Star Wars, entre a queda do Império e Perspectivas de Descolonização



por Tainá Elis*

Esse texto foi a primeira leitura que fiz sobre a cultura pop utilizando a #nerdiandade e deu origem à oficina sobre Império e Imperialismo em Star Wars que tive a oportunidade de ministrar ano passado. Muita coisa se passou, e o texto foi atualizado depois de todas as maratonas e discussões dos filmes saga no #PretaWatch e do meu mergulho no Universo Expandido.

A obra de Star Wars está relacionada com diversas partes que me compõem: meus afetos, minhas memórias, discussões e teorias acaloradas com minha irmã Thaís e meu pai, na seção de comentários do canal do Northon Domingues. Porém, minha parte historiadora sempre esteve atenta aos eventos históricos que são evocados quando consumo algo relacionado a este universo. Longe de estabelecer uma investigação sobre a influência do tempo e autoria, vou procurar relacionar aqui os eventos históricos e políticos que a obra reverberou em mim, relacionados com como a #nerdiandade me fez repensá-los a partir de todas minhas leituras de autores pós-coloniais que tive contato na universidade.

Apesar das alguns fãs negacionistas afirmarem que não dá pra misturar cultura pop com política, a trilogia original de Star Wars (1977 - 1983) pode ser assistida, à primeira vista, como uma representação da disputa histórica entre o Eixo - encarnado pelo Império - e os Aliados - como a Aliança Rebelde - durante a Segunda Guerra Mundial, ou, até mesmo, do conflito posterior da Guerra “Fria” entre EUA e URSS. De fato, Star Wars também é sobre política, inclusive com a reprodução de uma perspectiva maniqueísta, algo consolidado dentro do imaginário das disputas ideológicas ocidentais (TODOROV, 2002). Na longa duração, a saga repete a ressignificação de categorias políticas da Grécia e Roma, concebidas como parte da “história clássica ocidental", é uma estratégia de legitimação característica dentro do discurso político do Ocidente, como, por exemplo, o próprio conceito de “democracia”. Desde o século XVI, os europeus resgataram diversas vezes a categoria de "império", a partir da experiência histórica de dominação do Império Romano, como forma de fabricação de uma justificativa para a expansão territorial em outros continentes, inicialmente o avanço colonial sobre as Américas, depois, Ásia e África, no século XIX (COOPER, 2005).



Foi clara a inspiração de George Lucas na política romana da Antiguidade europeia, quando ele tentou dar corpo às disputas do Senado e da ascensão do imperador Palpatine nas Prequels [Episódios I, II e III] (1999-2005). Na minha opinião, a construção da complexidade política do universo de Star Wars nessa fase possui alguns acertos inspirados (como a clássica fala: “É assim que a liberdade morre. Com um estrondoso aplauso.” de Padmé Amidala durante a ascensão de Palpatine). Porém, o foco na trajetória de Anakin Skywalker acaba consumindo o tempo da tela e a complementação vem sendo feita, especialmente, no Universo Expandido.

Eu sempre digo que o Universo Expandido de Star Wars é como um poço sem fundo de HQ’s, livros, séries que é difícil de acompanhar, porém não posso deixar de dizer que tem sido muito divertido de se explorar e espero demonstrar isso aqui (só precisa ter cuidado com a FOMO). É importante ressaltar que o Universo Expandido atualmente está sendo conduzido para o mainstream, especialmente com as séries do Disney +, como The Mandalorian (2019 - dias atuais), The Batch (2021 - dias atuais), Obi-wan Kenobi (2022), entre outros. Portanto, mesmo que não aborde cronologicamente as obras, espero que esse texto fale com um público mais amplo e também dê fôlego para discussões com a Kika e o Vento, já que somos os burning hellers mais chegados à Star Wars


