas brancas; mas sim, compreender que diversidade inclui pessoas brancas, elas fazem parte da variedade disponível.
Na verdade, Rosário ser a personagem laranja foi bem legal. Não era apenas um jeito de esconder uma pessoa negra, mas de celebrar uma personagem incrível e relevante para a franquia.
E então, chegamos à The Acolyte e a questão de uma Sith Negra incomodar os fãs mais progressistas.
Sabe, nem sempre contar histórias coletivas é um progresso, especialmente se este coletivo dilui as partes para reafirmar uma suposta universalidade masculina e branca. De que adianta Andor complexificar a ideia de raça ao inserir pessoas não-brancas na tela sem que haja profundidade e diferença real nas personalidades? E sem que haja luz pra, de fato, mostrar. De que adianta mostrar pessoas comuns, sem poderes, com quem você deve se relacionar, se há um tipo de comum que, ou não existe, ou com certeza, vai morrer? Morte essa circunstancial; a narrativa passa por cima com a desculpa de que algo mais importante vem a seguir. Um sacrifício, sabe? O cara nem precisava ter morrido, mas quem se importa.
Tudo isso é para dizer que não é O GRANDE PROBLEMA se os 8 episódios de The Acolyte, por fim, falharem em propor algo subversivo em termos de representação. Primeiro porque é Star Wars, e o significado disso é óbvio: é um produto, e como tal, não é feito pra mudar a realidade, como nenhum deles foi. Exigir grandes mudanças, neste programa, é um viés desproporcional: pessoas que são mulheres, (uma é queer e outra é Negra), e homem sul-coreano dirigem... que tipo de liberdade criativa está disponível pra eles nessa metade de episódios? Esse time tem que ser duas vezes melhor por quê?
Três episódios foram suficientes para termos discussões que nem a boa índole de uma série de personagens negros em mais de trinta anos mostrou (e nem estou contando com o fato de que o Darth Vader tinha a voz interpretada por um homem negro). São outros tempos e, cada vez mais, a mensagem de que as ferramentas de opressão são democráticas; veremos muitos vilões e vilãs negros, não como oposição direta aos brancos “do bem”, mas como parte de uma diversidade que é plano de fundo para a naturalização de uma mentalidade pós-racial e pós-feminista. E isso não é um problema de The Acolyte, e sim do capitalismo tardio.
Ainda assim, a série não prende Sol ao estereótipo do monge. Ele é um personagem complexo, que erra como os demais, mesmo sendo um exemplo de jedi. Pra reforçar a complexidade na representação de pessoas amarelas, a série apresenta um personagem completamente complicado, com muitas questões, como uma pessoa. Também há jedi gordo, racializado, com deficiência existindo, sem que seja a real questão. Sabe, pessoas sendo pessoas? Há bruxas diversas sob a luz do luar sendo mostradas como partes importantes de um todo realmente diverso, com a democratização da dignidade, não da violência.
Heróis e vilões são esquemas de fácil compreensão, mas que não abarcam a subjetividade real de ninguém. Não é à toa que tanta gente capaz de compreender a mudança do Anakin esteja se sentindo a exploração da complexidade em The Acolyte: identificação é um processo que demanda uma habilidade de leitura complexa e empatia que é desencorajada a cada dia que passa.
E quanto a alguém que possa querer reiterar que “estar lutando do lado certo” é o suficiente...? Bem, todas as mulheres Negras precisam pensar igual? Precisam ser "boas" o tempo todo? Devem ser um braço da república? Devem ser mortas ou evacuadas de Raada? Não podem querer tudo?
Assista ao terceiro episódio de The Acolyte e busque compreender que as coisas são mais complexas que certo e errado, no que tange às representações. Às vezes, melhor que aderir ao lado luminoso, é compreender que, assim como no nosso mundo, tudo é sobre poder e quem está autorizado a usá-lo.
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