A queda do Império Galáctico


Na minha perspectiva, foi em The Mandalorian que a categoria de “império” foi expandida na saga Star Wars, a partir das concepções da modernidade europeia, possibilitando uma comparação entre a queda do Império Galáctico em Star Wars com os chamados processos de descolonização da Ásia e África no século XX. Podemos definir, primeiramente, a descolonização como essas emancipações dos territórios coloniais europeus, a partir das reivindicações e lutas de libertação que foram empreendidas pelos povos colonizados da África e Ásia. Estes territórios ultramarinos que a lógica colonial defendia como parte estendida do império britânico, francês, português, entre outros, que, na realidade, eram alvos da exploração brutal e violência da metrópole. Apesar da minha análise generalista (perdão aos meus colegas historiadores), devemos destacar que estes processos de descolonização emergiram de contextos histórico-políticos múltiplos e complexos com especificidades em cada território (A Libéria, que estudei no mestrado, se tornou independente antes mesmo da intensificação da presença europeia na África, durante a segunda metade do XIX). Porém, a descolonização não significou o fim do imperialismo, conforme Frantz Fanon destaca em Em Defesa da Revolução Africana (1980), os desejos neocoloniais se traduziram nas tentativas de estabelecimento de “zonas de influência” estrangeiras sobre os territórios recentemente libertados. 

Voltando para o universo de Star Wars, a queda do Império Galáctico é marcada com a Batalha de Endor, em O Retorno Jedi (1983). Conforme descrito em outras produções, as repercussões da derrota do Império correram pela galáxia levando a diversos desdobramentos políticos, seja a retomada dos planetas pela luta dos nativos, como em Rebels (2018), ou na ascensão de senhores de guerra (warlords) e mercenários, conforme vimos no Capítulo 3 de The Mandalorian. Alguns desses processos desencadearam disputas políticas locais e alimentaram as expectativas dos imperiais, os membros remanescentes do Império que vivem e trabalham em prol da perspectiva da sua restauração. Lembrando que eles buscam o restabelecimento da “ordem”, ou seja, o retorno de uma política de exploração e apagamento das populações nativas nos planetas ocupados pelo Império. Ora, esse tipo de pensamento esteve no centro da Europa colonizadora do século XX e pode ser exemplificado pelo filme Africa Addio (1966). Este filme mostra que, antes mesmo da concretização dos processos de descolonização - que custaram muita luta e sofrimento aos colonizados e colonizadas -, já havia se instaurado um sentimento de ressentimento entre os europeus, alimentado pela perda iminente dos territórios coloniais. Inclusive, esse mesmo filme foi acusado de fazer encenações de execuções para ilustrar a suposta brutalidade nativa que avançaria na África à medida em que a “civilidade europeia” se retirasse. 



Não era de se esperar nada menos daqueles que construíram no discurso a colonização como um “fardo do homem do branco” (BHABHA, 2013) (inclusive uma parte dos europeus defende isso até os dias de hoje), sendo que a realidade do processo colonial nos territórios ocupados era permeada pela violência, pilhagem e devastação. Isso pôde ser visto especialmente em Star Wars Rebels, no retorno de Ezra Bridger ao seu planeta natal, Lothal, devastado ambiental e socialmente depois da intensificação da presença imperial no lugar. "Os homens colonizados têm em comum o fato de lhe contestarem o direito de constituírem um povo. Diversificando e legitimando essa atitude geral do colonialista encontra-se o racismo, o ódio no opressor e, correlativamente, o analfabetismo, a asfixia moral e a subalimentação no oprimido" (FANON, 1980, p. 174). A ascensão dos senhores de guerra e mercenários na era pós-Império Galáctico se coloca como uma possível comparação aos processos de guerra civil e conflitos internos que assolaram diversos países recém descolonizados do século XX. Inclusive, os europeus costumam não se responsabilizar pelo desgaste econômico, nem pela política de inimizades locais que foram alimentadas pela colonização. Assim como os estadunidenses não reconhecem, ou o fazem tardiamente, suas interferências políticas incessantes nas questões internas dos mesmos países descolonizados, seja via CIA, como no assassinato do político anticolonialista congolês Patrice Lumumba (1925-1961), ou até mesmo intervenções militares diretas, como na Guerra da Coreia (1950 - 1953). 

Resistências e Perspectivas de Descolonização 


Recentemente, em entrevistas para a Vanity Fair sobre as novas produções de Star Wars ficamos sabendo que “A Rebelião será televisionada”. É interessante observar que, pelo menos pelo título, a ideia de que resistir contra o Império Galáctico não está restrita às ações da Aliança Rebelde. De fato, a construção e as falhas da Nova República descritas nas Sequels [Episódios VII, VIII e IX] (2015-2019) nos fornecem poucas perspectivas de transformações políticas futuras. Este aspecto reflete o que Frantz Fanon, ainda na emergência do movimento Terceiro Mundista do século XX, destacava como a necessidade e a dificuldade dos países oprimidos da América e do resto do mundo se unirem aos recém libertados da África e Ásia, a fim de se fortalecerem e não tornarem-se reféns das disputas e explorações das potências da Guerra Fria. Para Fanon, este era um processo essencial para garantir a autonomia e libertação dessas populações. Isto porque, toda a “culpa” da emergente violência nos territórios descolonizados era interpretada aos olhos europeus como um sinal da suposta "barbaridade" dos nativos, algo que supostamente os incapacitava de constituírem pacificamente suas nações (ignorando os processos violentos de instituição dos estados-nação que sacudiram as Américas e a Europa no século anterior). Essa denominação amparava também o discurso civilizatório sobre povos considerados "bárbaros" - resgatando uma categoria romana - e inferiorizados, de acordo com as emergentes categorias de classificação das ciências racialista e antropológica da época (PRATT, 1999). 

Nesse sentido, podemos retomar os antigos conflitos de Star Wars entre os Mundos do Núcleo da (Velha e Nova) República, que se expandiu colonialmente para os planetas da Orla Média, algo que se tornou a raiz das Guerras Clônicas. O imperador Palpatine se aproveitou das disputas efervescentes entre República e Separatistas, assim como a colonização europeia fomentou e instrumentalizou disputas políticas e étnicas internas dentro de territórios coloniais, depois fomentando suas "zonas de influência" imperialistas. Na época de The Mandalorian, Chandrila, a primeira capital da Nova República, também fazia parte da região do Núcleo, assim como era a antiga capital, Coruscant. Portanto, era de se imaginar a reprodução de antigos conflitos entre o Núcleo e a Orla Média e Exterior, assim como a autonomia desses planetas do meio, que parecem ter vivido, sob o império, uma segunda colonização. 




Podemos destacar a tentativa da Nova República de tentar organizar um sistema de rodízio entre capitais, porém os dois primeiros planetas escolhidos - Chandrila e Hosnia Prime, eram dos Mundos do Núcleo. Além dos problemas de reconstrução política e infraestrutura, a Nova República também teve que lidar com as disputas no Senado entre os centristas e os populistas - aqueles que defendiam maior autonomia dos planetas-membros. Uma análise sobre escolha do nome da frente mais progressista como populista dá outro texto sozinho, mas destaco o retorno do maniqueísmo político e os impasses que retornam para uma fragilidade da democracia quase incontornável na saga. Portanto, podemos dizer que, ainda se baseando na política da Grécia antiga, Star Wars “ [...] é, na verdade, a história de uma sucessão instável de regimes políticos que alternam as experiências democráticas, os regimes tirânicos e as tentativas de restauração aristocrática.” (NAY, 2007, p. 28). 

No entanto, numa outra perspectiva, podemos diagnosticar o problema político insolúvel da Galáxia nas formas de exclusão que foram institucionalizadas. No caso de Star Wars, a atual fase do Universo Expandido está cobrindo exatamente o primeiro processo de expansão: a Alta República, que se passa 300 anos antes da destruição da primeira Estrela da Morte por Luke Skywalker. A expansão da República e sua união com o Conselho Jedi reflete de forma clara o discurso colonial. A Chanceler Lina Soh afirmou em um comício: "Vocês sabem que visualizo uma Galáxia de Grandes Obras, conectada, inspiradora e cheia de paz para todos os cidadãos.” (SOULE, 2021, grifo meu). Destaco a palavra cidadão porque essa a ideia de cidadania tem sido uma forma e uma ferramenta das políticas de exclusão “de fato e de direito”, assim como a negação da existência de diversos grupos na modernidade (MBEMBE, 2018). Portanto, por mais que Lina Soh repita a palavra NÓS na continuação deste discurso, essa pretensa universalidade acaba se deslocando para práticas políticas de colonização. 

Dessa forma, o colonialismo emerge como o grande trauma a ser superado, tanto em Star Wars, como na nossa realidade. A permanência dos imperiais e seus devaneios autoritários de retorno do Império e ascensão da Primeira Ordem nas Sequels, ou mesmo a intensificação de movimentos fascistas e a ascensão da extrema-direita atualmente, demonstram o luto dos supremacistas pelo passado perdido e “[no] presente a ideia de igualdade são recusados e, no lugar, prevalece a fantasia de um passado que triunfará.” (KILOMBA, p.226). Em Star Wars, assim como no nosso contexto histórico-político, “[o] imperialismo não acabou, não virou de repente “passado”, ao se iniciar com a descolonização, a desmontagem dos impérios clássicos” (SAID, 2011, p. 432). O processo de exploração político, cultural e econômico do imperialismo se modifica em várias formas e se aproveita das fraturas, infligidas por ele mesmo, para constituir novas formas de colonização (FANON, 1980). 

De fato, a colonialidade e o perigo do neocolonialismo - o fantasma que nos persegue enquanto pessoas de países descolonizados da periferia capitalista - pode estar à espreita em Star Wars, não apenas pelas mão dos imperiais remanescentes, mas, também devem ser enfrentados diretamente para que as novas configurações políticas não reproduzam esse ciclo histórico. Então, aguardemos o que essas as novas aventuras de Star Wars nos reservam nas (numerosas) séries que foram anunciadas pela Disney +. Que a Força (e o anticolonialismo) esteja sempre conosco. 



* Tainá Elis é historiadora, professora, mestra em História Social da Cultura com ênfase em História da África pela UFMG, participante do Grupo de Estudos Africanos e Pós-Coloniais. Moradora da região metropolitana de BH e cruzeirense. Jogadora frenética de DbD, main suporte no LoL, naruteira, burning heller, amante de gatos e de personagens duvidosos de ficção.



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Referências Bibliográficas

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013. 
BREZNICAN, Anthony. Star Wars: The Rebellion Will Be Televised. Vanity Fair, 17 de maio de 2022. Disponível em: <www.vanityfair.com/hollywood/2022/05/star-wars-cover-the-rebellion-will-be-televised>. Acesso em: 16 de junho de 2022. 
COOPER, Frederick. “States, Empires, and Political Imagination”. In: Colonialism in Question: Theory, Knowledge, History. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2005, p. 153 – 203. 
FANON, Frantz. Alienação e Liberdade: Escritos Psiquiátricos. São Paulo: Ubu Editora, 2020. ____________. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980. ____________. Escritos políticos. São Paulo: Boitempo, 2021. 
___________. Os condenados da terra. 2ª ed. Pref. Jean-Paul Sartre. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 
____________. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. ____________. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era, 1968. 
FAUSTINO, Deivison Mendes. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015. Disponível em: repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/7123
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 
M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Tomo II (Do século XIX aos nossos dias). Tradução de Manuel Resende, revisada academicamente por Daniela Moreau, Valdemir Zamparoni e Bruno Pessoti. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfricas,2011. 
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 Edições, 2018. 
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Trad. Jézio Hernani Bomfim Gutierre. Bauru, SP: EDUSC, 1999. 
SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 
SOULE, Charles. Star Wars: Luz dos Jedi. São Paulo: Universo dos Livros, 2021. 
TODOROV, Tzvetan. Memória do Mal, Tentação do Bem: Indagações sobre o século XX. São Paulo: Arx, 2002. 
NAY, Olivier. História das ideias políticas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
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